por Maria Clara Lucchetti
Bingemer
Ela é alta, negra, esguia,
jovem e bela. Seu vestido de verão é leve e uma discreta brisa o levanta
deixando adivinhar pernas torneadas e corpo esbelto e atlético. Sua leveza não
vem apenas de seu físico, mas do interior de sua alma pacífica e crente.
Leisha Evans, de Nova York, é enfermeira. Com seu vestido longo e
ondulante, postou-se, sem armas e sem defesa, em frente aos policiais armados.
A manifestação acontecia
em Baton Rouge, no estado da Louisiana, contra a brutalidade das forças de
segurança americanas. Era parte de uma onda de protestos desencadeada após a
morte de dois negros por policiais brancos, em Minnesota e Louisiana. O crime
agravou ainda mais as tão candentes tensões raciais no país. Em Dallas,
um franco-atirador matou cinco policiais.
Leisha Evans chegou diante
da força bruta e das armas com suas mãos vazias. Esperou que a prendessem,
o que aconteceu. E descreveu sua ação como obra de Deus. O
fotógrafo Jonathan Bachman, que capturou a imagem que viralizou nas redes
sociais, ficou impressionado. "Ela não foi violenta, não disse nada,
não resistiu. No final, a polícia a deteve."
Leisha não é figura
isolada. Segue uma longa e gloriosa tradição muito presente em seu
próprio país e no mundo também. A caminhada dos negros em busca de seus
direitos em meio ao racismo presente nos Estados Unidos se fez pela via do
protesto pacífico. Assim foi com Martin Luther King, que liderou marchas
e levantou multidões sem dar um tiro ou cometer um só ato de violência.
Ao final, foi assassinado em Memphis, Tennessee.
Mas não só das tensões
raciais se trata aqui e sim de todas as lutas por direitos humanos no lado
norte da América. Assim foi igualmente com a grande ativista católica Dorothy
Day, presa várias vezes por protestar pacificamente contra a guerra do Vietnam,
contra a convocação de jovens para essa e outras guerras, contra a violência
aos imigrantes e camponeses nas fronteiras do México, enfim, contra tudo aquilo
que a força traz em termos de brutalidade e sofrimento.
No último domingo, foi a vez
da Europa. A final da Eurocopa, campeonato europeu de futebol, dava como
quase certa a vitória da França, favorita e jogando em casa. Após uma
partida renhida e dura, Portugal marcou o gol da vitória pelos pés negros de
Eder, da Guiné-Bissau, revelação do time português.
Houve choro e ranger de
dentes na torcida francesa. E embora discreto e contido, sem a
exterioridade brasileira, foi possível ver na mídia torcedores chorando
lágrimas doídas diante da derrota de seu país e das orgulhosas cores da pátria
da liberdade, igualdade, fraternidade.
E novamente a leveza deu o
toque da graça em meio ao peso da força. Desta vez, não com uma bela
mulher, mas com uma sensível criança. Um menino português, de camisa
vermelha, pode ser visto pelo mundo inteiro consolando um torcedor francês em
lágrimas. Enquanto este último, dobrado em dois, chorava desconsoladamente, o
menino o abraçava e batia em suas costas, em gesto de amizade que mostrou algo
que parece que estamos esquecendo de maneira perigosa: esporte é competição,
mas não é guerra. E quem é adversário no campo pode ser amigo fora dele.
Além de ser criança, o
pequeno consolador é imigrante. Português em terras francesas, cujos pais
ou avós foram seguramente buscar vida melhor no país mais rico e com mais
oportunidades de trabalho, aí permanecendo. Em um momento onde acontecem
tantos conflitos devido à migração na velha Europa, ver o menino migrante
consolando o cidadão francês foi algo bonito de se ver.
A leveza da jovem mulher
negra, a ternura da criança descendente de migrantes vem trazer uma mensagem
urgente, que precisa ser lida e decodificada em profundidade. Em um mundo tão
violento, onde a paz é algo de primeira necessidade, só o “peso da
leveza” pode trazer redenção. O peso que é doce, mas intenso, que nos
revela que nos foram dadas asas e somos corpo animado pelo Espírito do Criador,
que nos deseja em voo permanente e livre para viver a bela vocação humana.
Se a leveza é esmagada, se
a beleza é encarcerada, se a infância é ignorada e a inocência desprezada,
estaremos construindo um futuro feito apenas de força bruta, morte e
sangue. Em termos um tanto intrinsecamente contraditórios, um futuro sem
futuro, pois de tanto esmagar e matar, não vai sobrar ninguém para contar a
história.
Maria Clara Lucchetti
Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ. A
teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da
compaixão" (Edusc)
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