1. O ano 150: palavras que não
entendemos mais.
Há como descobrir traços da atual
igreja católica, como instituição, na história dos três primeiros séculos do
movimento de Jesus? Os que tentaram descobrir esses traços têm de reconhecer:
os documentos disponíveis não respondem às nossas perguntas. As palavras não
colam. Isso se deve ao fato que fazemos perguntas a partir de uma igreja
enorme, de mais de um bilhão de adeptos, e os documentos não respondem. Por
volta do ano 150, quando emerge uma literatura cristã com certa envergadura,
autores como Justino, Atenágoras, Barnabé e o autor anônimo da carta a Diogneto
não respondem aos questionamentos de hoje. Eles não falam em ‘religião’, por
exemplo. Na carta de Tiago se lê: ‘o culto puro e sem mácula
consiste em assistir a órfãos e viúvas em suas dificuldades e guardar-se livre
da corrupção do mundo’ (1, 26). Ele não usa o termo ‘religião’, mas fala em
culto, o que significa dedicação, empenho. O Novo Testamento não tem um vocábulo equivalente ao termo latino
‘religio’, que provém do universo imperial romano. Em vez de falar em religião, os primeiros autores recorrem a termos como
‘caminho’, ‘modo de vida’, ‘escola’, ‘seguimento’, vida ‘fora da cidade’ ou
‘fora das portas’ (na Carta aos Hebreus). Para os observadores de fora,
os cristãos são ‘ateus’, ou seja, não participam de cultos programados pela
administração do império. Outro exemplo: os termos ‘paróquia’ e ‘papa’ não têm,
em 150, o sentido que lhes é atribuído hoje.
Enfim, não encontramos a igreja
católica de hoje nos escritos dos três primeiros séculos. A imagem de uma
árvore genealógica’ do cristianismo, com um tronco original do qual derivariam
as diversas confissões cristãs de hoje, não corresponde ao que os documentos
dos três primeiros séculos nos informam. O que existe é a multiplicidades de
comunidades que formulam projetos locais provisórios, passageiros e
incompletos, inspirados no evangelho de Jesus. Não se enxerga, nos documentos
dos primeiros séculos, uma linha de continuidade entre o projeto de Jesus e a
igreja bizantina (ortodoxa) e, depois, católica, ou ainda protestante, etc.
Pelo simples fato que Jesus não fundou uma instituição religiosa, mas lutou
para renovar a fundo a instituição herdada de Moisés.
Além disso e mais fundamentalmente,
desde o início ficou claro que não é fácil compreender o projeto de Jesus
(Veja: Moingt,
J., Deus que vem ao homem, I: do luto à revelação de Deus, Loyola, São Paulo
2010, 348-363). O Evangelho de Marcos mostra em diversos episódios que os
apóstolos dificilmente compreendem Jesus. Marcião,
o melhor teólogo do século II, confirma o que já está em Marcos: muitos
seguidores de Jesus não entendem seu projeto.
2. O ano 325: a sedução da corte.
O ano 325 pode ser considerado a data
de fundação da igreja católica. Nesse ano, bispos cristãos, que representam um
movimento ainda muito recentemente perseguido pela administração romana, são
acolhidos em 325, com todas as honrarias, na própria Residência de Verão do
Imperador Constantino em Niceia, perto da nova metrópole Constantinopla, que
está em plena construção. Constantino sabe o que faz quando recebe esses
bispos, pessoas rudes do interior, com tantas honrarias. O que ele tem na
cabeça? Ao que tudo indica, Constantino percebe que a política de seu
predecessor Diocleciano, que perseguia implacavelmente os cristãos, tem de ser
interrompida. Ele observa com apreensão o surgimento, em muitos setores da
administração, um de um retrocesso a formas ditatoriais e totalitários, além de
muita corrupção. Ele procura forças vivas, de alto padrão ético, capazes de
reanimar a sociedade e corrigir um sistema corroído por falta de ética e é
nesse sentido que ele resolve mudar radicalmente a política diante do
cristianismo. Em vez de perseguição, ele opta pelo acolhimento.
Há um relato memorável do historiador
Eusébio de Cesareia que mostra o impacto da recepção em Niceia na mente dos
bispos. Eles são tratados como Senadores do Império. Cito o texto: ‘Destacamentos
da guarda imperial e de outras tropas cercaram a entrada do palácio com espadas
desembainhadas. Os homens de Deus puderam passar sem medo em meio a soldados,
até o coração dos aposentos imperiais, onde alguns se sentavam à mesa junto com
o imperador e outros se reclinavam em divãs espalhados dos dois lados. Quem
olhava tinha a impressão de que se tratava de uma imagem do reino de Cristo, de
um sonho, em vez da realidade’ (Eusébio de Cesareia, Vita Constantini, 3, 15. Cit. Crossan,
J.D., O Jesus histórico: A Vida de um Camponês judeu do Mediterrâneo, Imago,
Rio de Janeiro, 1994. 462).
Eis um texto precioso, pois flagra o
momento exato em que a igreja muda. Os mais diversos termos são utilizados
pelos historiadores para descrever esse momento histórico. Uns falam em
constantinismo, cesaropapismo, cristandade, outros em triunfalismo e
cristandade. Uma formulação que me parece particularmente apropriada é
inspirada num ensaio escrito em 1933 pelo sociólogo Norbert Elias sob o título:
‘A sociedade de corte’ (Zahar, Rio de Janeiro, 2001; o texto original é de 1933). Nesse livro, o autor faz da ‘corte’ um paradigma histórico fundamental. A corte e
uma forma de se organizar a sociedade. Elias analisa a luta pelo prestígio, a
maledicência, o ritual, as cerimônias, o protocolo, o bom comportamento, a
adulação, a arte de falar, o papel do ‘bobo na corte’ e do ‘outsider’ etc. Se a
gente segue o modo em que Elias analisa a história, então a gente compreende
que a coisa mais importante de Niceia não é o famoso ‘Credo de Niceia’ (que
ainda hoje se reza nas missas do domingo), mas o impacto psicológico causado
nos bispos pela recepção na Residência Imperial. Os bispos mudam: de simples,
rudes, espontâneos, sinceros, soltos, diretos, eles se tornam suaves, polidos,
civilizados, educados e finos. Capricham na maneira de falar e se comportar,
aprendem a arte retórica, controlam a fala e os gestos. Enfim, mudam de hábito
(no sentido original do termo). Paulo de Samósata (260-272), o primeiro bispo
‘cortês’ da história do cristianismo, já forma em seu redor uma miniatura da
corte romana, uma corte episcopal. Claro, não há só fascínio. Os bispos passam
a desfrutar de residências melhores, meios de transporte e correio rápidos e
gratuitos através das ‘vias romanas’, doações para construção de suas basílicas
e igrejas. Mas a principal novidade consiste na aprendizagem das regras da
corte. Podemos dizer que, em Niceia, a igreja vira uma ‘sociedade de corte’.
Apresento aqui sete pontos em que há
ruptura flagrante entre o movimento de Jesus dos três primeiros séculos e a
igreja cristã do século IV por diante. Aparecem novas palavras, uma nova
linguagem, novas vestes, uma nova administração, nova política, nova disciplina
e nova liturgia. Há outros pontos, sem dúvida, não se pode dizer tudo.
(1) Novas palavras.
O vocabulário cristão ganha em Niceia
uma nova palavra: ‘religio’. É uma palavra que provém da diplomacia imperial.
Não se encontra na Bíblia nem tem seu equivalente na cultura helenística.
Pertence à política romana e indica o culto ao Imperador. Por meio da ‘religião’,
que é o elo entre cada cidadão romano e o Imperador, esse último penetra no
mundo sagrado e adquire uma autoridade inconteste. O cerne da questão é de
ordem imaginária: divide-se espaço da vida em dois campos, o sagrado e o
profano. As pessoas vivem a vida de cada dia no campo profano, ou seja, fora do
templo, que é a imagem do mundo sagrado. O termo latino ‘pro fanum’ significa
‘anterior ao templo’. Mas quando as pessoas se dirigem ao templo, elas penetram
num campo sagrado. Depois de trabalhar, as pessoas oferecem o fruto de seu
trabalho à divindade. Trata-se de uma antiga tradição agrícola, que a
diplomacia imperial romana transforma em instrumento político. Muitos líderes
cristãos aceitam a distinção entre profano e sagrado, pois percebem que ela
aumenta sua autoridade junto ao povo. Eles começam a usar termos superlativos:
santíssimo, reverendíssimo e excelentíssimo. Falam em ‘Deus todo-poderoso e
onipotente’, como nas primeiras palavras do Credo de Niceia: ‘Creio num só
Deus, pai onipotente, criador do céu e da terra...’.
(2) Nova linguagem.
Aparece, no seio do cristianismo, uma
nova linguagem. Os líderes das comunidades se tornam ‘ministros sagrados’. Os
apóstolos se transformam em sacerdotes. De pescador e exorcista de sucesso, o
apóstolo Pedro se torna ‘pontífice’. Ainda no século III, o escritor cristão
Tertuliano considera o uso do termo como um insulto (em seu tratado ‘De
pudicitia’). Ele critica o bispo de Roma, que começa a usar o título de
‘pontífice romano’, e escreve a ele: ‘tenha vergonha, você se comporta como um
pagão! ’. Mas no século IV, a sensibilidade eclesiástica muda completamente.
Pedro é entronizado e revestido de vestes sacerdotais, faz seu Introito na
Basílica e se dirige à ‘Cathedra Petri’, o trono imperial. Doravante, os bispos
são ‘sucessores dos apóstolos’, conforme construção literária do historiador
Eusébio de Cesareia que, nos capítulos 4 a 7 de sua História Eclesiástica,
elabora longas listas ‘dinásticas’ para as principais cidades, muitas delas
puramente imaginárias, criando desse modo a imagem de uma ‘sucessão apostólica’
e dinástica ininterrupta, que atravessa os séculos.
(3) Novas vestes.
No século IV, a veste talar faz sua
entrada na igreja. Até Jesus ganha uma roupa que o cobre até os pés. Um afresco
na Catacumba de São Calisto, em Roma, do século III, ainda apresenta Jesus como
o bom pastor, vestido por uma túnica que vai até os joelhos e deixa pernas e
braços desnudos. No ombro uma mochila a tiracolo, na mão direita as patas de
uma ovelha enrolada nos ombros e na outra mão uma chaleira, caldeira ou panela,
provavelmente para preparar alimentos. Depois do século IV, esse Jesus da vida
diária nunca mais aparece. Quanto aos bispos, eles herdam dos sacerdotes de
Mitra as suas ‘mitras’ (o termo ficou até os nossos dias). Mas o importante
mesmo é a veste talar.
(4) Nova administração.
Simpatizantes de Roma, principalmente
por causa das facilidades organizatórias (viagens, uso dos correios imperiais,
isenção de impostos), os bispos colaboram com a administração romana no sentido
de promover a unificação do Império. É nesse sentido que eles combatem as
heresias e qualquer outra ameaça à unidade. Eles adotam o modelo diocesano, ou
seja, dividem o mundo cristão em ‘territórios’, segundo o modelo romano. A
diocese é uma opção administrativa fundamental, pois ela possibilita a
implementação do grande projeto católico no século V. Outro procedimento
administrativo consiste na divisão entre clero e laicato, ou seja, na separação
entre ‘os de dentro’ e ‘os de fora’ (os outsiders), como diria Norbert Elias
(veja seu livro: ‘Os estabelecidos e os outsiders’, Zahar, Rio de Janeiro).
(5) Nova política.
No século IV, os clérigos cristãos
rivalizam com os sacerdotes da oficialidade romana. Para ter mais força, eles
se unem numa corporação. Doravante a igreja será uma corporação clerical, de
grande coesão interna e destacada separação com os ‘de fora’, os leigos.
(6) Nova disciplina.
Os clérigos aprendem a disciplinar o
riso, seguindo um dos requisitos fundamentais da vida na corte. Já no século
III, Clemente de Alexandria escreve que o cristão ‘sério’ não se altera, não
ri. Mais tarde, no final do século IV, o metropolita João Crisóstomo afirma que
Cristo nunca riu (Migne,
Patrologia grega, 57, 69). Em
geral, nos escritos dos Padres da Igreja (os intelectuais cristãos da época), o
tema do prazer e da expansão dos sentimentos é abordado de forma negativa. Os
cristãos se educam antes para o sofrimento que para o prazer, ficam mais
ocupados com afazeres intelectuais e espirituais que com ‘carnais’. Em seu
romance ‘O Nome da Rosa’, Umberto Eco conta que o velho bibliotecário de um
mosteiro medieval bem sabe que ‘o riso é incentivo à dúvida’ (p. 159 da edição
brasileira) e não permite que os jovens monges discutam sobre o riso de Cristo.
Os monges não podem conhecer o Cristo brincalhão, o Arquivo Secreto da
Biblioteca guarda sua memória. Pois Jesus alegre contradiz a sisudez do abade,
do bispo e do papa. É dentro desse contexto que germina a ideia do seminário de
formação sacerdotal, um dos maiores sucessos da história da igreja. O seminário
visa antes de tudo o autocontrole, que no fundo fez parte da educação da classe
A na sociedade romana. Os trabalhos de Peter Brown mostram que o controle do
corpo, que desemboca na exaltação do celibato, não deve ser entendido no
sentido de rejeição da sexualidade, mas do controle do homem superior (Brown, P., Corpo e Sociedade: o Homem, a Mulher
e a Renúncia sexual no Início do Cristianismo, Zahar Editores, Rio de Janeiro,
1990). O cidadão de classe superior tem de
mostrar superioridade diante dos escravos e dos empregados por meio do
autocontrole. Assim o clérigo diante dos fiéis.
(7) Nova liturgia.
Adotando o modelo da corte, a
liturgia cristã se ‘teatraliza’, ou seja, deixa de ser comunitária e imita o
cerimonial romano. Isso repercute na arquitetura das igrejas, que daqui por
diante parecem antes salas de teatro que casas comunitárias. A arquitetura da
primeira Basílica cristã, a Hagia Sofia de Constantinopla (hoje Istambul), é
concebida segundo o modelo de uma sala de teatro. Por sinal, as pessoas têm
razão quando falam em ‘assistir à missa’. O aspecto mais negativo da
teatralização da liturgia consiste no fato que ela deixa o indivíduo isolado. A
liturgia deixa de criar laços, vira um espetáculo religioso.
3. O ano 420: a formulação do projeto
católico.
Até agora tratei da reviravolta
operada no seio do cristianismo pela política do imperador Constantino. Um
ponto seguinte consiste em considerar como se formula um projeto católico
propriamente dito. Esse projeto é igualmente resultado de condicionamentos
históricos.
Em 410, Roma, a invicta e invencível
cidade eterna, é tomada pelas tropas de Alarico, o visigodo, e saqueada por
três dias (os dias 24 a 26 de agosto de 410 ficam por muito tempo
gravados na memória). A imensa população escrava fica na cidade, enquanto os
ricos fogem para longe. É um desastre. A população da cidade cai bruscamente de
um milhão a 200 mil. Lactâncio, autor cristão, atribui o desastre à ‘ira de
Deus’, e muitos concordam com ele. O rumor atinge o norte da África, onde o
talentoso escritor Agostinho é bispo da pequena cidade de Hipona. O bispo se
sente tão impressionado pelo quadro do mundo de referências que desmorona
diante de seus olhos, que se dedica durante quinze anos à elaboração de uma
obra gigantesca em 22 livros: a ‘cidade de Deus’. Essa cidade é um sonho
grandioso da salvação da humanidade depois da queda de Roma, identificada com a
‘cidade do homem’. A cidade de Caim, marcada pelo sinal indelével do pecado
(original), caminha para a perdição. Enquanto isso, os peregrinos da ‘cidade de
Deus’, a cidade de Abel, caminham para a salvação. Os da cidade de Caim andam à
toa, pois só buscam o poder e a glória, enquanto os habitantes da cidade de
Abel peregrinam, em meio a muitas dificuldades, em demanda da vida eterna na
presença de Deus. Uma imagem fascinante, que seduz muitas gerações de
dirigentes cristãos. Vê-se a igreja católica como uma luz de santidade em meio
à perversidade do mundo. Agostinho é um sonhador, ele não se preocupa com as
questões administrativas que a eventual transformação de seu sonho em projeto
político pode acarretar. Não enxerga, por exemplo, que sua ‘cidade de Deus’ não
abre espaço para a liberdade, pois tudo está baseado na obediência.
Leiamos uns trechos, eles dizem mais
que os melhores comentários.
‘A paz da cidade é a concórdia bem
ordenada dos cidadãos na obediência. A paz é a tranquilidade da ordem. Essa
ordem é a disposição de seres desiguais, que indica a cada um o lugar que
convém. Os miseráveis, que são infelizes, certamente não têm a paz, não gozam
da tranquilidade da ordem. Mesmo assim, não podem ficar fora da ordem. Pois,
caso se revoltem contra a lei pela qual se rege a ordem natural, serão mais
infelizes ainda’ (Cidade de Deus, livro 19, capítulo 13, 1).
No capítulo 16 do mesmo livro,
Agostinho trata da ‘paz doméstica’. E escreve: ‘Se, na casa, alguém
perturba a paz doméstica por sua desobediência, deve ser corrigido por palavras
ou chicote (chibata), por todo castigo justo e legítimo, em conformidade com o
que a sociedade humana permite, e fim de conduzi-lo de novo, em seu próprio
interesse, à paz da qual se separou’ (19, 16).
A igreja é um instrumento de educação
das massas. Eis como Agostinho fala da educação: ‘É você que educa e ensina.
Você submete as mulheres aos seus maridos por uma casta e fiel obediência. Você
confere aos maridos autoridade sobre suas mulheres. Você submete as crianças
aos seus pais por uma espécie de servidão e coloca os pais acima das crianças
numa piedosa dominação. Você ensina aos escravos a respeitar seus amos, não
tanto pela necessidade de sua condição como pelo charme do dever. Você ensina
aos reis como vigiar sobre os povos e adverte os povos a se submeterem aos
reis’ (De moribus ecclesiae catholicae, 1, 30, 63).
Com o tempo, Agostinho se agarra
sempre mais à ideia da obediência incondicional, a tal ponto que nos últimos
quinze anos de sua vida ainda se mete numa infeliz disputa com o monge Pelágio,
que defende a liberdade. O grande escritor se afunda no fundamentalismo e
termina sua vida no amargor, como se pode verificar lendo as Confissões. Mesmo
assim, as lideranças católicas se empolgam com Agostinho, pois ele confere uma
aparência de legitimidade ao que de fato acontece na igreja em termos de
dominação e poderio. No entusiasmo do momento, poucos percebem que a ‘cidade de
Deus’ é na realidade uma cópia da sociedade imperial romana, onde os súditos
obedecem e se submetem à vontade dos governantes.
O sonho de Agostinho se concretiza na
paróquia. A paróquia é a expressão mais clara do projeto católico. É um reduto.
O viajante pelo interior da Europa pode observar como as casas, nas aldeias, se
agrupam em torno da igreja paroquial. Parecem pintinhos em baixo das asas da
galinha. O ‘pastor’ cuida das ovelhas (os paroquianos) e os defende diante dos
perigos de fora. A paróquia é uma defesa, ela defende a ‘cidade de Deus’ diante
dos ataques da ‘cidade de Caim’, que são os judeus, islamitas, vagabundos e
heréticos. A paróquia não é feita para acolher os que pensam de forma
diferente, pois o paroquiano costuma ter um comportamento defensivo. Na
paróquia, as pessoas se acomodam a uma vida na obediência. Quem não aguenta
essa vida vai para a cidade. As virtudes da paróquia são as virtudes
feudais: fidelidade (até a morte), coragem (imagem da espada), proteção ao
fraco (cavaleiro medieval), voto perpétuo. A cruz e a espada, as duas espadas,
a cruzadas, o bom combate contra os hereges, luta, fraternidade, lealdade, o rei
sagrado (padre, bispo, papa). A paróquia é uma távola (tabula) redonda do rei
Artur, ou seja, do vigário. Aí Parsifal, Tannhäuser, Tristão (e Isolde),
Orlando, Sigfrido são os leigos engajados, destemidos, totalmente dedicados à
boa causa. Eles defendem as ovelhas contra os perigos de fora.
Ainda há muito a
se comentar sobre esses pontos, mas por enquanto basta dizer que os anos em que
Agostinho elabora sua ‘Cidade de Deus’ (de 420 por diante) são fundamentais
para a formação da igreja católica tal qual funciona até nossos dias.
Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.
www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/
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