por Juracy
Andrade
O Brasil contou
e conta com bispos e padres que honram a fé cristã e a tradição apostólica. Nos
tempos coloniais e imperiais, o clero era composto por funcionários do governo,
como ainda ocorre hoje na Argentina. No Império, os bispos tinham que ser
chancelados pelo monarca; era o padroado. Com a República, teoricamente
instalou-se o Estado laico, com separação entre Igreja e Estado, embora as
autoridades eclesiásticas tenham demorado um bocado a aceitar o novo padrão de
relacionamento. Acostumadas ao quase monopólio religioso anterior, lutaram por
manter os antigos privilégios inconscientes de que é muito melhor para a Igreja
o regime de separação. Os bispos continuaram usando o título aristocrático de
“Dom”. Lá para os anos 1950, com a criação da Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil (CNBB), e durante a ditadura 1964-85, quando inúmeros bispos
defenderam os direitos humanos e enfrentaram bravamente os golpistas, a
aceitação do novo status consolidou-se. E é dentro desse contexto que se
agiganta a figura do recentemente falecido cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, que
foi arcebispo de São Paulo de 1970 a 1998. Mal visto pelo Vaticano pré-Francisco,
foi castigado pelo fatiamento de sua arquidiocese, que quase ficou restrita à
Praça da Sé. Mas ele sabia que estava seguindo e pregando o Evangelho e foi em
frente.
O bispo Dom
Angélico Sândalo Bernardino, que foi seu auxiliar na arquidiocese, assim
resumiu o pastorado de Dom Paulo: “Ele é descendente de alemães, mas o rosto
dele é da periferia de São Paulo. Quando imagino Dom Paulo, eu o imagino com o
cheiro do povo, misturado aos bispos, padres, religiosos, leigos e leigas,
anunciando a urgência de resistirmos contra toda mentira”. Em tempos
conturbados, de uma ditadura cruel e abjeta (os golpistas não representavam,
como no atual golpe contra as instituições, a população), que autorizava
prisões arbitrárias, torturas, desaparecimentos, Dom Paulo resolveu denunciar e
enfrentar tudo isso. Os golpistas não ousaram prender nem matar bispos como
ele, Dom Helder, Dom José Maria Pires e tantos outros, mas torturaram e mataram
padres como Antônio Henrique, muito próximo a Dom Helder, torturaram religiosos
e fizeram o mesmo com muitos leigos católicos.
Em 1972, a CNBB
lançou o chamado Documento de Brodósqui
denunciando ao país e ao mundo as prisões arbitrárias, torturas e
desaparecimentos da ditadura, que tinham como vítimas a turma que optara pela
luta armada e também simples opositores da ditadura. Dom Paulo foi um dos
grandes responsáveis pelo texto da Igreja. Quando o jornalista Vladimir Herzog
foi torturado e morto em instalações do DOI-Codi, foi ele também que organizou
um ato ecumênico, que incluía missa na Sé de São Paulo, que os paulistas chamam
de “catedral da Sé”, como se sé (sedes) e catedral (cathedra) não fossem a
mesma coisa. Cerca de 7 mil pessoas se fizeram presentes. Além de católicos,
judeus, como o rabino Sobel, e protestantes, como o reverendo Wright, com toda
a região cercada por soldados do Exército e atiradores de elite.
Foi um dos
líderes e promotores da Teologia da Libertação e suas comunidades eclesiais de
base (CEBs). Quando a Congregação para a Doutrina da Fé do Vaticano, chefiada
pelo cardeal Ratzinger, que mais tarde seria o papa Bento 16, hoje renunciante,
perseguiu o teólogo brasileiro Leonardo Boff, Dom Paulo estava lá no recinto
inquisitorial para defender seu companheiro franciscano, que mais tarde voltou á
vida de leigo. Ironicamente, ainda convidou o inquisidor para “visitar as CEBs
no Brasil e rezar com o povo”. Como não poderia deixar de ser, aquele que ontem
combatia a ditadura civil-militar hoje se volta contra o golpe pseudoinstitucional
de Temer. Cito novamente Dom Angélico: “Naquele tempo, a luta era contra a
ditadura civil-militar, mas a resistência a que ele nos convida deve ser
permanente no Brasil atual também”.
Finalizo com
palavras do jornalista Mino Carta, diretor da revista Carta Capital: “Com Dom Paulo se vai um extraordinário pastor de
almas e de vida e um grande brasileiro, um dos nossos raros heróis. Não sou
católico praticante e ele, com quem mantive uma sólida amizade, feita de
respeito, admiração e muito carinho, jamais cuidou de me mudar. Sabia haver muitas
formas de ser cristão”.
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Juracy Andrade é
jornalista com formação em filosofia e teologia.
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