Por Maria Clara Lucchetti Bingemer
Para os que não sabiam, uma informação: 21 de março é o Dia Nacional da
Poesia. Nesta ocasião, somos convidados a celebrar essa arte através da qual a
linguagem humana é tomada pela musa que a faz viajar na imaginação e na criação
para compor e expressar beleza sob forma de palavra. Vai muito além, no
entanto, da mera estética sensorial e tangível, a palavra poética. A poesia
compreende aspectos metafísicos e a possibilidade de os elementos com que
trabalha transcenderem ao mundo fático. Esse é o terreno que compete
verdadeiramente ao poeta.
Por isso, teologia e poesia são discursos afins e irmanados no fundo e na
forma. Nos dias de hoje, chamados que estamos a atravessar muitos desertos no
encalço do Bem e do Belo que dão sentido à difícil vida que nos toca viver, a
teologia está chamada a rever radicalmente suas formas de expressão. E não se
trata tanto de retomar as invectivas do Papa João Paulo II sobre a nova
evangelização (nova em seu ardor, nova em seus métodos, nova em suas expressões)
como de encontrar formas que carreguem a verdade de uma das mais fundamentais
expressões da antropologia teológica: o ser humano como ser em contínua
autotranscedência.
Essas novas formas seguramente carregarão consigo
novas linguagens. Certamente a da religião e da liturgia, mas também e
não menos a da poesia, da arte, da literatura, da música e de todas as outras
formas estéticas que a humanidade inventou em sua história de muitos milhares e
mesmo milhões de anos.
Os
desenhos e pinturas nas paredes das cavernas dos grupos humanos primitivos, os
primeiros rabiscos, os fragmentos encontrados em diversos pontos do planeta dão
testemunho desta primordialidade da imaginação e do sopro criador, que faz a
humanidade caminhar em direção à sua vocação que, em termos bíblicos, é ser um
sopro animado pelo espírito divino.
Uma das características do ser humano, uma das
”constantes” que aparece em sua identidade constitutiva é este dom de passar
além do sensorial e aceder ao espiritual. E aqui entendemos por “ espiritual”
tudo aquilo que direta ou indiretamente se encontra conectado com o espírito,
com a dimensão humana que passa além dos cinco sentidos. Está incluída aí
a estética sob as suas diversas formas. E também a religião.
O Espírito informa e conforma a corporeidade e faz
com que o ser humano seja o terreno fértil e propício para que a Palavra - que
não tem origem manipulável e direta, mas vem de uma não origem, de mais longe
do que um palpável começo - encontre morada e acolhida. Para falar deste
mistério, conceitos e enunciados são importantes e pertinentes, mas os místicos
e poetas de todos os tempos nos dizem que há mais possibilidades, sempre
abertas, de propor o discurso teológico. Há maneiras de falar de Deus
mais poéticas, evocativas, empatizantes, performativas, implicantes,
esperançadas... que movem mais o leitor que a simples “ passividade”
assimilativa...
As parábolas de Jesus são consideradas poéticas por
mais de um autor e comentador. E são reflexo de seu mundo interior, de sua
compreensão do Reino de Deus que anuncia. A obra de arte e a objetivação final
da intuição poética, o que a obra aspira, em última instância, transmitir a
alma dos outros e a intuição poética que estava na alma do poeta.
Assim acontece com Jesus, que toma elementos de seu
contexto vital, com sua visão inspirada pelo Espírito Santo, e transmite sua
experiência de Deus aos discípulos e aos que o seguem. Sua sensibilidade e sua
profunda ligação e compromisso com a experiência que faz, ao lado de sua criatividade
e observação da realidade, o levam a compreender e transmitir o que considera
mais importante: seu amor ao Pai e seu projeto do Reino. Por isso, sua fantasia
criadora, sua imaginação inspirada, as parábolas que narra são determinantes
para o sentido que comunica.
A teologia latino-americana seguiu de perto este
caminho e, por isso, pode ser compreendida e interpretada a partir da
teopoética jesuânica. Se é verdade que uma boa parte de seu conteúdo é
conceitual, explicativo, rigoroso, não menos é verdade que seus autores
utilizaram diversos gêneros literários como cânticos, hinos, conversas,
histórias, imagens, compondo uma teopoética da libertação para dizer sua fé,
sua espiritualidade, sua teologia. E ao lado dos autores mais especulativos
dessa teologia existem igualmente outros autores que se detiveram mais na
religiosidade popular e no imaginário do povo simples e pobre, e a partir dali
elaboraram seu discurso.
Na teopoética latino-americana está presente um
desejo de Deus que tem o rosto da justiça e da liberdade. Mais ainda: esta
latente, pulsando vivamente, uma sede de Deus que é ao mesmo tempo justiça e
liberdade. Justiça, Liberdade e Vida são os outros nomes com os quais os povos
do sul do mundo, “do fim do mundo” como diz o Papa Francisco sobre si próprio,
entendem e experimentam Deus.
Assim se construiu boa parte da teologia latino-
americana nos anos primeiros. Não tanto com textos dogmáticos, mas sim
com símbolos, ritos, músicas, imagens e estórias de seu viver, que permitiram
retomar o fio da rica história do evangelho no continente.
Por isso, a importância da Teopoética,
que aproxima e cruza teologia e poesia, teologia e literatura, teologia e
estética de um modo geral. Diante da suspeita de que a estética seja
alienante, pode-se sustentar que muitas vezes é a leitura de uma obra
literária, a experiência da recitação de um poema, o ouvir de uma música, o
ritmo de uma celebração os que provocam a experiência espiritual que, por sua
vez, gera a teologia.
O teólogo aí é o poeta da Palavra de Deus, seu
bardo, seu cantor, que “não escolhe seu cantar, mas canta o mundo que vê”, que
“louva o que é para ser louvado” e se cala, cala-se a vida, porque a vida é
todo um canto. E se o cantor do Mistério silenciar, morrem de espanto a
esperança, a luz e a alegria. Os pobres ficam sozinhos, pois já não têm
quem fale por eles.
O desgaste das fórmulas, o envelhecimento das
rubricas, a rigidez dos documentos, tudo isso conclama a novas formas, novos
poemas, nova teopoética que seja ao mesmo tempo teopoiética.
E a teologia cristã é chamada a, com a ajuda da “nuvem de testemunhas” que
iluminam estes mais de 2000 anos de estrada, a “dar razão “desta esperança
partindo dos êxtases dos místicos, da beleza das liturgias, da inspiração da
poesia, da vitalidade da literatura, do dom divino da música. Em suma, das
maravilhas que o Espirito de Deus cria e recria sem cessar na carne e no
espirito humanos.
O teólogo, portanto, está longe de ser um repetidor
de formulações dogmáticas, mas é chamado mais que nunca a ser um hermeneuta da
experiência do divino na sua fé e em diálogo com outras religiões e outras
áreas de saber; um poeta da sede de Deus e da fonte de água viva que a sacia.
No Dia Nacional da Poesia, celebremos os teólogos –
teo-poetas – que, a partir de sua fragilidade, são, no entanto, chamados a
cantar o Mistério que os inebria e a Beleza que dá sentido a suas vidas e às
vidas de todos.
Maria Clara Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ, é autora de "A Argila e o espírito - ensaios
sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre
outros livros.
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