Por
Maria Clara Lucchetti Bingemer
O Brasil de hoje me recorda a história de Abraão com Deus seu Senhor, que o
havia feito deixar para sempre casa, parentela e família, e caminhar em direção
a um futuro desconhecido. Abraão partiu confiante apenas na palavra
daquele que o enviara. E por isso é venerado como pai da fé.
Essa resposta de fé e obediência vigilante do patriarca foi grata ao coração do
Altíssimo, que com ele estabeleceu aliança, cumpriu promessas inimagináveis e
fez do ventre ancião e estéril de sua mulher, Sara, uma posteridade mais
numerosa que as estrelas do céu e as areias do mar. Deus confiava em
Abraão e mantinha com ele uma relação de amizade.
E é por isso que o Senhor lhe revelou que estava farto daquilo que acontecia
com as cidades pecadoras, Sodoma e Gomorra. Fartou-se, cansou-se das
infidelidades, corrupção, trapaças que aconteciam incessantemente em seus
territórios. E confidenciou a seu servo e amigo Abraão sua intenção de
destruir as cidades iníquas: “É
imenso o clamor que se eleva de Sodoma e Gomorra, e o seu pecado é muito
grande. Eu vou descer para ver se suas obras correspondem realmente ao clamor
que chega até mim; se assim não for, eu o saberei."
Porém, o coração de Abraão confrangeu-se de
compaixão e dor ante a possibilidade de destruição daquelas cidades.
Conhecendo Deus e Sua Justiça, começou a interceder e apelar às entranhas
misericordiosas do Altíssimo: “Fareis o justo perecer com o ímpio?” Para
Abraão, era incompatível com o Deus de toda justiça não perceber que havia
justos na cidade iníqua. “Talvez haja cinquenta justos na cidade: fá-los-eis
perecer? Não perdoaríeis antes a cidade em atenção aos cinquenta justos que
nela se poderiam encontrar? Não, vós não poderíeis agir assim, matando o justo
com o ímpio, e tratando o justo como ímpio! Longe de vós tal pensamento! Não
exerceria o juiz de toda a terra a justiça?”
E o Senhor consentiu ao pedido de seu servo
Abraão. Se pudessem ser encontrados cinquenta justos, Ele pouparia a
cidade e Seu divino braço sobre ela não desceria. Porém, o pai da fé temeu por
sua audácia. Seu coração encheu-se de inquietude. E se não
existissem ali cinquenta justos?
A peroração com o Altíssimo continuou, pois, com
Abraão implorando a misericórdia já não para cinquenta, mas para quarenta e
cinco e obtendo mais uma vez a promessa de misericórdia do Senhor.
Porém Abraão, que ia cada vez mais tomando
consciência do quão grandes eram os pecados de Sodoma e Gomorra, foi diminuindo
em seu diálogo o número de supostos justos. Desceu sua estimativa para
quarenta, depois para trinta, vinte até chegar a dez justos. A promessa
final de Deus se deteve em dez justos por cuja justiça toda a cidade seria
poupada.
O final da história é feliz e triste ao mesmo
tempo. Na verdade, não havia dez justos em Sodoma, mas apenas Ló,
sobrinho de Abraão e sua família, totalizando quatro pessoas. E esses foram
resgatados pelos anjos do Senhor e escaparam da purificação que a justiça
divina fez acontecer.
O cenário atual de nosso país lembra muito a
história das cidades assassinas que provocaram a ira de Deus e sua misericórdia
por causa de seu servo Abraão. Por toda parte, as notícias que chegam são
apenas de injustiça, corrupção, crimes de todos os calibres e tamanhos. Por
virem do centro do poder, esses crimes atingem e afetam a vida de toda a
população brasileira, que geme sob o peso duro da diária luta pela
sobrevivência, sempre mais difícil e penosa.
As listas se multiplicam – a de Janot, a de Fachin
etc. - trazendo uma infinidade de injustiças e de injustos que as cometeram e
comprometem toda uma população de muito mais de 200 milhões de habitantes. Os
pobres veem seus sonhos roubados, seu futuro espoliado por assaltos
multimilionários aos cofres públicos e propinas incalculáveis de ricos
empresários. Refugiados em paraísos fiscais, o produto do roubo e seus
detentores acreditavam escapar da justiça humana.
Vendo o vazio de lideranças positivas no mundo da
política e olhando tristemente o mar de lama em que se transformou Brasília,
ouvimos a voz do pai da fé, Abraão, intercedendo pelos justos que não deveriam
perecer com os ímpios. E quando uma nova delação faz aparecer novos nomes, e a
lista dos injustos aumenta, temos a tentação de perguntar: Mas haverá cinquenta
justos? E quarenta? Ou trinta? Ou mesmo vinte? Ou apenas dez? O
pânico que se apossa de nós sinaliza que talvez não haja nenhum.
No entanto, Ló e sua família foram resgatados ao
final da história. Dos escombros do nosso país, a esperança discreta se
deixa perceber. Há esforços, iniciativas, comunidades, vocações políticas
feitas de idealismo e entrega. A lista de Abraão não está vazia. Graças a
isso é permitido ter esperança.
Possa o nosso país reencontrar o caminho de sua
legitimidade democrática, de seu crescimento, da superação das imensas desigualdades
e iniquidades que o assolam e vão sendo exacerbadas pela gigantesca corrupção
que se revela nos capítulos da Operação Lava jato. Mas isso só será
possível se, sem deixar de confiar e esperar na misericórdia divina, for feita
uma grande avaliação, uma profunda autocrítica por parte de todos – cidadãos e
homens públicos – a fim de que o Brasil possa retomar o seu caminho com
dignidade e coragem.
Como sempre, é a Revelação que nos ajuda uma vez
mais. Diz a tradição talmúdica que o destino do mundo repousa sobre 36
justos desconhecidos. Nem eles mesmos sabem quem são. Certamente Deus
sabe. Esperamos sua manifestação, que impedirá nosso país de afundar no
caos e viver uma aurora de esperança em meio a tanta decepção e
desespero.
Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-. A teóloga é autora de “O mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de descrença”, Editora Rocco.
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