por Eduardo
Hoornaert
O maior erro do conhecimento
consiste em confundir proposições
(Wittgenstein)
Em
seu filme ‘Andrei Rublev’ (1966), o cineasta russo Tarkovski conta que Rublev
(início do século XV), excelente pintor de ícones bizantinos, ao ser convidado
pelo Patriarca de Moscou a pintar o quadro do Último Juízo para a Catedral da
Anunciação no Kremlin, não consegue executar a obra. Não consegue pintar um
Jesus a condenar os pecadores a um inferno sem fim. Um século depois, em Roma,
Michelangelo não vê problema nisso. Convidado a pintar o mesmo quadro para a
Capela Sistina no Vaticano, pinta um Jesus que, com um só gesto de seu poderoso
braço, condena uma parcela da humanidade ao inferno, enquanto eleva a outra
parte à eterna felicidade do céu. Ao contrário de Michelangelo, Rublev não
suporta a imagem de um Jesus que condena ao inferno.
Pelo
que sabemos, Rublev não foi condenado pelo Patriarca de Moscou por não
conseguir pintar um Jesus ‘Juiz dos vivos e dos mortos’, nem Michelangelo
incorreu em censura eclesiástica por pintar um Jesus que condena os pecadores
às penas do inferno. Como explicar sentimentos tão divergentes acerca de Jesus?
Aqui dei apenas um exemplo, entre muitos, que podem ser aduzidos par mostrar
que, afinal, o conhecimento humano acerca de Jesus é – para usar uma
expressão do pensador polonês Zygmunt Bauman – ‘líquido’, não ‘sólido’. É como
água derramada num copo: assume a forma do copo. Se a derramar sobre a mesa,
ela vai assumir a forma da mesa antes de se espalhar pelo soalho e assumir a
forma deste. Se você, pelo contrário, colocar um biscoito sobre a mesa, ele vai
conservar sua forma: é sólido. Ora, raciocina Bauman, o conhecimento humano se
adapta aos ‘recipientes’ (tempos, espaços, intencionalidades, táticas,
contextos, mentalidades). Como já dizia Tomás de Aquino no século XIII: ‘o que
se recebe toma a forma do recipiente’ (quod recipitur ad modum recipientis
recipitur). O ‘recipiente’ Rublev recebe a mensagem de Jesus de modo diferente
do ‘recipiente’ Michelangelo, e isso se deve a diversos fatores. Bauman
escreveu sucessivos livros para demonstrar isso: ‘Amor líquido’, ‘Medo
líquido’, ‘Modernidade líquida’, ‘Tempos líquidos’, ‘Vida líquida’, ‘Vigilância
líquida’, além de ‘44 Cartas do mundo líquido moderno’ (Zahar, Rio de
Janeiro, 2011).
O
engodo do conhecimento sólido.
Uma
das maiores conquistas filosóficas do século XX, talvez a maior, consiste na
‘reviravolta linguística’ (veja Manfredo de Oliveira, Reviravolta
linguístico-pragmática na filosofia contemporânea, Loyola, São Paulo, 1997).
Filósofos linguistas como Ricoeur, Bakhtin, Chomsky, Wittgenstein e outros
criticam a epistemologia ocidental tradicional por não prestar a devida atenção
à ‘fluidez’ do conhecimento humano. Em suas ‘Investigações Filosóficas’ de
1953, por exemplo, o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein repete, ao longo de
693 aforismos e dos mais diversos modos, que as enunciações humanas não têm a
solidez que se lhes costuma atribuir. Os homens não emitem conceitos estáveis,
válidas além do tempo e do espaço. Suas enunciações expressam ordens, desejos,
exortações, sentimentos, intuições, imaginações, enigmas, poesias, artes,
cálculos, pedidos, agradecimentos, orações, meditações etc., mas não verdades
eternas (Wittgenstein, L., Investigações Filosóficas, Vozes, Petrópolis, 2005,
n. 23, p. 27). A linguagem humana é feita de significados provisórios e
passageiros. Isso significa que sua correta significação depende da
interpretação do contexto em que está sendo pronunciada. Quando um pedreiro
grita: ‘tijolo!’, ele não ‘define’ nada. Ele quer que o servente lhe passe um
tijolo. A frase ‘bom dia!’ não diz nada acerca do dia, assim como ‘creio em
Deus!’ costuma significar ‘mereço confiança’ e a frase ‘tenho fome’
costuma expressar um pedido. Nas falas do dia-a-dia, perceber essa liquidez do
discurso é fácil, mas quando temos diante de nós letras escritas
(principalmente as que provêm de muitos tempos atrás, de culturas que não são
mais as nossas), a interpretação fica difícil. É de se estranhar que grandes
filósofos da tradição ocidental, como Platão, Aristóteles ou Agostinho, não
tenham dado a devida atenção a esse tipo de problema. Pelo contrário, eles
deram a impressão que o ser humano fosse capaz de adquirir um conhecimento
sólido e de formular ‘conceitos’ capazes de ‘captar’ definitivamente as coisas,
por meio de suas palavras. Mesmo Descartes e a maioria dos filósofos modernos
deixaram de premunir as pessoas contra o perigo de palavras aparentemente
sólidas, mas que na realidade são fluidas, às vezes enganosas, outras vezes tão
confusas que levam as pessoas a um ‘labirinto de palavras’, das quais não
conseguem sair.
Nosso
conhecimento de Jesus não escapa a essa regra. É líquido. O escritor
americano Jaroslav Pelikan publicou em 1985 um livro que apresenta uma
impressionante variedade de imagens de Jesus, ao longo dos tempos, muitas delas
contraditórias: (Pelikan, J., A imagem de Jesus ao longo dos séculos, Cosac
& Naify, São Paulo, 2000): vencedor ou vencido; sofrendo ou glorioso em
cima da cruz; caçador ou protetor de hereges; animador da Cruzada ou contestador
de qualquer tipo de violência; aliado dos poderosos ou defensor dos pobres;
opressor ou libertador; militante, onipotente, fraco, ortodoxo, católico,
protestante, espírita, evangélico, pentecostal, africano, budista, hinduísta.
Imagens líquidas, contemporâneas, passageiras e aproximativas, condicionadas
por tempo e espaço, por pontos de vista situados, provisórios, passageiros.
Dentro desse acúmulo de imagens líquidas, proponho que, por alguns instantes,
contemplemos três que têm um significado histórico relevante: o Jesus
ressuscitado das primeiras gerações; o Jesus definido das igrejas estabelecidas
e o Jesus ‘além de Jesus’ que nos desafia hoje.
Jesus
ressuscitado.
Aproximadamente
vinte anos após a morte de Jesus, o apóstolo Paulo escreve:
Sim,
eu lhes transmito o recebi (acerca
do destino de Jesus);
O
Ungido morreu por nossas faltas
Conforme
as Escrituras.
Foi
sepultado
E,
no terceiro dia, ressuscitou.
Conforme
as Escrituras.
Ele
foi visto por Cefas e depois pelos Doze
Depois
foi visto por mais de quinhentos irmãos reunidos.
Depois
foi visto por Tiago, depois por todos os apóstolos
E,
para terminar, foi visto também por mim (1Cor
15, 3-8).
Nesse
texto, Paulo afirma por três vezes consecutivas que Jesus ‘foi visto’ (em grego
‘ôfthè’). Cefas, os Doze, os quinhentos irmãos reunidos, Tiago, os apóstolos e
por fim o próprio Paulo. Todos ‘viram’ Jesus. É o que Paulo escreve. Lembrando
Wittgenstein, podemos nos colocar o seguinte questionamento: será que o
depoimento de Paulo deve necessariamente ser interpretada como uma afirmação?
Por que ele escreve que Jesus foi visto por ‘quinhentos irmãos reunidos’, o que
é claramente um exagero? Por que ele insiste em escrever que Jesus foi visto
pelos personagens mais representativos (Cefas, os Doze, Tiago, os apóstolos,
ele mesmo)? Aqui não se trata de um desafio expresso na forma de uma
afirmação? Algo como ‘você ainda não viu? Você é dos incrédulos?’.
Pois,
como nos informam os primeiros textos, há entre os discípulos de Jesus duas
reações diante da morte do líder e das possibilidades de sobrevivência do
movimento, uma de ceticismo (ou ‘incredulidade’, como consta nos textos) e uma
de coragem (ou ‘entusiasmo’, segundo os textos). Os incrédulos aparecem em
diversos tópicos dos evangelhos e das cartas de Paulo. Mesmo Pedro, o mais
próximo de Jesus entre os discípulos, fica decepcionado com o desenlace da vida
de Jesus, como se lê no último capítulo do Evangelho de João. Ele volta à
Galileia e diz, decepcionado: ‘eu vou pescar’. Seus companheiros, igualmente
desiludidos, respondem: ‘nós vamos com você’ (Jo 21, 3.Esse último capítulo do
evangelho de João é um discurso dirigido aos céticos). Há ainda, no mesmo
Evangelho, o caso de Tomé, ‘o incrédulo’ (Jo 20, 24-29:
‘felizes os que não veem, mas confiam’ (aqui, a melhor tradução do particípio
grego é ‘confiar’, não ‘crer’). No evangelho de Lucas encontramos a história
dos discípulos de Emaús, que retornam, igualmente decepcionados, para sua
aldeia natal (Lc 24, 13-53). Essa narração de Lucas, redigida
por volta do ano 80, mostra como o ceticismo é endêmico ao primeiro movimento
de Jesus. E no final do Evangelho de Lucas vem mais um discurso contra os
céticos. No Evangelho de Tomé, cuja primeira versão
provavelmente já circula nos anos 50, se encontram diversos aforismos em tom
pessimista. Enfim, um sentimento difuso de pessimismo ronda o movimento. Como
explicar Jesus derrotado e vergonhosamente humilhado na tortura da cruz? A
crucifixão é a suprema vergonha. Ninguém olha para um crucificado, que fica
abandonado a cães e aves de rapina. Como explicar Gólgota, quando o
evangelista Marcos escreve que o próprio Jesus chega a desesperar na hora da
morte? (Mc 15, 34: o grito de Jesus parece um grito de
desespero). Como suportar tamanha vergonha? Eis um sentimento
negativo persistente que, como realça Horsley, poderia ter levado o movimento
ao desaparecimento. Veja Horsley, R. A., ‘Jesus e a espiral da violência:
resistência judaica popular na Palestina romana’ (Paulus, São Paulo, 2010).
Também, do mesmo autor com Hanson, J.S., ‘Bandidos, Profetas e Messias:
Movimentos populares no Tempo de Jesus’ (Paulus, São Paulo, 1995), onde se
informa que diversos movimentos proféticos do tempo de Jesus desapareceram por
falta de perspectiva.
Mas
existe uma outra corrente, em vivo contraste com esses incrédulos. São
discípulos que superam os sentimentos negativos causados pela morte de Jesus.
Eles gesticulam, gritam, se exaltam, choram e dizem coisas que ninguém entende,
como se verifica no capítulo 14 da Primeira Carta de Paulo aos Coríntios. Aí
surpreendemos uma reunião particularmente agitada de discípulos ‘entusiastas’,
onde se combate psicologicamente o sentimento difuso de pessimismo que ronda a
geração que vivenciou a horripilante morte de Jesus. Paulo interpreta esse
entusiasmo quando afirma: a morte não tem a última palavra. Deixar-se levar
pelo abatimento é precipitar o desaparecimento do movimento. Está na hora de
demonstrar coragem. Essa leitura combina com o que lemos nos versículos 12-14
do mesmo capítulo 15 da Carta aos Coríntios:
Quando
gritamos que o Ungido se levantou da morte,
como
alguns de vocês dizem que não existe ressurreição?
Aqui
os entusiastas gritam. Paulo usa o verbo grego ‘kèrussô’ (gritar, proclamar em
voz alta). Esses gritos significam o rechaço do argumento ‘não existe
ressurreição’; ‘ninguém nunca viu alguém se levantar da morte’. Não se trata de
raciocinar ou argumentar, trata-se de animar os colegas e não ceder a
sentimentos de derrota. A morte não pode ter, de maneira nenhuma, a última
palavra. A memória de um Jesus vivo tem de ser preservada a todo custo, pois
ela é fundamental para a sobrevivência do movimento.
Nós
sabemos que o Ungido, já que ele ressuscitou, não morre mais.
A
morte não exerce mais seu poder soberano sobre ele’ (Rm 6, 9).
O
Sopro, que é vida,
em
Jesus o Ungido nos libertou
do
pecado e da morte (Rm 8, 2).
Eis
o imperativo categórico que está na origem do movimento de Jesus: crer na
ressurreição significa não desfalecer diante dos obstáculos, das dificuldades,
das ameaças de morte, é prosseguir no caminho de Jesus.
Os
profetas de Israel sempre interpretaram a ressurreição nesse sentido
exortativo, imperativo até. Ezequiel (entre 585 e 568 aC) vê os ossos
ressequidos de guerreiros vencidos se transformar em exército temível:
Filhos
de Adão, escutem:
eu
abro seus sepulcros,
eu
os faço sair de seus sepulcros,
vocês,
meu povo.
Eu
lhes darei meu sopro.
Eu,
Ihwh, faço o que falo (Ez. 37, 1-14).
O
profeta Daniel tem a mesma uma visão: os macabeus que morrem na resistência
contra o rei sírio Antíoco IV, não descem ao sheol, o ‘país da poeira’, mas
brilham como estrelas ‘no esplendor do firmamento’:
Surge
então o grande príncipe Miguel, aquele que está acima dos filhos de seu povo. É
um período de angústia como nunca se viu. Mas seu povo e todos que estão
inscritos no livro são poupados. Entre os que dormem no país da poeira muitos
se levantam, uns para a vida eterna e outros para a vergonha, para o horror
eterno. Os sábios brilham no esplendor do firmamento. Os que trouxeram muitos
para a justiça cintilam como estrelas para sempre (Daniel, 12, 1-3).
O
profeta Isaías diz o mesmo:
Os
mortos viverão de novo
Seus
corpos se levantarão
Acordem!
Gritem de alegria!
Vocês
que jazem na cinza! (Is 26, 18-19)
Podemos
concluir: o discurso da ressurreição não é de ordem descritiva nem definitória,
mas exortativa e até imperativa. Serve para animar os companheiros a lutar e
aguentar as maiores oposições, atravessar as maiores desilusões. Para falar
como Bauman: é uma ressurreição ‘líquida’, expressão de um momento
particularmente difícil do movimento de Jesus, em que era preciso alimentar uma
confiança em Deus que arrastasse as pessoas para além do abatimento, do medo e
do sentimento de derrota. O corpo abjeto do crucificado transfigura-se no corpo
luminoso do ressuscitado.
Jesus
definido.
Os
tempos passam e, no ano 325, os bispos se reúnem no primeiro Concílio Ecumênico
da história do cristianismo. São convidados pelo próprio Imperador, que os
acolhe na sua Residência de Verão em Niceia, perto de Constantinopla. Muito
lhes impressiona a recepção por parte do Imperador e de dignitários de sua
Corte, pois são homens do povo, agora tratados como se fossem senadores do
Império, com direito a honras militares e protoclares. Podemos presumir que
entre eles haja analfabetos, pois a população em geral, naqueles tempos, é
iletrada. É claro que eles se fazem acompanhar de secretários capazes de lidar
com letras, ler as Escrituras Sagradas, falar a linguagem da Corte e redigir
textos no devido estilo da época. Muitos deles provenientes da associação de clérigos
recentemente formada nos recintos da novíssima e grandiosa Basílica Hagia Sofia
em Constantinopla (desde 313).
São
esses bispos e seus seletos secretários que, em Niceia, prendem Jesus em suas
definições. No quadro ‘Coroação de Espinhos’, do pintor holandês Jerônimo
Bosch (o original fica na National Gallery em Londres. Existem duas cópias, uma
em Antuérpia e outra no Museu do Prado em Madrid), a rabino segura com sua mão
direita as mãos de Jesus, enquanto sua mão esquerda segura um rolo de
Escrituras Sagradas. Ele encara Jesus com arrogância, como quem diz: ‘o que
você tem a dizer agora? Está em nossas mãos’. O pintor consegue expressar,
melhor que qualquer palavra, o que aconteceu em Niceia: Jesus preso nas mãos de
sacerdotes. São eles que o definirão por longos séculos, por meio de
seus catecismos copiados e recopiados, mais tarde impressos e reimpressos, com
perguntas e respostas a serem decoradas por crianças e jovens nas escolas e
centros paroquiais.
Niceia
fala em palavras definitórias e grandiloquentes: ‘Deus todo-poderoso, Deus de
Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro’. Mais tarde virão os
superlativos ‘Santíssima Trindade’, ‘Maria Santíssima’ e ‘Santíssimo
Sacramento’. A Igreja se enche de Santidades e Eminências, Excelências e
Dignidades. Adota-se o estilo pomposo, triunfal, superlativo e arrogante da
linguagem oficial romana.
E
não se trata só de linguagem, mas da totalidade de um novo modo de inserção na
sociedade e na vida das pessoas. Na arquitetura e na liturgia, nas vestes
clericais e na formulação dos textos, na cotidianidade das paróquias, na
iconografia e nas artes, na formação das lideranças, no ensino da moral, no
acompanhamento diário da vida das pessoas e até na marcação de tempos e espaços
transparece um Jesus que está nas mãos da igreja: ‘nós o definimos, nós falamos
em seu nome, ditamos o que ele tem a dizer, pois ele é nosso’.
Eis
o Jesus de Niceia, que se apresenta ‘sólido’, mas na realidade é ‘líquido’,
pois expressa a histórica (e, portanto, passageira) tomada de poder na Igreja
por parte de uma corporação. A solidez de Niceia é uma ilusão. Na realidade, a
definição de Jesus, tal qual consta no Credo, é limitada por um tempo (século
IV dC) e um espaço (Niceia, Constantinopla, a Corte). Uma definição líquida,
como todas as definições criadas pelo ser humano. Por mais que o patriarca
alexandrino Atanásio se empenhe para que todas as igrejas locais se tornem
ortodoxas e que as autoridades imperiais apoiem essa nova ortodoxia, a
fragilidade da proposta se expressa na violência usada contra quem porventura
ouse propor outro modo de se falar em Jesus fora da ‘ortodoxia’. Ele é logo
qualificado de herege (lembro aqui que o Concílio de Niceia está centrado na
luta contra o presbítero alexandrino Ário, o herege), impedido de usar as
plataformas oficiais da Igreja e, com o tempo, exposto à fogueira. Mesmo assim,
a série de heresias que se sucedem ao longo dos tempos é impressionante (Le
Goff, J. [org.], Hérésies et Sociétés, Mouton & Co, Paris, 1968) e revela
que o discurso de Nicéia não suporta diálogo, mas exige obediência e repetição
mecânica das mesmas palavras, ao longo dos tempos. Nicéia não se direciona à
inteligência das pessoas. Não explica, por exemplo, por que Jesus foi
crucificado. O texto diz que ele morreu ‘por nossos pecados’ e ‘para nos
salvar’, mas isso não explica por que motivos as autoridades do tempo (romanas
e judaicas) o condenaram à morte e o torturaram de forma tão horrível.
Foi
com o Credo nos lábios que cristãos europeus, na época dos colonialismos,
praticaram os mais horríveis crimes contra a humanidade de que se tem memória.
Eliminaram populações inteiras e escravizaram imensos contingentes
humanos, sempre justificando suas ações ‘em nome da verdadeira fé’. Durante
esses séculos todos, as mais altas autoridades eclesiásticas, que se mostravam
tão ciosas em preservar e defender o dogma, não disseram nada a respeito da
eliminação de povos e escravização de outros tantos. Só quando já pertencia ao
passado, em 1965, a escravidão foi condenada oficialmente pela Igreja. No
parágrafo 27 do documento ‘Gaudium et Spes’ do Concílio Vaticano II, em meio à longa lista de
‘coisas infames’ a serem abandonadas, como homicídio, suicídio, aborto,
eutanásia, prisões arbitrárias, deportações, prostituição, etc., a escravidão é
mencionada, como de passagem, sem destaque.
Jesus
além de Jesus.
No
início destas páginas evoquei o caso de dois artistas que manifestam opiniões
contrárias sobre Jesus. Assim voltamos à ‘liquidez’, à subjetividade líquida.
Rublev não consegue pintar um Jesus Último Juiz, enquanto Michelangelo nisso
não vê nada demais. O último vive imerso numa tradição de séculos acerca de um
Jesus que ‘virá do céu para julgar vivos e mortos’, como reza o catecismo,
enquanto o primeiro cava mais fundo e alcança o homem de Nazaré, que perdoa
‘setenta vezes sete vezes’, convida cobradores de imposto a tomar a refeição em
sua casa, não condena a mulher adúltera, deixa as ervas daninhas crescer com o
bom trigo, trata todo mundo de irmão e irmã, conversa com a mulher samaritana,
considera Deus seu pai, reza pelos inimigos e não condena ninguém.
Pode-se
dizer que Rublev enxerga Jesus (de Nazaré) além de Jesus (Cristo), ou seja,
Jesus da primeira tradição além de Jesus da tradição dominante, enquanto
Michelangelo fica enredado nessa última. Acontece que, depois de tantos séculos
de tradição dominante a respeito de Jesus, enxergar o Jesus da primeira
tradição costuma provocar, num primeiro momento, um sentimento de desencanto.
Parece que Jesus sai diminuído, rebaixado. Ele perde a auréola, o trono, o
cetro, as vestes sacerdotais, a glória, louvores e adorações, genuflexões e
reverências. Mas essa é uma primeira impressão. Jesus de Nazaré tem
contornos bem mais definidos que Jesus Cristo, que para a maioria das pessoas
não significa nada além de uma vaga evocação de ternura, paz e amor, nada além
de uma herança cultural. Jesus de Nazaré, pelo contrário, significa
compartilhar a mesa com todos e todas; trabalhar a favor dos desfavorecidos;
não condenar ninguém; enfrentar os poderosos deste mundo; ver em Deus um pai
etc. Jesus de Nazaré se posiciona diante da sociedade, Jesus Cristo nem
sempre. Daí os momentos de controvérsia com sacerdotes, letrados e fariseus,
durante as breves permanências de Jesus galileu em Jerusalém, como se verifica
nos primeiros onze capítulos do Evangelho de João. Um abismo intransponível se
abre entre seu modo de ser e o da sociedade dominante.
Repito:
a passagem de Jesus Cristo a Jesus de Nazaré não é coisa fácil. Além das
dificuldades acima apontadas, há uma questão técnica, que analisei em meu livro
‘Em busca de Jesus de Nazaré’ (Paulus, São Paulo, 2016): só conhecemos Jesus de
Nazaré de forma indireta, alterada. Não há como chegar diretamente a ele, não
temos condições de falar algo a seu respeito de forma absoluta e definitiva. O
processo redacional traz inevitavelmente consigo uma alteração, que não deve
ser visto necessariamente como adulteração. Nosso conhecimento de Jesus de
Nazaré passa pelos olhares de Paulo, Hebreus, Marcos, Lucas, Mateus, João, e em
seguida por uma infinidade de olhares ao longo da história. Seguir esses
meandros não é coisa fácil, mas necessária para quem se propor a orientar
comunidades cristãs nos dias de hoje.
Mas
existe um caminho mais curto, menos complicado. É o caminho do povo fiel, que
foi trilhado por Rublev e tantos outros, místicos ou não, que por intuição
sabiam que os sistemas eclesiais não conseguem prender Jesus por inteiro e que
ele sempre escapa, como escapou, sem dizer uma única palavra, das garras do
Cardeal Grão Inquisidor no romance ‘Os Irmãos Karamazov’ de Dostoievski. O
Jesus que escapa é capaz de fascinar as pessoas de hoje, como ele fascinou os
aldeões da Galileia. Em seu livro ‘Resistência e Submissão’ (Editora Sinodal,
São Leopoldo, 2014), Dietrich Bonhoeffer escreve: ‘O dia virá em que a Palavra
de Deus será falada de tal modo que as pessoas se sentirão interpeladas. Será
uma nova linguagem, provavelmente não religiosa, mas libertadora e redentora,
como a linguagem de Jesus. As pessoas ficarão admiradas e seduzidas pela força
dessa linguagem. Então o mundo se renovará’.
Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.
www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/
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