Por Marcelo
Barros
Não deixa
de ser irônico que, a cada ano, a ONU consagre o 23 de agosto como "dia internacional da lembrança do
tráfico de escravos e de sua abolição". A ONU fala de "lembrança
do tráfico e de sua abolição", como se atualmente a chaga da escravidão
não mais ocorresse no mundo. No entanto, organismos internacionais da mesma ONU
publicam relatórios que, atualmente, se calculam em 2 milhões e 16 mil pessoas
que vivem como escravos/as em diversos países do mundo. Até 2016, o governo
brasileiro calculava em 30 mil as pessoas que trabalham em nosso país como
escravas, sendo a maioria delas no campo. Os fiscais do Ministério do Trabalho
conseguiram fazer a lista suja das empresas que utilizam trabalho escravo, 70%
delas no estado do Pará.
Com a
mudança do governo, os que estão no poder ou são, eles mesmos, assumidamente escravocratas
ou estão muito ligados a amigos com esse DNA. Por isso, a tal lista das
empresas que praticam a escravidão nunca foi publicada. Atualmente não consta
que o Ministério do Trabalho continue a luta contra o trabalho escravo, como
fazia antes. A ONU denuncia que o Brasil tem também muitos homens, mulheres e
crianças que trabalham em regime equivalente à escravidão, em indústrias de
tecido em São Paulo, em carvoarias no leste e sul e no turismo sexual, em praias
do Nordeste e Norte do Brasil.
Nesses
dias, no Brasil, a regressão social e política que vivemos possibilitou que
congressistas tenham votado contra diversas conquistas jurídicas dos
trabalhadores, incluídas na Constituição Federal. Há até quem, despudoramente,
dê declarações de cunho racista e escravocrata. Infelizmente, essa onda desumanizadora
e cruel se espalha pelo mundo todo. Na África e sudeste da Ásia, meninas são
forçadas a se casar com quem paga a seus pais um preço estipulado. Outras que
não cedem a esse destino são obrigadas a se prostituírem para sobreviver em
cidades para onde fogem.
O escândalo
maior é que, muitas vezes, na história, as religiões e Igrejas cristãs foram
coniventes e cúmplices com a escravidão. Apesar da atitude profética de alguns
que denunciavam a escravidão e contra ela lutavam, a maioria dos membros das
Igrejas caiu nesse crime. Na América Latina, em nome da Igreja, o papa João
Paulo II pediu perdão às comunidades indígenas e negras pela omissão e
participação de eclesiásticos nesse escândalo.
Infelizmente,
ainda há sinais e notícias de grupos que se dizem religiosos ou cristãos e
mantêm fazendas com trabalhadores superexplorados no Mato Grosso do Sul. Há
poucas semanas, uma reportagem da Associated Press, publicada no site da UOL no
dia 24 de julho de 2017 afirmava: "Brasileiros
são levados como escravos por Igreja nos Estados Unidos, denunciam
ex-membros". Quando tinha 18 anos, André Oliveira, mineiro de São
Joaquim de Bicas, foi levado por uma Igreja (World of Faith Fellowshipp) aos Estados Unidos. Atualmente, conseguiu
fugir e fez a denúncia à justiça norte-americana que até aqui não reagiu. A
justiça brasileira está estudando o caso. Ele denuncia que os trabalhadores que
se negam aos trabalhos forçados recebem socos e agressões "para se purificarem dos seus pecados".
É urgente
que todas as pessoas de bem, ligadas a qualquer tradição espiritual, ou sem
nenhuma pertença religiosa, se unam na defesa da dignidade de todo ser humano e
do direito à vida, ao trabalho remunerado e à justiça social. Parafraseando
Santo Irineu de Lyon, um pastor da Igreja do século III, o santo bispo mártir
Oscar Romero afirmou: "A glória de Deus é a vida e a libertação do povo
oprimido".
Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países
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