por Frei Betto
Ele nada entendia da situação real do país. Nem demonstrava interesse por ela,
embora atuasse ativamente na política. Por isso não gostava de ser questionado,
irritava-se diante das perguntas como se fossem armas apontadas em sua direção.
Não queria que a sua ignorância se tornasse explícita.
Ser estranho, ele tinha olhos alucinados afundados nas órbitas, lábios
espremidos, gestos cortantes. Todo o seu corpo era rígido, como se moldado em
armadura. Ao ficar na defensiva, parecia uma fera acuada. Ao passar à ofensiva,
a fera exibia garras afiadas e de suas mandíbulas pingava sangue.
Sua fala exalava ódio, rancor, preconceito. Aliás, não falava, gritava. Não
sabia sorrir, tratar alguém com delicadeza, ter um gesto de cortesia ou
humildade. Evitava ao máximo os repórteres. Julgava suas perguntas invasivas. E
temia que a sua verdadeira face antidemocrática transparecesse em suas
respostas.
Educado em fileiras militares, aprendera apenas a dar e cumprir ordens,
enquadrar quem o cercava e ultrajar quem se opunha às suas opiniões. Jamais
aceitava o contraditório ou praticava um mínimo de tolerância. Considerava-se o
senhor da razão.
A nação estava em frangalhos, mergulhada em crise ética, política e econômica,
e o horizonte da esperança espelhado em trevas. Pelo país afora havia milhares
de desempregados, criminalidade generalizada, corrupção em todas as instâncias
de poder. O câmbio disparara, a moeda nacional perdia valor, o descontentamento
era geral. O governo carecia de credibilidade e se via cada vez mais
fragilizado. O povo clamava por um salvador da pátria.
Jovens desesperançados viam nele um avatar capaz de inaugurar a idade de ouro.
Era ele o cara, surfando na descrença generalizada na política e nos políticos.
O Executivo se debilitara por corrupção e incompetência, o Legislativo mais
parecia um ninho de ratos, o Judiciário se partidarizara submisso a interesses
escusos.
Ele se dizia cristão, e se considerava ungido por Deus para livrar o país de
todos os males. Advogava soluções militares para problemas políticos. Movido
pela ambição desmedida, se apresentou como candidato à eleição democrática para
ocupar o mais alto posto da República, embora ostentasse a patente de simples
oficial de baixo escalão do Exército.
De sua oratória raivosa ressoava o discurso agressivo, bélico, insano. Haveria
de modificar todas as leis para implantar uma ordem marcial que poria fim a
todas as mazelas do país. Eleito, seria ele o comandante-em-chefe, e todos os
cidadãos passariam a ser tratados como meros recrutas obrigados a cumprir
estritamente as suas ordens.
Prometia fortalecer o aparato policial e as Forças Armadas. Sua noção de
justiça se resumia a uma bala de revólver ou a um tiro de fuzil. Eleito,
excluiria da vida social um enorme contingente de pessoas consideradas por ele
sub-humanos e indesejáveis, mulheres, homossexuais, trabalhadores em luta por
seus direitos e comunistas. Todos que se opunham às suas opiniões eram por ele
apontados como bodes expiatórios da desgraça nacional.
Seu mandato presidencial haveria de trazer a era de fartura e prosperidade.
Reergueria a economia e asseguraria oportunidades de trabalho a todos.
Exaltaria os privilégios do capital sobre os direitos dos trabalhadores.
Aqueles que o seguissem seriam felizes, e livres para sobrepor a lógica das
armas ao espírito das leis. Os demais, excluídos sumariamente do convívio
social.
Enfim, após uma série de manobras políticas e forte repressão às forças
adversárias, ele foi eleito chefe de Estado. A nação entrou um júbilo. O
salvador havia descido dos céus! Ou melhor, brotado das urnas.
Tudo isso aconteceu há 85 anos, em 1933. Na Alemanha alquebrada pela derrota na
Primeira Grande Guerra. O nome dele era Adolfo Hitler.
Frei Betto é escritor, autor de
“Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário