Por Maria Clara
Bingemer
O ano de 1968 marcou a história da humanidade. Na Europa, acontecia a
grande revolução cultural que mudou os padrões de vida do mundo ocidental e
reforçou a importância das jovens gerações. No Brasil, viviam-se os tempos
sombrios da ditadura militar e do Ato Institucional número 5.
Para a Igreja, no entanto, o mesmo ano foi marco de um grande acontecimento: a
II Conferência dos bispos de todo o continente em Medellín, Colômbia.
Após o Concílio Vaticano II, que trouxe um sopro de abertura e renovação para
toda a Igreja, a América Latina queria relê-lo e implantá-lo no seu contexto. E
foi isso que fez em Medellín. Concebeu um novo horizonte em sua
autocompreensão e em sua ação pastoral. Deixou de olhar para dentro de
suas fronteiras e voltou sua atenção para a realidade na qual estava imersa e
situada.
Ao olhar em volta e mergulhar a atenção na realidade, os bispos viram uma
desigualdade gritante entre ricos e pobres e uma opressão e violência
institucionalizadas. Constataram que o maior continente cristão do mundo era
igualmente aquele que abrigava o maior nível de injustiça. O clamor das
vítimas desse estado de coisas se fazia ouvir e chegava ao coração dos
pastores.
Foi assim que a Conferência de Medellín se comprometeu a estabelecer novas
prioridades para seu trabalho pastoral, guiada pelo binômio inseparável fé e
justiça. Entre todos os fiéis que viviam no continente, a atenção privilegiada
do trabalho pastoral deveria ser direcionada para os mais pobres. Uma opção
preferencial deveria ser feita por eles.
Uma vez estabelecida essa diretriz maior, outros compromissos foram
estabelecidos. Para pensar a fé a partir de uma atenção privilegiada aos
pobres, havia que criar um novo modo de fazer teologia. Nascia ali o
embrião da que depois foi chamada de “Teologia da Libertação”. As teorias
do desenvolvimento ganhavam força naquele período, mas a Igreja escolhia o
termo “libertação” por acreditar ser mais profundo e acertado que o primeiro.
A articulação das comunidades de uma Igreja que assim se concebia ia
acontecendo nas bases. Pequenos grupos de pessoas se reuniam em torno da
Palavra de Deus, aplicando-a para sua vida de cada dia. Esse movimento cresceu
e se espalhou por todo o continente, trazendo ar fresco e vida nova para
aqueles que encontravam no Evangelho sua maior esperança. Os bispos em Medellín
acolheram com alegria essa “eclesiogênese” e se dispuseram a acompanhá-la com
carinho.
A pergunta lançada pelas conclusões da II Conferência era: o que significa ser
cristão em um continente de pobres e oprimidos? Significou para muitos não
apenas ajudar os pobres, mas partilhar com eles, em alguma medida, os efeitos
dolorosos da injustiça e da opressão. Implicou fazer mudanças profundas
em suas próprias vidas para serem fiéis a este propósito. Falar a língua das
culturas indígenas e nativas, valorizando suas tradições, rituais e modos de culto.
Integrar essas culturas como parte constitutiva do discurso e da prática
eclesial.
Hoje,
50 anos depois, importa celebrar esse grande acontecimento e continuar a pôr em
prática tudo que com ele foi vivido e aprendido. Em Medellín, a Igreja latino-americana
deixou de autocompreender-se como réplica da Europa. Em palavras do
eminente e saudoso jesuíta brasileiro Henrique de Lima Vaz, era preciso deixar
de ser uma Igreja-reflexo e passar a ser uma Igreja-fonte. E assim o disseram
os bispos reunidos em 1968. A Igreja do continente assumia sua vocação e
destino de ser fonte de um novo modelo eclesial.
Em um mundo globalizado como o nosso hoje, as intuições proféticas de Medellín
continuam válidas e inspiradoras. Para anunciar a alegria do Evangelho, é
preciso encarnar-se nos contextos e culturas para conhecê-los a partir de
dentro. No entanto, esse mesmo processo de encarnação obriga a sair para
fora do já conhecido e dos limites interinstitucionais
O pontificado do Papa Francisco confirma toda essa trajetória eclesial que
festeja cinco décadas. A Igreja em saída por ele proposta é a confirmação
das prioridades de Medellín e a garantia de que hoje é preciso continuar a
pisar os caminhos ali abertos.
Maria Clara Bingemer é professora
do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de Testemunho: profecia,
política e sabedoria, Editora PUC-Rio e Reflexão Editorial, entre outros
livros.
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