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segunda-feira, 17 de setembro de 2018

DEPOIS DO FOGO



  Por  Maria Clara Lucchetti Bingemer

            Recebi de uma amiga a notícia: o Museu Nacional está pegando fogo!  Incrédula, liguei a televisão e ali estava o registro do horror, em movimento.  As chamas lambiam lascivamente a instituição científica e cultural mais antiga do Brasil e não conseguiam ser controladas pelos bombeiros.  Seu destruidor apetite deixou um saldo aterrorizante horas depois: mais de 20 milhões de peças de valor incalculável poderiam ter sido perdidas para sempre. 

            Raras vezes vi tanta lágrima, choro, desolação.  Crianças choravam, jovens, adultos e idosos. Amigos do exterior expressavam seu pesar e  dor, enviavam sentimentos e condolências.  As redes sociais anunciavam luto de tantos.  E indignação de muitos mais. O fogo consumia nossa memória, nossa história, nossa cultura. 

 Devorava a instituição científica e cultural mais antiga do Brasil. 

            Agora, depois do fogo e da perda irreparável de muitas preciosidades, fazemos balanço.  O incêndio era uma morte anunciada.  As condições em que o Museu funcionava estavam muito aquém das aceitáveis e a ameaça sobre seu acervo era permanente. Não havia infraestrutura necessária para combate a incêndios, como portas corta-fogo, detectores de fumaça e jatos automáticos de água. 

            Era domingo, era noite, e a brigada de incêndio não estava trabalhando. O fogo avançara rapidamente.  Havia, segundo informações da direção,  um projeto para reforçar a segurança do museu, mas não saíra do papel. Os atrasos devidos ao descaso com a ciência e a cultura em nosso país foram fatais.  As tragédias e os acidentes de grandes proporções não marcam hora.  Acontecem e se não forem tomadas rigorosas providências corriqueiras para evitá-los, a perda é inevitável. 

            Perdeu-se ali mais que um museu, o mais importante do país e um dos mais importantes do mundo.  Mais do que peças preciosas, sem equivalentes em qualquer lugar do planeta.  O crânio do ser humano mais antigo que já se encontrou em nossas terras: Luzia, a mulher originária da qual todos descendemos.  Perdeu-se um elo insubstituível da memória da história, da cultura e da ciência brasileiras.

            Desapareceram nas chamas igualmente registros não digitalizados de línguas nativas de povos originários que não mais existem.  Mergulhada para sempre na noite do não saber, a cultura desses povos não encontra mais oportunidade de ser reconhecida e aprendida nos tempos do hoje e do amanhã. As palavras, os cantos, os lamentos e os rituais desses povos foram reduzidos ao silêncio e calados para sempre. Sua memória mergulhou no esquecimento. 

            Pesquisas que levaram anos de vida e trabalho de cientistas e estudiosos podem ter sido irremediavelmente reduzidas a pó. Entre elas estão todos os projetos iniciados a partir da descoberta do crânio de Luzia, que lançava uma luz insuspeita sobre as possibilidades do povoamento do Brasil e da América. A América Ameríndia parecia ser, depois de Luzia, uma Proto Afro América. Tudo isso foi lido nos traços que o crânio de Luzia revelava e se tornava memória ativa e fecunda de nossas origens. 

            A memória é uma categoria inestimável para o ser humano.  Segundo o grande filósofo Martin Heidegger, a memória é o recolhimento do pensar fiel.  Ela protege e guarda consigo tudo aquilo que é importante, que faz sentido, que une e harmoniza os fatos com uma linha mestra que permite recordá-los e lê-los com a razão e o conhecimento. A memória é, pois, a condição de possibilidade da cultura, da civilização e de tudo que o ser humano conhece e constrói sobre a terra. 

            Pela memória se narra e se conta sempre de novo a história das experiências e dos feitos, do diálogo que faz nascer e confirma a identidade.  Fazendo memória, narra-se e conta-se para as novas gerações, a fim de poder testemunhar  e não deixar esquecer aquilo que fez e deve continuar fazendo a humanidade viver, sofrer, rir, pensar, falar e conhecer.  No caso do Museu Nacional, tratava-se daquilo que fazia o povo brasileiro autocompreender-se e projetar-se para além de suas fronteiras. 

            Antes do fogo, nossas crianças e jovens podiam ali encontrar muito do que na história do Brasil era conteúdo digno e justo de ser refletido e recordado. Podiam conhecer e re-conhecer passos e caminhos que o povo brasileiro dera no encalço de sua identidade.  Podiam ver descortinar-se diante de si os horizontes do futuro possível da ciência e da cultura que o acervo do Museu tornava possível em novos projetos ali gerados e gestados. 

            Depois do fogo restam as cinzas e a dor, que convivem com a esperança do que se pode resgatar, juntamente com a indignação que obriga a desejar e trabalhar para que a verdade venha à tona, negligências sejam apuradas e obscuridades  esclarecidas. Que a cultura brasileira sobreviva ao fogo.  E que a memória não nos deixe esquecer de nossa responsabilidade diante do mais precioso que temos: aquilo que somos e que nos tornamos ao longo da história que construímos. 

Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc)
   
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