por Eduardo Hoornaert
O
evangelho não é uma evidência.
Se
hoje vale a pena rememorar a vida de Helder Câmara, é principalmente no sentido
de nos mostrar que a descoberta do evangelho, por parte de um católico – seja
ele leigo, sacerdote ou bispo – não é uma evidência. Pelo contrário. Após sua
ordenação sacerdotal em 1931, Helder demora 24 anos para vislumbrar o
evangelho, tão poderoso se afigura o encobrimento da mensagem fundamental de
Jesus de Nazaré por meio de estruturas organizatórias e mentais a cobri-la e a
quase impedir a formulação da simples pergunta: ‘sou cristão?’. ‘Claro que sou
cristão, pois fui batizado e crismado e me casei na igreja’, eis a resposta
espontânea. O sacerdote acrescenta: ‘ fui ordenado padre’, e o bispo ‘fui
consagrado bispo’. É exatamente esse tipo de resposta que impede colocar certas
perguntas com clareza. A ilusão católica estende seu pesado manto sobre séculos
e mais séculos de mentalidade cristã. No caso dos católicos, ela constitui o
principal obstáculo ao evangelho.
Para
Helder Câmara, bispo auxiliar do Rio de Janeiro, nos primeiros meses do ano
1955, a coisa não é diferente. Nesses meses, ele se empenha numa tarefa que
exige todas as suas energias, todo o seu tempo: preparar o 36º Congresso
Eucarístico Internacional a ser celebrado entre 17 e 24 de julho.
Não se
discute a importância do momento que há de revelar, pela primeira vez, o Brasil
ao ‘mundo’. O Cardeal Leme ordena que dois de seus bispos auxiliares, Helder
Câmara e José Távora, se empenhem inteiramente na preparação do megaevento.
Helder trabalha mais de doze horas por dia, não se alimenta direito. Pois os
problemas aparecem: há de se apressar o aterramento na Praia do Flamengo, onde
se deve montar o palanque para as autoridades eclesiásticas. Como o governo
demora em terminar as obras, alegando falta de recursos, os bispos montam um
esquema de arrecadação de fundos junto a famílias católicas abastadas. Há de se
providenciar fileiras e mais fileiras de bancos de madeira (se alinhadas de
modo longitudinal, essas madeiras cobririam 96 km.), há de se preparar o
cortejo de Filhas de Maria, de Congregados Marianos, (ao lado da Eucaristia, o
Congresso homenageia Nossa Senhora Aparecida a ser trazida de São Paulo pelo
Cardeal Mota),.dos meninos e das meninas da Cruzada Eucarística, dos leigos e
leigas afiliados(as) a diversos movimentos da Ação Católica, do clero e do
episcopado a desfilar, nos dias marcados, pela Avenida Rio Branco, rumo à Praia
do Flamengo. Há de se embelezar as favelas que formarão o pano de fundo da
visão que os prelados internacionais convidados terão, a partir do palanque no
Aterro do Flamengo. Para tanto se organizam equipes a distribuir de graça latas
de tinta a pintar as casinhas. Há de se acompanhar os 109 Congressos
Eucarísticos paroquiais organizados pela Arquidiocese do Rio e por diversas
dioceses Brasil afora. O trabalho é tão exaustivo que o colega bispo auxiliar
José Távora não aguenta a pressão e é hospitalizado com problemas cardíacos.
Mas as equipes de Dom Helder, principalmente aquelas que são formadas por
mulheres, aguentam o rojão e fazem um trabalho maravilhoso. Finalmente, em
setembro, o Congresso Eucarístico Internacional é um enorme sucesso. Nos dias
marcados, a Avenida Rio Branco é uma beleza só, o Aterro na Praia do Flamengo
reluz no brilho dos uniformes, das bandeirinhas, dos cortejos, dos cânticos,
das adorações e das genuflexões. O Brasil nunca foi tão católico como em 1955.
No final, todo mundo concorda: grande parte do sucesso daquele Congresso provém
do gênio organizador e do empenho incansável de Helder Câmara.
O
Cardeal Gerlier entra em cena.
De
repente, no final do Congresso, um cardeal francês entra em cena. Prestes a
tomar o avião para volta à terra natal, ele se encontra com Dom Helder e lhe
diz, com outras palavras, que o palanque é vaidade e que as favelas pintadas –
em frente ao palanque dos bispos - são um engodo. Como diz o Qohelet (o
‘Eclesiástico) bíblico:
Vaidade
das vaidades
Tudo é
vaidade (v.2)
Uma
geração vem
Uma
geração vai.
Tudo
fica no mesmo (v. 4)
O que
foi será
O que
se fez se faz de novo.
Nada
de novo
Sob o
sol (v. 9)
Tudo
se esquece
Tudo
se vai (v. 11).
Os
biógrafos Piletti e Praxedes escrevem que, ‘poucos dias antes de retornar a seu
país, o Cardeal Gerlier (de Lyon, na França) fez questão de conversar com Dom
Helder. Depois de elogiá-lo pelo êxito do Congresso, o Cardeal resolveu lhe
lançar um apelo: ‘Permita-me falar-lhe como um irmão, um irmão no batismo, um
irmão no sacerdócio, um irmão no episcopado, um irmão em Cristo. Você não acha
que é irritante todo esse fausto religioso em uma cidade rodeada de favelas? Eu
tenho certa prática em organização e por ter participado desse Congresso devo
dizer-lhe que você tem um talento excepcional de organizador. Quero que faça
uma reflexão: por que, querido irmão Dom Helder, não coloca todo esse talento
de organizador que o Senhor lhe deu ao serviço dos pobres? Você deve saber que
o Rio de Janeiro é uma das cidades mais belas do mundo, mas é também uma das
mais espantosas, porque todas essas favelas, nesse quadro de beleza, são um
insulto ao criador’. E, segundo os mesmos historiadores, Helder
teria dito na hora:’Este é um momento de virada em minha vida. Todo o dom
que o Senhor confiou, colocarei a serviço dos pobres’ (Piletti, p.
233).
O
jornalista francês José de Broucker apresenta outra versão do momento: ‘Foi num
momento de glória e prestígio que Dom Helder ouviu do Cardeal Gerlier, presente
àquela solenidade, as seguintes palavras: ‘Eu tenho certa prática em
organização e por ter participado desse Congresso devo dizer-lhe que você tem
um talento excepcional de organizador. Por que o querido irmão não coloca todo
esse seu talento a serviço dos pobres?’ (de Broucker, J., ‘Les Conversions d’ un
Évêque’, Paris, Seuil, 1977). Sempre
segundo de Broucker, Helder teria lhe dito, ao comentar o ocorrido: Eu
beijei as mãos do cardeal e lhe disse: ‘Vou dedicar-me aos pobres! Não estou
certo de que tenha um talento particular de organizador, mas vou oferecer tudo
o que o Senhor me deu ao serviço dos pobres’.
É uma
‘Umwertung aller Werte’, como diria Nietzsche, uma ‘reviravolta de todos os
valores’. É verdade que a ‘Regra de vida’, concebida por Helder em tempos de
seminário (1924-1931), já contém sementes evangélicas, mas elas não encontram
terra propícia ao longo dos 24 primeiros anos de seu sacerdócio, pois são
abafadas por outros ‘valores’. Mas em 1955, um redemoinho toma conta da alma do
bispo Helder, a varrer certezas passadas e fazer emergir um futuro diferente. O
evangelho irrompe com a força de um furacão a varrer ilusões e mostrar novos
horizontes. Helder nunca mais será o mesmo. A partir de julho 1955, ele não tem
mais vontade de vestir a camisa verde dos integralistas, nem a estola
sacerdotal ou a mitra episcopal. Basta-lhe a batina surrada de cada dia, que o
aproxima dos sofridos 80 % da população brasileira silenciada e esquecida.
Os
momentos com o Cardeal Gerlier constituem, para Helder Câmara, um saudável
encontro com o que há de melhor na igreja da França. Pierre Gerlier (1880-1965)
é uma vocação sacerdotal tardia, arcebispo de Lião entre 1937 e 1965. Ele traz
consigo algumas iniciativas evangélicas em curso na França, inspiradas nas
ideias de Henri de Lubac (1896-1991: humanismo com Deus), Paul Couturier
(1881-1953: ecumenismo), Louis Joseph Lebret (1897-1966: economia e humanismo)
e Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955: integração entre teologia e ciência).
Iniciativas como o incipiente ‘mosteiro’ luterano em Taizé, a fraternidade
sacerdotal do Prado, com Monsenhor Ancel, o movimento dos Padres Operários,
revolução na relação entre sacerdócio e mundo do trabalho. Formado segundo o
modelo tridentino, Gerlier é um homem capaz de acolher as sementes do Vaticano
II (1962-1965) e o espírito do Papa João XXIII (1958-1963).
Esvanece,
na mente de Helder, a interminável procissão ao longo da Avenida Rio Branco, as
bandeiras e bandeirinhas, o longo cortejo de cardeais, arcebispos e bispos,
padres, religiosos e religiosas. Vaidade das vaidades. Onde está o Santíssimo
Sacramento, na hóstia consagrada ou nos operários que montam e desmontam os
palanques, instalam e desinstalam os serviços de luz e ampliação de som, nas
moças que servem cafezinhos aos bispos e agora voltam a ser catequistas nas
paróquias, nas meninas dos colégios tão impecavelmente alinhadas nas
procissões, nas crianças da Cruzada Eucarística, bandeirinhas nas mãos? Onde
está o Santíssimo Sacramento?
Em que
consiste exatamente a irrupção do evangelho?
A
irrupção do evangelho se manifesta de modo inequívoca nas chamadas
‘Bem-Aventuranças’ de Jesus de Nazaré, tais quais são registradas no capítulo 6
do Evangelho de Lucas, versículos 20 a 21. Peço licença para incluir aqui
algumas palavras acerca da tradução do termo grego ‘makarios’ (feliz) que se
encontra no dito Evangelho. Pois tudo depende de uma tradução justificada desse
termo. Sabemos que Jesus falava o aramaico e que, portanto, ‘makarios’ já é uma
tradução. Afinal, o que Jesus quis dizer quando chamou os pobres de ‘felizes’?
Considerando
o contexto de sua fala, há razões para traduzir o referido adjetivo por
‘ditoso’, ‘de boa sorte’. ‘Ditoso’ por corresponder a um ‘ditado’ divino, ‘de
boa sorte’ por constituir aquela parte da humanidade que é capaz de captar os
intentos divinos. Isso significa que os ricos mal captam os intentos divinos. A
fala de Jesus partiria, pois, da constatação que os planos divinos não estão
sendo realizados nas sociedades dos homens, classicamente caracterizadas pelo
predomínio dos poderosos e ricos sobre os fracos e pobres. Aliás, essa é uma
ideia que perpassa toda a Bíblia. O Deus da Bíblia subverte o ditame
tacitamente aceito da dominação do fraco pelo mais forte, do pobre pelo rico,
da viúva necessitada pelo juiz prepotente. É um Deus subversivo. Dentro dessa
lógica, o adjetivo grego ‘makarios’, tal qual figura no Evangelho de Lucas,
ganha um sentido político, constitui um apelo para que os pobres não só
compreendam sua importância na história da humanidade, mas tenham – acima disso
- a segurança de estarem alinhados com o plano divino. Uma compreensão que os
motiva a passar a agir em prol de sua libertação.
Dessa
compreensão resulta uma tradução do adjetivo ‘makarios’ por ‘em marcha!’,
‘avante!’, ‘mãos à obra!’, ‘não fiquem parados!’, ‘vocês verão chegar o reino
de Deus!’, que hoje se pode encontrar em algumas traduções de Lc 6, 20-21,
como, por exemplo, no texto de uma recente tradução francesa da Bíblia, a Bible
da Editora Bayard, Paris, 2001:
Vocês
têm sorte, vocês pobres!
O
reino de Deus é de vocês.
Vocês
têm sorte, vocês que têm fome!
Vocês
serão saciados.
Vocês
têm sorte, vocês que choram!
Pois
vocês vão rir (Lc 6, 20-21).
Ou, na
mesma linha:
Em
marcha, vocês pobres etc.
‘Não
se conformem com sua pobreza, sua fome e seu abatimento, superem a situação em
que se encontram, pois podem ter a certeza de contar com o apoio de Deus (‘o
reino de Deus é de vocês’).
As
‘Bem-Aventuranças’ se destacam diante de todas as formulações elaboradas em
prol da boa convivência entre pessoas e sociedades, desde o Código de Hamurabi
(século VII aC) até a recente Declaração dos Direitos Humanos (1948), no
sentido que não só falam da igualdade, mas da precedência dos pobres e
desfalecidos. Trata-se de uma declaração absolutamente inovadora e inaudita,
por parte de um camponês da Galileia chamado Jesus de Nazaré.
É
nesse sentido que o teólogo José Comblin, numa Conferência pronunciada no
Chile em 2005, fala em ‘bem-aventuranças políticas de Jesus’,
e comenta: ‘Essas
bem-aventuranças foram explicadas como palavras de consolo: ‘Consolem-se os
pobres, porque o reino de Deus pertence a vocês... no céu. Bem-aventurados os
que têm fome, porque se fartarão... no céu’. Seria como uma recompensa ou uma
consolação pela paciência que os pobres teriam tido durante sua vida terrestre.
Isso se repetiu durante séculos, até que os trabalhadores e os pobres do mundo
se rebelaram e perderam a confiança nos pregadores. No entanto, Jesus queria
dizer: ‘Pobres, levantem-se! Em marcha! Vocês verão chegar o reino de Deus! Que
se levantem os que estão com fome! Em marcha! Que conquistem a comida! Que se
levantem os que choram! Em marcha! Chegou o momento de rir’. Com essas
palavras, Jesus quis encorajar os pobres, mobilizar suas forças, dar-lhes
coragem diante da falta de esperança. Ele não queria aconselhar os pobres a
continuar esperando que uma mudança viesse do céu sem que eles fizessem nada,
como se a pobreza fosse em si uma virtude que Deus recompensaria! Essa foi a
interpretação das elites sociais, dos privilegiados. Muitas vezes, uma parcela
expressiva do clero simplesmente repetiu a interpretação dos poderosos, segundo
a qual se justificava a passividade dos pobres por razões religiosas. Esse foi
o grande escândalo da história. A mensagem que deveria elevar os espíritos dos
pobres foi desviada e serviu para mantê-los passivos. Eles foram ensinados a se
contentar com sua pobreza, em vez de convocá-los a lutar contra essa pobreza.
Foi a grande traição dos clérigos! Infelizmente, essa traição ainda continua em
muitos lugares que ainda cultivam o cristianismo antigo’. (Texto de José Comblin, mimeografado e publicado pelo movimento ‘También
somos Iglesia’, Chile, maio 2007. Veja Internet)
Fica
claro que Helder Câmara,
em 1955, não se expressa como os teólogos da libertação hoje. Afinal, temos de
esperar os anos 1960 para enontrar teólogos como Karl Rahner, que se distancia
aos poucos de formulações provenientes de um cristianismo privatizado e aponta
a dimensão política do evangelho. Temos de esperar a ‘Teologia Política’ do
alemão João Batista Metz, da segunda parte dos anos 1960, assim como a
‘Teologia da Libertação’ do peruano Gustavo Gutiérreza dos inícios dos anos
1970. Em 1955, essas novas teologias ainda não existem. Elas nem aparecem no
Concílio Vaticano II de 1962-1965. Como é de se esperar, o bispo auxiliar do
Rio de Janeiro entende o Sermão da Montanha num sentido assistencialista,
dentro do que, na época, se entende por ‘caridade’. As iniciativas que ele cria
após o evento de 1955 o demonstram. O fato básico é que os pobres passam a
constituir o centro das atenções de Helder Câmara. Essa é uma mudança radical,
cujos desdobramentos se verificam ao longo dos anos.
A
favela no centro das atenções.
Nos
últimos meses de 1955, Helder Câmara volta sua atenção às 150 favelas que
configuram o panorama da cidade de Rio de Janeiro. Ele desvia seu olhar, não só
do Palácio Catete, onde despacha o Presidente da República, mas também – o que
é mais relevante – do o Palácio São Joaquim, onde funciona a ‘cúria’ do
arcebispo. A ‘cidade maravilhosa’ lhe revela sua verdadeira fisionomia, feita
de fome, carência e muito sofrimento. Helder entende que as favelas hão de ser
‘urbanizadas’ e ‘humanizadas’, transformadas em lugares onde faz bem viver. Ele
descarta planos de urbanização que consistam em deslocar os pobres para
‘conjuntos habitacionais’ em áreas distantes da Zona Norte, longe da Zona Sul
burguesa (planos ulteriormente realizados pelo Governador Carlos Lacerda
(1960-1965), pois entende que as domésticas e os operários manuais necessitam
continuar morando perto de seus lugares de trabalho.
Imediatamente,
Helder pede a colaboradoras e colaboradores das lidas na preparação do
Congresso, que não abandonem seus postos, mas se empenhem doravante numa nova
tarefa, não menos importante: a urbanização e humanização das favelas. Já nos
primeiros dias após a conclusão do Congresso, toneladas de madeira cortada e planeada,
que serviam de assentos durante o Congresso, são distribuídas nas favelas. E no
dia 29 de outubro 1955, apenas 50 dias após a conclusão do Congresso, se cria a
Cruzada São Sebastião, um plano ambicioso no sentido de urbanizar as favelas do
Rio de Janeiro no curto prazo de dez anos, de modo que a cidade possa
comemorar, em 1966, já plenamente urbanizada, o seu quarto centenário.
Esse
plano é secundado, desde 1959, pelo ‘Banco da Providência’, uma
superintendência filantrópica para manter vivos trabalhos assistenciais
espalhados pela cidade e socorrer pessoas em situação de risco. Mais adiante,
essa iniciativa é completada pela ‘Feira da Providência’, na intenção de
abastecer com recursos angariados as atividades assistenciais apoiadas pelo
Banco.
Em seu
livro ‘Dom Hélder, misticismo e santidade’ (Civilização Brasileira, Rio de
Janeiro, 2002), o jornalista Marcos de Castro reproduz o depoimento de Marina
Bandeira, colaboradora do bispo auxiliar que acompanha de perto a Cruzada São
Sebastião desde os inícios. Ela mostra que Helder enxerga desde os inícios a
raiz do problema da habitação no Rio de Janeiro e percebe o alcance nacional da
questão. Ele enxerga a relação entre o Nordeste e a favelização no Rio e é um
dos primeiros, em nível nacional, a chamar a atenção dos políticos para a
questão da pobreza no Nordeste. Consegue sensibilizar, nos anos 1958-1060, o
próprio Presidente da República, Juscelino Kubitschek, e planeja com ele, já em
1958, em Campina Grande na Paraíba, um Encontro entre economistas e bispos, que
está na origem da ‘Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste’ (Sudene),
liderada pelo economista Celso Furtado (p.291).
Efetivamente,
em 1963, portanto apenas sete anos depois de iniciada a Cruzada São Sebastião,
quando ela alcança o resultado não desprezível da construção e entrega de 956
apartamentos, na Praia do Pinto e em Morro Azul, se constata que o déficit
habitacional da cidade, entre 1956 e 1963, em vez de diminuir, duplicou.
Colaboradoras e colaboradores do bispo Helder, como Marina Bandeira, constatam
que o problema habitacional, tal qual se apresenta em grandes cidades como Rio
de Janeiro, expõe uma questão que afeta o Brasil como um todo: a migração de
trabalhadores e trabalhadoras de zonas rurais do Brasil inteiro para grandes
cidades, na expectativa de encontrar trabalho e moradia. Trata-se de um
problema nacional. Rio de Janeiro oferece trabalho, sim, mas não moradia nem
salário digno. Os bairros pobres se entopem de gente. O bispo Helder percebe
que, para ter sucesso nessa nova empreitada, não basta talento de organizador
(realçado por Gerlier). Ele terá de recorrer a sua habilidade congênita (eu
quase digo ‘cearense’) de saber ‘dançar na corda bamba’, driblar, negociar,
contornar, lidar com autoridades nem sempre dispostas a partir com ele na
aventura evangélica. Terá de ser tático, aproveitar do momento, da intuição do
momento, intuir possibilidades concretas e aberturas inesperadas. Mas nem todos
entendem os posicionamentos do bispo desse modo. Muitos ficam desorientados, quando
não mal-intencionados no sentido de apresentar Helder como um farsante, um
enganador, uma figura ambígua que não merece confiança.
O
enigma Helder.
Muitos
não compreendem a reviravolta de 1955, nada sabem da irrupção do evangelho na
vida do bispo auxiliar do Rio de Janeiro. Ele se torna enigmático. Para uns é
‘popularesco’, populista, exibicionista, hipócrita. Para outros um profeta, um
santo. Quem é esse ‘bispinho’ que se sente tão à vontade em meio a políticos e
autoridades, que aborda com tanta fluência assuntos do momento, que se
‘intromete’ em tudo? Como entender uma personalidade ao mesmo tempo tão
midiática e tão modesta? Será um intruso, um farsante? Pois Helder, ao mesmo
tempo que se ‘intromete’, impressiona por sua humildade e se compara com o
‘jumentinho de Jesus’ (alusão à entrada triunfal de Jesus em Jerusalém). Sua
retórica, ao mesmo tempo que fascina, desorienta. Enfim, a maioria das pessoas
não encontra a chave de acesso ao segredo de Helder que, em última análise,
está no Sermão da Montanha.
Mesmo
pessoas insuspeitas como José De Broucker, editor da prestigiada revista
francesa ‘Informations Catholiques’, fascinado pela figura de Helder Câmara,
tem suas dúvidas. Nem se fala da ‘grande imprensa’ do Rio de Janeiro (o ‘Jornal
do Brasil’ e o ‘O Globo’), onde seus detratores de plantão, como Gustavo
Corção, Nelson Rodrigues e Plínio Corrêa de Oliveira, encontram amplo espaço.
Eles fustigam Helder sem cessar e exploram, nos mais diversos modos, a aparente
duplicidade entre diplomacia e humildade que caracteriza os comportamentos do
bispo, tratando-o incansavelmente de ‘demagogo’, ‘farsante’, ‘hipócrita’,
‘enganador das massas ignorantes’, ‘falsário’, ‘oportunista’. Helder se torna
opaco para grande parte da ‘inteligência’ brasileira, que faz questão de se
declarar ‘cristã’, mas na realidade vive uma ilusão do evangelho, um simulacro
da mensagem de Jesus de Nazaré. O exemplo mais claro da confusão (real ou
planejada) se encontra nas Crônicas do teatrólogo pernambucano Nelson
Rodrigues, radicado no Rio de Janeiro, diariamente publicadas no jornal O Globo
(muitas delas escritas na própria sala de edição do jornal) e que a Companhia
das Letras editou em 1993 sob o título ‘o Óbvio ululante’. Para quem lê hoje
essas Crônicas de 1968, a ignorância e petulância do escritor se evidencia,
assim como a perversidade da redação de um jornal que lança mão de Crônicas
para discriminar e ridicularizar as expressões de um catolicismo que tem a
coragem de se insurgir contra a ditadura reinante no país, com expressões como
Alceu Amoroso Lima, Helder Câmara e Hélio Pelegrino. Nas referidas Crônicas,
Nelson cita Helder 25 vezes, invariavelmente com comentários ‘óbvios’ e
‘ululantes’. A impressão que se tem é que Helder ronda a cabeça de Nelson que
nem uma mosca incômoda. Como esse ‘bispinho’ tem tanto sucesso e o ofusca, ele,
celebrado cronista?
Nelson
não consegue se livrar da imagem de Helder, que o persegue diariamente. Ele
repete até a exaustão: ‘Helder é puro espetáculo, não tem nenhum conteúdo, não
segue a razão’, ‘Dom Helder não se incomoda com a razão. Ele é capaz de se
ajoelhar aos pés de Barrabás e de cuspir na cara de Jesus’ (13/3/68, p. 189),
‘Dom Helder é um ator que galopa, arquejante, atrás de uma plateia’ (p. 221),
‘Dom Helder trocaria o paraíso por um único e escasso espetador. Nasceu no país
certo, pois o Brasil é o país do gesto, da inflexão, da ênfase, do grande
efeito plástico, a melhor plateia do mundo. Nas outras terras, o êxito passa
rápido. Aqui permanece’ (p. 229). Para Nelson, a única saída consiste em
apresentar Helder como um puro ‘ator’, um homem que daria sua alma ao demônio,
só para ocupar o palco. ‘Dom Helder é pura vaidade’ (p. 231), ‘ele é o ator’
(p. 231).
Em
1971, finalmente, o governo militar percebe que não adianta combater Helder
Câmara. É preciso torná-lo invisível e inaudível. As autoridades emitem uma
ordem, endereçada a todos os meios de comunicação em massa, proibindo
categoricamente que se mencione o nome Helder Câmara ou que ele apareça em
tela. Essa proibição, de certo modo, funciona até hoje. Uma medida que, de
certo modo, tem seus limites, pois o mundo de Nelson Rodrigues e de outros
jornalistas é o mundo dos gabinetes de redação, não da rua. Nelson esgrime como
se o Brasil todo esgrimisse com ele. Eis sua ilusão.
Problemas
com a Igreja.
Como
não pode deixar de ser, a partir de 1955 o bispo auxiliar Helder Câmara se
destaca entre seus pares. Para muitos se torna enigmático.
Em
1961, por exemplo, quando o Vaticano – em preparação ao Concílio Vaticano II -
envia a todos os bispos do mundo um questionário acerca dos grandes problemas
que assolam o mundo e a igreja, a maioria dos bispos afirma que ‘comunismo,
ateísmo, secularismo, protestantismo e espiritismo’ constituem os grandes
problemas do mundo. Helder se destaca. Para ele, o grande problema do mundo
consiste no fato que dois terços da humanidade vivem na pobreza e enfrenta
problemas endêmicos de fome, doença e habitação. Esse tipo de análise faz de
Helder Câmara um dos pouquíssimos homens do Concílio que têm ‘visão’, como
escreve o teólogo francês Yves Congar (1904-1995) em sua obra póstuma ‘Mon
Journal du Concile’ (Paris, Cerf, 2004).
Ao
participar do Concílio Vaticano II (1962-1965), Helder tem o cuidado de fazer
circular, entre suas amigas colaboradores do Rio de Janeiro, as famosas Cartas
Circulares, redigidas em grande parte durante as Vigílias noturnas (publicadas
pela Editora do Estado de Pernambuco). A primeira Carta se inicia
significativamente com as seguintes palavras: ‘O Concílio vai ser
dificílimo’. Ele percebe que fica difícil pensar no mundo dos pobres em
meio às pompas romanas. Ele vê o Vaticano como uma corte papal, a mais
impressionante corte do mundo ocidental. Com suas cortesias, diplomacias e
hipocrisias. Pela imensa Basílica de São Pedro galopa o Imperador Constantino
(do século IV), em cima de um cavalo fogoso. Helder tem ainda outro sonho: ele
se imagina o Papa jogando a tiara no Rio Tibre e vagando enlouquecido pelas
ruas de Roma, onde se encontra com prostitutas e ladrões. Dispensa embaixadores
e núncios e vai morar num apartamento, cedendo o Palácio do Vaticano à UNESCO
ou outro organismo internacional especializado em administrar museus.
Tudo
isso se pode ler nas Cartas Circulares, cuja leitura aconselho vivamente. A
cada página há alguma surpresa. Quando menos se espera aparece uma frase
absolutamente genial, ou de uma franqueza incomum. Assim, num determinado
momento, vendo como evolui o Concílio, Helder escreve: ‘com cardeais é
humanamente impossível trabalhar’ (I, 3, 268).
Seus
problemas com Roma se manifestam de modo crescente logo após a conclusão do
Concílio em 1965, quando seu nome começa a ressoar pelo mundo e que ele recebe
convites para falar pelo mundo afora acerca de um ‘outro’ mundo e de uma
‘outra’ Igreja. Chegam-lhe às mãos cartas de Roma solicitando que ele comunique
ao bispo local o programa da viagem, os roteiros, os contatos programados, etc.
Assim, ele só poderá se hospedar em casa de bispo ou casa religiosa. Com
espanto, Helder constata que ele é considerado, em Roma, um ‘rival’ de ‘Pedro’.
Quando vai percebendo que não é bem visto na igreja de Pedro e quando lhe
chegam cartas inquisidoras de Roma, ele se sente profundamente atingido: Quando
tenho a impressão que Roma não me entende ou não me apoia, sinto a terra faltar
debaixo dos pés (Piletti, N., & Praxedes, W., Dom Hélder Câmara,
Entre o Poder e a Profecia, Atica, São Paulo, 1997, 380). Piletti relata que,
certa vez, uma carta de Roma provoca tal mal-estar no bispo que é necessário
chamar um médico (ibidem, 427).
É com
amargura que Helder percebe que mesmo o Papa Paulo VI, que se diz seu amigo,
nutre desconfiança a seu respeito (um assunto que Helder sempre confidenciou
com muita discrição). Depois da morte de Paulo VI, na década de 1980, a pesada
mão do Papa João Paulo II se abate sobre o bispo brasileiro. E em 1984, quando
ele renuncia por motivos de idade, Roma envia a Recife um sucessor que recebe o
encargo de apagar todos os eventuais vestígios de uma emergente ‘outra’ Igreja.
É a volta à ‘grande disciplina’.
Evangelho
e religião.
A
irrupção do evangelho na vida de Helder Câmara faz com que ele perceba, mesmo
sem comentar o assunto por palavras, a distinção entre evangelho e religião.
Ele ‘dança em corda bamba’, mas não explica como. Com sua habitual astúcia
(peço perdão, caso essa palavra soar irreverente, mas não encontro melhor), ele
sabe que explicitar verbalmente temas controversos costuma criar problemas. Mas
seu teólogo preferido, o sacerdote belga José Comblin, que colabora
estreitamente com ele entre 1965 e 1972, explicita a coisa com todas as
palavras, por ocasião de uma Conferência pronunciada onze anos após a morte de
Helder, no dia 18 de março de 2010 em San Salvador (América Central), no
contexto da celebração dos trinta anos do martírio do bispo Romero (veja
Revista Latino-Americana de Teologia, edição especial, n 80, maio-agosto de
2010, intitulado ‘Fé e política. Problema do método teológico’).
Eis o
que diz José Comblin: ’A religião está baseada na distinção entre o sagrado e o
profano. Mas Jesus não faz essa distinção. Ele veio para mostrar o caminho para
que o sigamos. Isso é o básico, é o evangelho. A maioria, dos que hoje seguem o
cristianismo, não trilha o caminho de Jesus, mas está no outro polo, na
religião, ou seja, se dedica à doutrina, ensina a doutrina, defende a doutrina
contra os hereges e as heresias. Essa foi uma das grandes tarefas a partir do
século IV: praticar os ritos e formar a classe sagrada, a classe sacerdotalT.
Até Constantino (século IV) não havia distinção entre pessoas sagradas e
profanas. Todos eram leigos. O clero como classe separada é uma invenção de
Constantino. A partir desse momento só se fala em religião, como se a religião
fosse a introdução ao evangelho. Mas a diferença é fundamental: o evangelho se
vive na vida real, material, social, enquanto a religião se vive num mundo
simbólico. Tudo é simbólico: doutrina, ritos, sacerdotes. As religiões estão
sempre associadas a uma cultura. Por exemplo, a religião católica atual está
ligada à subcultura clerical romana que a modernidade marginalizou, que está em
plena decadência porque seus membros não quiseram entrar na cultura moderna. O
evangelho é renúncia ao poder e a todos os poderes que existem na sociedade. A
religião busca o poder e o apoio do poder’. Com essa citação, que explicita de
modo cabal como opera, no fundo, a irrupção do evangelho na vida de Helder
Câmara, termino este texto.
Eduardo
Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da
Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA).
Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens,
especificamente os dois primeiros séculos.
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