Maria Clara Lucchetti Bingemer
Há cinco dias, os helicópteros cruzam os céus de Brumadinho. Voam sobre a
lama da barragem que rompeu e arrastou vidas humanas, animais, vegetais, tudo
enfim que era vivo e respirava. Derrubou construções erguidas em nome do
progresso e da arte. Arrastou planos, projetos, futuro, memória. Soterrou
sonhos, alegrias, confiança, esperança. A barragem que rompeu ainda não chegou
ao seu destino. Busca caminho até o mar e enquanto isso polui o rio e
destrói a vida e o futuro das comunidades que dele vivem.
Os helicópteros têm outro destino que não o mar. Voam para resgate de
vivos e mortos. Chegam onde estão bombeiros e cães farejadores. E
estes lhes entregam mais um corpo para transportar. Os helicópteros levantam
aquele corpo do solo que o sepultou na lama assassina. E cada vez que alçam voo
levando pendurada em sua fuselagem a macabra e sagrada carga que devem fazer
chegar ao necrotério, ao caixão, ao sepultamento, escrevem também nos céus a
indignação de todo um povo. Juntamente com o respeito pelas vidas que se
foram e agora se dirigem à sua última morada, o Brasil experimenta dor e
raiva. Treme e se revolta pela tragédia anunciada e nunca
justificada.
A Samarco ainda não purgou seu desastre de três
anos atrás e este acontece outra vez e em maior escala. Os presidentes,
diretores, técnicos, supervisores dão as mesmas explicações. Ou talvez
nem sequer as deem. Murmuram um discurso tão sem sentido quanto
vazio. Simplesmente porque não há explicação possível. Não há
justificativa para que a exploração das minas vá pouco a pouco dando mordidas e
dentadas crescentemente vorazes nas montanhas. As montanhas que formam a
paisagem das Minas e inspiraram poetas e escritores geniais agora são túmulo de
centenas de vítimas que a lama soterrou e sufocou.
A consciência do que se passou é muito clara.
Não se trata de desastre ambiental quando a natureza se desordena e se enfurece
e despeja um tsunami, uma erupção vulcânica sobre cidades e paisagens. Ou
quando a terra treme e se abre, tragando vidas inesperadamente. Não, não
se trata de algo incontrolável e para além das possibilidades de previsão e
cuidado humanos. Trata-se de um crime. Fruto da ganância, da
cobiça, da irresponsabilidade. Tal como as minas de Potosí no Alto Peru, hoje Bolívia,
foram comparadas à garganta de Moloch, que engolia as vidas dos mineiros que
nela trabalhavam, as mineradoras do estado das Minas Gerais fazem barragens
inseguras e frágeis, que se rompem e vomitam a morte sobre todo o ambiente e os
seres vivos que encontram pelo caminho.
Diante do tamanho do desastre e da tragédia, as
palavras faltam. Mas a poesia ajuda. E nela há não apenas lira e canto, mas
também denúncia e profecia. O poeta maior Carlos Drummond de Andrade,
itabirano de nascimento, contemplou muito as montanhas de
Minas. Pressentiu o que ali aconteceria e profetizou com versos as
tragédias que o Brasil vive nos últimos anos com Mariana e agora
Brumadinho.
Poeta e profeta, Drummond recorda que se o Rio é
doce, a Vale é amarga. Essa que se chamou Vale do Rio doce e hoje é
conhecida apenas como Vale é identificada pelo poeta com estatais,
multinacionais e muitos ais. Ais que se fizeram ouvir em Mariana, em
2015, e agora enchem o espaço de Brumadinho. Ais do peito das mães e
esposas que choram as perdas irreparáveis que a lama levou. Ais das moças
grávidas cujos maridos jazem insepultos e desaparecidos sob a lama de
rejeitos.
A “Lira itabirana” de Drummond fala também de
dívida, interna, externa e eterna. A dívida obriga a correr atrás do lucro,
a antecipar prazos e tomar decisões errôneas que têm as consequências mortais
que se conhece. E se graças à mineradora, toneladas de ferro exportamos, mais
volumosas são as lágrimas que disfarçamos. Sem berro, acrescentará o
poeta, conhecedor da resiliência infinita do mineiro, do brasileiro. Infinita e
eterna é a dívida das mineradoras para com as vidas que a lama assassina e
carregada de rejeitos interrompeu brutalmente.
Drummond pressentiu a destruição de sua cidade, de
suas montanhas natais pela ação voraz e irresponsável das mineradoras. Por
isso, sua Itabira lhe doía tanto. Por isso lá não voltava. Porque
talvez não conseguisse disfarçar as lágrimas sem berro. Pois com o
enlouquecimento da mineração, suas Minas o feriam ao perceber no coração da
riqueza do minério a cobiça despertada e a escritura “de hipoteca e usura”
maculando o amor pela terra natal.
Os helicópteros continuam seu triste trabalho. O
risco alado de seu voo repete o refrão que constrange o coração do Brasil: o
rio é doce, a Vale amarga.
Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia
da PUC-Rio e autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da
compaixão" (Edusc), entre outros livros
Copyright 2019 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução
deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem
autorização. Contato: agape@puc-rio.br>
Nenhum comentário:
Postar um comentário