Por Marcelo Barros
Parece atual esse título do filme de Carlos
Diegues (1972), baseado em música do Chico Buarque que saiu em álbum da MPB com
Chico, Nara Leão e Maria Bethânia. A letra irônica e provocativa dizia: “Quem me vê sempre parado, distante, garante que eu não sei sambar. Tou
me guardando pra quando o Carnaval chegar”.
Agora, o cineasta pernambucano Gabriel
Mascaro está nos festivais de filmes na Europa com um documentário que se chama
“Estou me guardando para quando o Carnaval chegar”. Conta como uma pequena
cidade do interior do estado sobrevive da confecção de roupas para o Carnaval.
Esse Brasil de 2019 vive um tempo no qual o Carnaval vem, como nunca antes,
misturado com tragédias de barragens de lama e o clima de uma sociedade que
parece imersa em uma lama de ódio que considera normal a injustiça da
desigualdade e usa a bandeira da corrupção para destilar o ódio e a
intolerância como formas de política.
Apesar disso, é tempo de folia e o povo
tem a sabedoria de não renunciar ao direito da festa e da brincadeira. No Rio
de Janeiro, Olinda, Salvador e outras cidades tradicionais, os blocos já estão
nas ruas. Através do frevo e do samba, as pessoas superam as dores do cotidiano
e as frustrações da Política. Ainda há quem veja nisso mera alienação. Alguns
grupos religiosos condenam o mundanismo. Julgam o Carnaval como produto do
diabo. Não há dúvidas de que o Capitalismo faz de tudo mercadoria. No Carnaval,
esse sistema explora um erotismo simplesmente comercial. Fomenta o uso
exagerado de bebidas e mesmo de drogas. Tudo isso cria um circulo vicioso com a
violência urbana que explode em alguns fenômenos de massa quando não bem
canalizados. No entanto, apesar desses problemas reais e sérios, toda festa reúne
pessoas em uma expressão de confraternização e alegria. Por isso, tem uma
dimensão nobre e, podemos mesmo dizer: espiritual.
De um modo ou de outro, todas as culturas
valorizam a festa como sinal e antecipação do pleno e definitivo encontro com a
divindade. Jesus afirmou que o reinado divino vem ao mundo, qual uma música
deliciosa que convida todos a dançarem. Ele se queixa de sua geração que parece
com pessoas que, mesmo ao som da música, não dançam. Ficam indiferentes (Lc 7,
31- 32). Ninguém deveria ficar apático diante dos sinais do amor e da comunhão
humana que tornam a vida, mesmo sofrida, festa de alegria, inspirada pelo
Espírito. Conforme o quarto evangelho, Jesus começou a anunciar o reinado
divino no mundo, transformando água em vinho, para que não faltasse alegria em
uma festa de casamento (Jo 2).
As pessoas e comunidades marcam a vida
pela cadência das festas, como
aniversário, casamento e formatura. O que caracteriza a festa é a
liberdade de brincar, o direito de subverter a rotina e de expressar alegria e
comunhão, através de uma comida gostosa, a música contagiante e a dança que
unifica corpo e espírito.
Na Bíblia, se conta que, quando a arca da
aliança foi transferida das montanhas para Jerusalém, “o rei Davi dançava
alegremente”. Davi dançou para agradecer a bênção divina sobre o povo. Vários
salmos aludem à dança e a alegria da festa como formas de oração. Apesar disso,
a dança acabou não sendo valorizada nas liturgias. Nas sinagogas, o uso variou
muito, de acordo com o tempo. Em épocas recentes, principalmente em festas como
a da Simchá Torá, a festa da “alegria da Lei”, no nono
dia depois da festa das Tendas (Sucot), a dança é o rito central. Em um artigo
na internet, o rabino Nilton Bonder explica: “Nós
dançamos com a Torá e não nos damos conta como dançamos com a vida e de que a
dança revela muito”. A dança é mais do que um método. É
caminho de meditação interior e comunitária. Indica abertura do ser humano a
uma dimensão de transcendência. No Brasil, as danças são ancestralmente
praticadas pelas religiões indígenas e afrodescendentes. Muitas vezes, além de
ser uma forma de orar com o corpo, servem também como instrumentos de cura e
equilíbrio para a vida.
As formas mais conhecidas de danças
sagradas espalhadas pelo mundo vêm do Oriente e são a Hatha Yoga, T´ai Chi e as
danças do Dervixe na tradição mística Sufi (muçulmana). Um dervixe disse ao
escritor grego Nikos Kazantzakis: “Bendizemos ao Senhor, dançando.
A dança mata o ego e uma vez que o ego é morto não há mais obstáculos que o
impeçam de se unir a Deus”.
Lamentavelmente ao se falar de dança sagrada, corre-se o risco de separar
o sagrado e o profano, como se houvesse uma dança santa e a outra mundana. É
claro que, como toda atividade humana, a dança também pode ser
instrumentalizada em espetáculos de mau gosto. Entretanto, se, em seu erotismo,
ela é humana, repõe as energias do amor em um equilíbrio unificador da pessoa e
da comunidade. Desse modo, toda dança é sinal da bênção divina e instrumento de
cura do corpo e do espírito. Tanto no Carnaval, como no dia a dia, é importante
valorizar os ritmos, músicas e danças de cada cultura.
Através da música “Quando o Carnaval chegar”, ainda nos anos 70, Chico
Buarque tomava o Carnaval como parábola da festa da libertação. Apesar de que
superamos a ditadura militar da década de 1970, parece que o Brasil de hoje
retoma o militarismo e a ordem unida como formas de política. Ainda falta muito
para alcançarmos a igualdade social e uma justiça que signifique uma verdadeira
libertação para todo nosso povo. Por isso, continua válida a esperança proposta
nas imagens da música de Chico, cantada no filme. É bom que, mesmo brincando
nos blocos e desfiles de agora, não deixemos de esperar e nos preparar para o Carnaval
definitivo, mais profundo e transformador da vida.
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