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terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

“QUANDO O CARNAVAL CHEGAR”



Por Marcelo Barros

Parece atual esse título do filme de Carlos Diegues (1972), baseado em música do Chico Buarque que saiu em álbum da MPB com Chico, Nara Leão e Maria Bethânia. A letra irônica e provocativa dizia: “Quem me vê sempre parado, distante, garante que eu não sei sambar. Tou me guardando pra quando o Carnaval chegar”.

Agora, o cineasta pernambucano Gabriel Mascaro está nos festivais de filmes na Europa com um documentário que se chama “Estou me guardando para quando o Carnaval chegar”. Conta como uma pequena cidade do interior do estado sobrevive da confecção de roupas para o Carnaval. Esse Brasil de 2019 vive um tempo no qual o Carnaval vem, como nunca antes, misturado com tragédias de barragens de lama e o clima de uma sociedade que parece imersa em uma lama de ódio que considera normal a injustiça da desigualdade e usa a bandeira da corrupção para destilar o ódio e a intolerância como formas de política. 

Apesar disso, é tempo de folia e o povo tem a sabedoria de não renunciar ao direito da festa e da brincadeira. No Rio de Janeiro, Olinda, Salvador e outras cidades tradicionais, os blocos já estão nas ruas. Através do frevo e do samba, as pessoas superam as dores do cotidiano e as frustrações da Política. Ainda há quem veja nisso mera alienação. Alguns grupos religiosos condenam o mundanismo. Julgam o Carnaval como produto do diabo. Não há dúvidas de que o Capitalismo faz de tudo mercadoria. No Carnaval, esse sistema explora um erotismo simplesmente comercial. Fomenta o uso exagerado de bebidas e mesmo de drogas. Tudo isso cria um circulo vicioso com a violência urbana que explode em alguns fenômenos de massa quando não bem canalizados. No entanto, apesar desses problemas reais e sérios, toda festa reúne pessoas em uma expressão de confraternização e alegria. Por isso, tem uma dimensão nobre e, podemos mesmo dizer: espiritual.

De um modo ou de outro, todas as culturas valorizam a festa como sinal e antecipação do pleno e definitivo encontro com a divindade. Jesus afirmou que o reinado divino vem ao mundo, qual uma música deliciosa que convida todos a dançarem. Ele se queixa de sua geração que parece com pessoas que, mesmo ao som da música, não dançam. Ficam indiferentes (Lc 7, 31- 32). Ninguém deveria ficar apático diante dos sinais do amor e da comunhão humana que tornam a vida, mesmo sofrida, festa de alegria, inspirada pelo Espírito. Conforme o quarto evangelho, Jesus começou a anunciar o reinado divino no mundo, transformando água em vinho, para que não faltasse alegria em uma festa de casamento (Jo 2).

As pessoas e comunidades marcam a vida pela cadência das festas, como  aniversário, casamento e formatura. O que caracteriza a festa é a liberdade de brincar, o direito de subverter a rotina e de expressar alegria e comunhão, através de uma comida gostosa, a música contagiante e a dança que unifica corpo e espírito. 

Na Bíblia, se conta que, quando a arca da aliança foi transferida das montanhas para Jerusalém, “o rei Davi dançava alegremente”. Davi dançou para agradecer a bênção divina sobre o povo. Vários salmos aludem à dança e a alegria da festa como formas de oração. Apesar disso, a dança acabou não sendo valorizada nas liturgias. Nas sinagogas, o uso variou muito, de acordo com o tempo. Em épocas recentes, principalmente em festas como a da Simchá Torá, a festa da “alegria da Lei”, no nono dia depois da festa das Tendas (Sucot), a dança é o rito central. Em um artigo na internet, o rabino Nilton Bonder explica: “Nós dançamos com a Torá e não nos damos conta como dançamos com a vida e de que a dança revela muito”. A dança é mais do que um método. É caminho de meditação interior e comunitária. Indica abertura do ser humano a uma dimensão de transcendência. No Brasil, as danças são ancestralmente praticadas pelas religiões indígenas e afrodescendentes. Muitas vezes, além de ser uma forma de orar com o corpo, servem também como instrumentos de cura e equilíbrio para a vida.

As formas mais conhecidas de danças sagradas espalhadas pelo mundo vêm do Oriente e são a Hatha Yoga, T´ai Chi e as danças do Dervixe na tradição mística Sufi (muçulmana). Um dervixe disse ao escritor grego Nikos Kazantzakis: “Bendizemos ao Senhor, dançando. A dança mata o ego e uma vez que o ego é morto não há mais obstáculos que o impeçam de se unir a Deus”.

Lamentavelmente ao se falar de dança sagrada, corre-se o risco de separar o sagrado e o profano, como se houvesse uma dança santa e a outra mundana. É claro que, como toda atividade humana, a dança também pode ser instrumentalizada em espetáculos de mau gosto. Entretanto, se, em seu erotismo, ela é humana, repõe as energias do amor em um equilíbrio unificador da pessoa e da comunidade. Desse modo, toda dança é sinal da bênção divina e instrumento de cura do corpo e do espírito. Tanto no Carnaval, como no dia a dia, é importante valorizar os ritmos, músicas e danças de cada cultura.

Através da música “Quando o Carnaval chegar”, ainda nos anos 70, Chico Buarque tomava o Carnaval como parábola da festa da libertação. Apesar de que superamos a ditadura militar da década de 1970, parece que o Brasil de hoje retoma o militarismo e a ordem unida como formas de política. Ainda falta muito para alcançarmos a igualdade social e uma justiça que signifique uma verdadeira libertação para todo nosso povo. Por isso, continua válida a esperança proposta nas imagens da música de Chico, cantada no filme. É bom que, mesmo brincando nos blocos e desfiles de agora, não deixemos de esperar e nos preparar para o Carnaval definitivo, mais profundo e transformador da vida.  


 MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais  “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br


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