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segunda-feira, 22 de abril de 2019

AS ENCHENTES NO RIO E A MUDANÇA CLIMÁTICA




Por Maria Clara Lucchetti Bingemer

Já em 1959 Moreira da Silva compôs o samba Cidade Lagoa, falando das enchentes constantes que alagam a Cidade Maravilhosa.Basta que chova, mais ou menos meia hora/ É batata, não demora, enche tudo por aí/ Toda a cidade é uma enorme cachoeira/ Que da Praça da Bandeira/Vou de lancha ao Catumbi reza a letra de Kid Morengueira. Parece descrever o que se experimenta nestes primeiros meses do ano.

Uma vez mais o Rio experimenta essa maldição de ficar à mercê da força das águas que caem abundantes e descontroladas em mais um temporal dentre os muitos que se abatem sobre sua urbe. E infelizmente não de forma  poética ou jocosa como no samba de Moreira da Silva, mas trágica. Saldo de dez mortes e muitos desabrigados; medo e insegurança; destruição e perda; é o que fica de mais um temporal que vira enchente e arrasta consigo a precária tranquilidade da vida carioca.

Vulnerabilizada pelo descaso e a má administração, a cidade tem bueiros entupidos, manutenção atrasada ou inexistente.  O prefeito manda para a rua 20 homens esperando que cuidem de uma catástrofe que requereria ao menos 200. Em alguns dos pontos mais prejudicados, onde a água ainda faz estragos enormes, não se enxerga ninguém da prefeitura.  Às vezes algum carro de bombeiros.  Mas nada das unidades de emergência designadas para auxiliar em momentos de catástrofes.

À incompetência e à ineficácia humanas se junta, porém, outro fator, mais profundo e mais sério.  Está na origem destes desastres naturais que constantemente ceifam vidas e encurtam a saúde do planeta. Trata-se da mudança climática, consequência de contínuas e cruéis agressões à Mãe Terra e ao meio ambiente. O aquecimento global decorrente deste estado de coisas faz com que o tempo fique mais quente e as águas do mar igualmente.  Assim, quando alguma frente fria se encontra com esse calor maior provoca chuvas em volume superior ao que antes havia.

É a natureza mandando a conta e pedindo contas da irresponsabilidade com que vem sendo tratada ao longo de tanto tempo. Pressionada e sugada em seus recursos, responde com a incapacidade de gerir com suavidade e benevolência o ambiente onde vivem os seres todos e também os humanos.  E o resultado é o que vemos: o aumento exponencial dos desastres naturais em paralelo com o crescimento de nosso despreparo para com eles lidar.
Há muitos anos esse estado de coisas vem preocupando intelectuais, estudiosos e ativistas no mundo inteiro.  Documentos foram escritos, livros, artigos, bibliotecas inteiras.  Encontros e congressos promovidos, suas resoluções publicadas e divulgadas.  Há poucos anos atrás, uma voz se levantou para reforçar toda essa preocupação mundial e novamente chamar nossa atenção para o perigo em que estamos jogando o planeta.

A encíclica Laudato Si, do Papa Francisco, é indubitavelmente um marco qualitativamente novo e de superior importância na história do Ensino Social da Igreja. Nela o pontífice alerta dramaticamente para o absurdo de se persistir com o estilo de vida consumista e predatório que destrói os recursos naturais e ameaça o futuro de todos os seres vivos no planeta.

Ao número 23 do documento, o Papa menciona o aquecimento climático como fonte de inúmeras desordens nocivas e mesmo letais para a sobrevivência na terra. "Há um consen­so científico muito consistente, indicando que estamos perante um preocupante aquecimento do sistema climático. Nas últimas décadas, este aquecimento foi acompanhado por uma elevação constante do nível do mar, sendo difícil não o re­lacionar ainda com o aumento de acontecimentos meteorológicos extremos, embora não se possa atribuir uma causa cientificamente determinada a cada fenômeno particular."

Aí estamos nós diante de acontecimentos meteorológicos extremos: inundações provocadas por chuvas que levantam asfalto, arrastam carros, deslizam encostas, soltam pedras, afogam vidas, esperanças e enlutam famílias.  O Papa indica como agir, de nossa parte, para combater esse perigo: "A humanidade é chamada a tomar consciência da necessidade de mudanças de estilos de vida, de produção e de consumo, para combater este aquecimento ou, pelo menos, as causas humanas que o produzem ou acentuam... numerosos estudos científicos indicam que a maior parte do aquecimento global das últimas décadas é devida à alta concentração de gases com efeito estufa (anidrido carbônico, metano, óxido de azoto e outros), emitidos sobretudo por causa da ativi­dade humana".

Acrescentaríamos na descrição dessa atividade humana tão prejudicial à vida nossos maus hábitos de poluir rios, tratar com descaso a seleção do lixo, consumir água para além do necessário, desmatar e destruir o verde etc. Se, por um lado, é legítimo reclamar das autoridades e denunciar sua incompetência, por outro é bom olhar para si mesmo e conscientizar-se de que uma parte da responsabilidade pelos constantes desastres ecológicos que nos acometem é nossa.  Não temos sabido zelar pela casa comum, nossa mãe terra, na qual vivemos à graça da criação divina. Que essas chuvas e o rastro de dor que deixaram possam ser para nós impulso de conversão nessa Quaresma que ainda caminha em direção à Páscoa.

  Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc)


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