Por Maria Clara Lucchetti
Bingemer
Já em 1959 Moreira da Silva
compôs o samba Cidade Lagoa, falando das enchentes constantes que alagam a
Cidade Maravilhosa.Basta que chova, mais ou menos meia hora/ É batata, não
demora, enche tudo por aí/ Toda a cidade é uma enorme cachoeira/ Que da Praça da
Bandeira/Vou de lancha ao Catumbi reza a letra de Kid Morengueira. Parece
descrever o que se experimenta nestes primeiros meses do ano.
Uma vez mais o Rio
experimenta essa maldição de ficar à mercê da força das águas que caem
abundantes e descontroladas em mais um temporal dentre os muitos que se abatem
sobre sua urbe. E infelizmente não de forma poética ou jocosa como no
samba de Moreira da Silva, mas trágica. Saldo de dez mortes e muitos
desabrigados; medo e insegurança; destruição e perda; é o que fica de mais um
temporal que vira enchente e arrasta consigo a precária tranquilidade da vida
carioca.
Vulnerabilizada pelo descaso
e a má administração, a cidade tem bueiros entupidos, manutenção atrasada ou
inexistente. O prefeito manda para a rua 20 homens esperando que cuidem
de uma catástrofe que requereria ao menos 200. Em alguns dos pontos mais
prejudicados, onde a água ainda faz estragos enormes, não se enxerga ninguém da
prefeitura. Às vezes algum carro de bombeiros. Mas nada das unidades
de emergência designadas para auxiliar em momentos de catástrofes.
À incompetência e à
ineficácia humanas se junta, porém, outro fator, mais profundo e mais
sério. Está na origem destes desastres naturais que constantemente ceifam
vidas e encurtam a saúde do planeta. Trata-se da mudança climática,
consequência de contínuas e cruéis agressões à Mãe Terra e ao meio ambiente. O
aquecimento global decorrente deste estado de coisas faz com que o tempo fique
mais quente e as águas do mar igualmente. Assim, quando alguma frente
fria se encontra com esse calor maior provoca chuvas em volume superior ao que
antes havia.
É a natureza mandando a
conta e pedindo contas da irresponsabilidade com que vem sendo tratada ao longo
de tanto tempo. Pressionada e sugada em seus recursos, responde com a
incapacidade de gerir com suavidade e benevolência o ambiente onde vivem os
seres todos e também os humanos. E o resultado é o que vemos: o aumento
exponencial dos desastres naturais em paralelo com o crescimento de nosso
despreparo para com eles lidar.
Há muitos anos esse estado
de coisas vem preocupando intelectuais, estudiosos e ativistas no mundo
inteiro. Documentos foram escritos, livros, artigos, bibliotecas
inteiras. Encontros e congressos promovidos, suas resoluções publicadas e
divulgadas. Há poucos anos atrás, uma voz se levantou para reforçar toda
essa preocupação mundial e novamente chamar nossa atenção para o perigo em que
estamos jogando o planeta.
A encíclica Laudato Si,
do Papa Francisco, é indubitavelmente um marco qualitativamente novo e de
superior importância na história do Ensino Social da Igreja. Nela o pontífice
alerta dramaticamente para o absurdo de se persistir com o estilo de vida
consumista e predatório que destrói os recursos naturais e ameaça o futuro de todos
os seres vivos no planeta.
Ao número 23 do documento, o
Papa menciona o aquecimento climático como fonte de inúmeras desordens nocivas
e mesmo letais para a sobrevivência na terra. "Há um consenso
científico muito consistente, indicando que estamos perante um preocupante
aquecimento do sistema climático. Nas últimas décadas, este aquecimento foi
acompanhado por uma elevação constante do nível do mar, sendo difícil não o relacionar
ainda com o aumento de acontecimentos meteorológicos extremos, embora não se
possa atribuir uma causa cientificamente determinada a cada fenômeno
particular."
Aí estamos nós diante de
acontecimentos meteorológicos extremos: inundações provocadas por chuvas que
levantam asfalto, arrastam carros, deslizam encostas, soltam pedras, afogam
vidas, esperanças e enlutam famílias. O Papa indica como agir, de nossa
parte, para combater esse perigo: "A humanidade é chamada a tomar
consciência da necessidade de mudanças de estilos de vida, de produção e de
consumo, para combater este aquecimento ou, pelo menos, as causas humanas que o
produzem ou acentuam... numerosos estudos científicos indicam que a maior
parte do aquecimento global das últimas décadas é devida à alta concentração de
gases com efeito estufa (anidrido carbônico, metano, óxido de azoto e outros),
emitidos sobretudo por causa da atividade humana".
Acrescentaríamos na
descrição dessa atividade humana tão prejudicial à vida nossos maus hábitos de
poluir rios, tratar com descaso a seleção do lixo, consumir água para além do
necessário, desmatar e destruir o verde etc. Se, por um lado, é legítimo
reclamar das autoridades e denunciar sua incompetência, por outro é bom olhar
para si mesmo e conscientizar-se de que uma parte da responsabilidade pelos
constantes desastres ecológicos que nos acometem é nossa. Não temos
sabido zelar pela casa comum, nossa mãe terra, na qual vivemos à graça da
criação divina. Que essas chuvas e o rastro de dor que deixaram possam ser para
nós impulso de conversão nessa Quaresma que ainda caminha em direção à Páscoa.
Maria Clara
Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e
autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da
compaixão" (Edusc)
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