Por Frei Betto
Uma observação de Voltaire (1694-1778) ressalta por que tantas pessoas emitem
ofensas nas redes digitais e, assim, revelam mais a respeito do próprio caráter
do que do perfil de quem é desrespeitado. “Ninguém se envergonha do que faz em
conjunto”, escreveu em “Deus e os homens”.
Isso explica a insanidade dos linchamentos virtuais e a violência gerada pelo
preconceito, como bem demonstra o filme “Infiltrado na Klan”, de Spike Lee,
vencedor do Oscar de melhor roteiro adaptado em 2019.
Muitos de nós jamais ofenderíamos pessoalmente um interlocutor com injúrias e
palavrões. No entanto, há quem seja capaz de replicar nas redes digitais
ofensas a inúmeras pessoas, sem sequer se dar ao trabalho de apurar se a
informação procede.
Ao ser humano é dada a capacidade de discernimento, atributo que lhe permite o
exercício da liberdade. Há, contudo, quem prefira abdicar desse direito de
optar livremente. Prefere deixar que as decisões sejam tomadas pelo líder, guru
ou mentor do grupo social com a qual a pessoa se identifica. Opta pela
“servidão voluntária”, na expressão de La Boétie (1530-1563). E todos que não
comungam o seu credo são considerados inimigos, hereges ou traidores, e devem
ser varridos da face da Terra.
Essa submissão de si à vontade do outro ocorre em partidos políticos, empresas,
associações e, sobretudo, em segmentos religiosos. No caso de Igrejas, a
dominação ideológica é legitimada pela suposta vontade de Deus ecoada pela voz
do pastor ou do padre. Assim, difunde-se uma perigosa teodiceia pela qual tudo
se explica pela lógica divina, ainda que a humana não consiga digeri-la.
Se há uma catástrofe como a de Brumadinho, se estou desempregado, se perco um
filho atingido por bala “perdida”, não devo protestar ou lamentar. Deus tinha
algo em mente para permitir que tais desgraças acontecessem. Assim a teodiceia
se transforma em panaceia.
É o recurso da apatia como anestesia da consciência. O exemplo paradigmático é
o extermínio das vítimas do nazismo. A ordem genocida não saía da cabeça de um
tresloucado, e sim de quem tinha plena (e tranquila) consciência do que fazia,
como demonstrou Hannah Arendt.
A ordem inicial se desdobrava em sequência. Um dirigia o caminhão até o
alojamento dos presos; outro os encaminhava ao veículo; outro ordenava se
despirem e distribuía toalhas e sabão; outro apertava o botão vermelho; e, por
fim, um grupo retirava os corpos da câmara de gás sem a menor ideia por que
foram mortos. Processo confirmado pela descoberta, em 1980, dos relatos
escritos pelo grego Marcel Nadjari e guardados no interior de uma garrafa
térmica enterrada no solo de Auschwitz, onde ele, prisioneiro, fazia parte do
Sonderkommando, a equipe que retirava os cadáveres das câmaras de gás
(cf: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-42193700).
Isso se repete hoje em instituições que controlam o mercado financeiro mundial,
como o FMI e o Banco Mundial. Ao propor ajustes fiscais, austeridade, teto de
gastos a países periféricos, seus oráculos não são movidos por um sentimento de
maldade para com povos que verão agravada sua situação de pobreza. Eles seguem
a lógica do sistema: esses países tomaram dinheiro emprestado de credores
nacionais e internacionais e, agora, precisam honrar suas dívidas. Ainda que
isso signifique aumento da mortalidade infantil e do desemprego.
Esta a lógica do poder, que nem sempre leva em conta os direitos dos
subalternos. Isso vale para os casos de feminicídio, nos quais o homem agride a
mulher; dos neonazistas que odeiam negros e judeus; dos internautas que vociferaram
porque a Justiça permitiu que Lula, prisioneiro, comparecesse ao sepultamento
do neto.
Como frisou Bachelard (1884-1962), “quanta amargura há no coração de um ser que
a doçura corrói.”
Frei Betto é escritor, autor
de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros.
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