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quinta-feira, 18 de abril de 2019

LÓGICA DO PODER




Por Frei Betto

       Uma observação de Voltaire (1694-1778) ressalta por que tantas pessoas emitem ofensas nas redes digitais e, assim, revelam mais a respeito do próprio caráter do que do perfil de quem é desrespeitado. “Ninguém se envergonha do que faz em conjunto”, escreveu em “Deus e os homens”.

       Isso explica a insanidade dos linchamentos virtuais e a violência gerada pelo preconceito, como bem demonstra o filme “Infiltrado na Klan”, de Spike Lee, vencedor do Oscar de melhor roteiro adaptado em 2019.

       Muitos de nós jamais ofenderíamos pessoalmente um interlocutor com injúrias e palavrões. No entanto, há quem seja capaz de replicar nas redes digitais ofensas a inúmeras pessoas, sem sequer se dar ao trabalho de apurar se a informação procede.

       Ao ser humano é dada a capacidade de discernimento, atributo que lhe permite o exercício da liberdade. Há, contudo, quem prefira abdicar desse direito de optar livremente. Prefere deixar que as decisões sejam tomadas pelo líder, guru ou mentor do grupo social com a qual a pessoa se identifica. Opta pela “servidão voluntária”, na expressão de La Boétie (1530-1563). E todos que não comungam o seu credo são considerados inimigos, hereges ou traidores, e devem ser varridos da face da Terra.

       Essa submissão de si à vontade do outro ocorre em partidos políticos, empresas, associações e, sobretudo, em segmentos religiosos. No caso de Igrejas, a dominação ideológica é legitimada pela suposta vontade de Deus ecoada pela voz do pastor ou do padre. Assim, difunde-se uma perigosa teodiceia pela qual tudo se explica pela lógica divina, ainda que a humana não consiga digeri-la.
      
 Se há uma catástrofe como a de Brumadinho, se estou desempregado, se perco um filho atingido por bala “perdida”, não devo protestar ou lamentar. Deus tinha algo em mente para permitir que tais desgraças acontecessem. Assim a teodiceia se transforma em panaceia.

       É o recurso da apatia como anestesia da consciência. O exemplo paradigmático é o extermínio das vítimas do nazismo. A ordem genocida não saía da cabeça de um tresloucado, e sim de quem tinha plena (e tranquila) consciência do que fazia, como demonstrou Hannah Arendt.

       A ordem inicial se desdobrava em sequência. Um dirigia o caminhão até o alojamento dos presos; outro os encaminhava ao veículo; outro ordenava se despirem e distribuía toalhas e sabão; outro apertava o botão vermelho; e, por fim, um grupo retirava os corpos da câmara de gás sem a menor ideia por que foram mortos. Processo confirmado pela descoberta, em 1980, dos relatos escritos pelo grego Marcel Nadjari e guardados no interior de uma garrafa térmica enterrada no solo de Auschwitz, onde ele, prisioneiro, fazia parte do Sonderkommando, a equipe que retirava os cadáveres das câmaras de gás (cf: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-42193700).

       Isso se repete hoje em instituições que controlam o mercado financeiro mundial, como o FMI e o Banco Mundial. Ao propor ajustes fiscais, austeridade, teto de gastos a países periféricos, seus oráculos não são movidos por um sentimento de maldade para com povos que verão agravada sua situação de pobreza. Eles seguem a lógica do sistema: esses países tomaram dinheiro emprestado de credores nacionais e internacionais e, agora, precisam honrar suas dívidas. Ainda que isso signifique aumento da mortalidade infantil e do desemprego.

       Esta a lógica do poder, que nem sempre leva em conta os direitos dos subalternos. Isso vale para os casos de feminicídio, nos quais o homem agride a mulher; dos neonazistas que odeiam negros e judeus; dos internautas que vociferaram porque a Justiça permitiu que Lula, prisioneiro, comparecesse ao sepultamento do neto.

       Como frisou Bachelard (1884-1962), “quanta amargura há no coração de um ser que a doçura corrói.”

Frei Betto é escritor, autor de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros.
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