Por Marcelo
Barros
Há certo tempo, quem andava pelas
estradas de terra e trilhas do interior de Goiás, aqui e ali descobria à margem
do caminho uma placa, às vezes, escrita quase improvisadamente: “Aqui se redescobriu e se salvou uma nascente
d’água que se tinha perdido”. Um amigo que viu muitos desses letreiros quis
saber dos cuidadores/as das nascentes como podiam saber que tal terreno baldio,
ou sítio atualmente seco, continha escondido debaixo da terra ou do areal uma
fonte d’água. Também queria saber o que faziam para fazê-la brotar. As
explicações foram diversas, desde informações de antigos moradores até técnicas
ancestrais como radiestesia e outras novas como pequenas perfurações e limpezas
do terreno até chegar ao molhado e aí ajudar à antiga fonte novamente aparecer
e renascer.
Essa experiência suscita em nós a
pergunta: E nós, eu e você, às vezes, não nos sentimos como um terreno, no qual
a fonte interior que nos abastecia parece ter para sempre secado? Como fazê-la
voltar a surgir do mais interior do nosso ser para irrigar as securas de nossas
vidas e com águas puras e cristalinas dessedentar nossa sede mais íntima e
profunda?
Na Alemanha nazista, em 1943, Etty
Hillesun era uma jovem judia de 28 anos que, em um campo de concentração, tinha
sido condenada à morte e esperava a sua execução. Em meio às barbaridades que
sofreu e via outros sofrerem, ela escrevia um diário que escapou da censura dos
seus algozes. Nesse diário, ela nos surpreende por sua atitude positiva de
esperança e amor. No campo de concentração, condenada à morte, ela escreveu em
seu diário: “Dentro de mim, há um poço
muito profundo. Nem consigo ver o seu fundo. Às vezes, me parece coberto de
pedras e lixo. E então, para mim, Deus está sepultado. Em alguns momentos,
consigo desenterra-lo e posso até ajudar outras pessoas a desenterrá-lo em seus
corações. Percebo que em uma situação como essa, ó Deus, tu não podes nos
ajudar. Mas, nós podemos sim fazer muito por ti. Podemos ajudar-te a não te
deixar sepultado em nós e a ser testemunhas do teu amor em uma realidade na
qual todo amor é abolido e chacinado”.
Será que essas palavras não caberiam hoje para
muitos de nós? Será que a sociedade atual não vive também essa realidade na qual todo amor é abolido e chacinado?
Não temos, cada um dentro de si mesmo um poço profundo, coberto de pedras e
de todo tipo de lixo?
Para os cristãos que nesses 50 dias
celebram a Páscoa, a fé na ressurreição de Jesus nos faz descobrir que, mesmo
se a superfície parece árida como o sertão nordestino em tempos de seca, no
mais profundo do nosso ser há uma fonte escondida, na qual a água cristalina do
Espírito só espera nossa disposição para libertá-la. Então, ela jorrará como
torrente de vida a renovar nossa esperança e encher de doçura nossa aridez.
Quem lê o diário de Etty Hillesun
poderá constatar como ela tinha clareza de posições contra os nazistas,
denunciava a opressão, sentia a indignação profética contra o mal e o combatia,
mas não deixava que o ódio e o desejo de vingança a dominassem. Ao saber do
extermínio de sua família, ela escreveu: “nessas
circunstâncias tão terríveis, a minha contribuição para o meu povo é que não
podemos abrir mão da misericórdia. Precisamos nos tornar incapazes de odiar,
aconteça o que acontecer conosco. Essa será nossa única força”.
Esse tipo de resistência interior e
energia espiritual não se improvisa. Geralmente, as tradições insistem que,
para realizar essa peregrinação interior para a fonte de águas vivas que é o
Espírito Divino presente em nosso próprio coração, é preciso que a pessoa
simplifique a sua vida, busque a sobriedade, ame o silêncio e, principalmente,
aprofunde a sua capacidade de amar. O próprio Jesus, no Evangelho propôs, como
condição para o discipulado, o despojamento pessoal e a disposição de partilhar
com o outro tudo o que se tem e o que se vive.
A espiritualidade bíblica insiste que
o cuidado com a interioridade não pode isolar a pessoa em si mesma. Ao
contrário, é para torná-la mais capaz de sair de si e viver a comunhão com os
outros. Dietrich Bonhoeffer, teólogo
luterano, mártir do nazismo, dizia: “Deus
está em mim para você e em você, para mim. Ele está em mim, mas eu o encontro
melhor em você e, então, você o revela presente em mim, assim como eu o mostro
presente e atuante em você”.
Há quem pense na Mística e na
Espiritualidade como coisas complicadas e exóticas, acessíveis apenas a pessoas
muito especiais. A fé cristã nos assegura que, ao contrário, este caminho se
realiza pela graça divina e é totalmente gratuito e democrático. É acessível a
todos. Basta querer e aceitar o chamado divino. Vale para nós, hoje, o que
Paulo escreveu aos cristãos de sua época: “Vocês
não vivem mais sob o domínio dos instintos egoístas (carne), mas sob o Espírito
e o próprio Espírito Divino habita em vocês” (Rm 8, 9).
MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br
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