Por Maria Clara Lucchetti Bingemer
Com ela, a majestosa e bela senhora do Sena, ardeu nosso coração também.
Seja por fé, seja por estética, doeu muito em toda pessoa que se entende humana
ver as chamas, indomáveis, devorando a imponente e majestosa catedral de Notre
Dame de Paris, sob o combate competente e constante dos bombeiros.
É
importante não deixar passar as lições e ensinamentos que ficam do fogo. E o
primeiro é o valor imenso da história. Ali em Notre Dame queimavam diante
dos olhos atônitos do mundo inteiro séculos de história. Como disse o
presidente Emmanuel Macron, em belo discurso imediatamente posterior à
tragédia: “Vamos reconstruir Notre Dame. Nossa história merece.” As
velhas pedras que os turistas vão ver muitas vezes sem alcançar todo o seu
significado importam. E muito. São nossa história, testemunhos
imóveis e artísticos daquilo que uma civilização é capaz de fazer e construir.
Fica igualmente a certeza de que a beleza salva. Salva da mediocridade,
da falta de horizonte, da obscuridade. Salva da tentação de achar que a
vida é apenas o que os sentidos alcançam e a razão circunscreve. Salva da
depressão de afundar na tristeza de que tudo acaba, perece e, portanto, nada
vale a pena, pois a alma – ao contrário do que diz o poeta - é pequena.
No entanto, a lição mais luminosa do incêndio que vitimou a catedral está em
imagens que passaram pelas redes sociais e pelos meios de comunicação. A
primeira é de um grupo de jovens sérios e serenos, ajoelhados, rezando o terço
e cantando uma versão da Ave Maria. Bela, cheia de sentido, a oração
daqueles jovens falava por si só. A catedral ardia e isso era doloroso, mas
Maria, em cuja honra Notre Dame foi construída, estava viva nos corações e na
fé de todos eles.
A segunda foi de uma mulher de uns cinquenta anos que chorava
desconsoladamente. Entrevistada pelos jornalistas, ela dizia que não sabia por
que chorava. Não era religiosa, não tinha fé. Era ateia, mas ver
Notre Dame sob as chamas lhe partia o coração.
Em ambas as imagens vejo o
retrato não só da França hoje, mas de um mundo que continua buscando o sentido,
segue sedento de absoluto, mas às vezes não consegue mais encontrar seu
rumo.
A França é considerada a filha mais velha da Igreja. Foi importantíssima
na história do Catolicismo, religiosa, artística e intelectualmente. Dali
saíram grandes livros de teologia, fantásticas obras de arte, estupendas
realizações culturais e religiosas. Hoje, vemos uma França laicista, que
parece perder a cada dia sua cultura católica e vê crescer em seu seio a
secularização por um lado e outras religiões, sobretudo a islâmica, por
outro.
Digo parece propositalmente. Os jovens rezando e cantando ajoelhados
diante da catedral em chamas me faz duvidar. A mulher ateia chorando
também. Pelo contrário, me falam de um povo que não pode mais voltar a
uma pré-modernidade perdida, mas busca febrilmente a transcendência que deixou
escapar há muito tempo e da qual ainda não fez uma nova síntese. Um povo que
continua guardando as festas religiosas talvez mais do que qualquer outro no
mundo ocidental: Páscoa, Pentecostes, Assunção. As raízes cristãs não
desapareceram e emergiram do fogo sob a forma de lágrimas desoladas ou de
oração confiante.
Desde que o incêndio aconteceu, lembrei-me incessantemente da homilia que João
Paulo II fez em sua visita a Paris, em 1980. Naquela ocasião, o Papa dirigiu-se
à França secularizada e lançou uma pergunta inquietante: “França, filha mais
velha da Igreja, tens sido fiel às promessas do teu Batismo?” Como os
catecúmenos, no momento de receber o sacramento de iniciação que os insere na
Igreja como filhos, confessam crer no Pai, no Filho e no Espírito Santo, a
França era interrogada e instigada a fazer um exame de consciência.
Quase quarenta anos depois, o fogo lambeu as velhas e belas pedras da catedral
de Notre Dame. E a tristeza de todos, crentes ou não crentes, católicos,
muçulmanos, judeus ou de qualquer outra religião dá testemunho de que esse fogo
não foi somente destruidor. Foi também purificador.
Não só a França é chamada a prestar contas das promessas do seu Batismo, ou
seja, da firmeza e da solidez de sua fé e seu compromisso com o amor, a beleza,
a justiça. Todos nós, que fomos tocados pelo que aconteceu em Paris,
somos interpelados por esse fogo.
A mim, católica que conhece Notre Dame, havendo inclusive já assistido várias
missas celebradas em seu interior, fica a convicção de que não se pode
descuidar a memória, a beleza, os traços deixados pelo Absoluto na história
contingente e tão desfigurada dos seres humanos. Notre Dame desfigurada e
sempre bela continua nos convidando a não desistir de buscar e não perder a
capacidade de nos deslumbrarmos e extasiarmos, sempre, com a Transcendência que
mora em nós e ao redor de nós. É ela que, enfim, nos faz humanos.
Maria Clara Bingemer é
professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de Testemunho:
profecia, política e sabedoria, Editora PUC-Rio e Reflexão Editorial,
entre outros livros.
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