Por Eduardo Hoornaert
Quando os fotógrafos do filme ‘Dois
Papas’ finalmente são conduzidos por atenciosíssimos Monsenhores à Capela
Sixtina, no Vaticano, eles não se contêm. Começam a fotografar freneticamente,
à torta e à direita. Não sabem por onde se virar: se para o imenso afresco
central, atrás do altar, onde Cristo, com poderoso braço musculoso, joga uma
multidão de pecadores no inferno, ou, acima da cabeça, para as nove cenas que
mostram a origem do mundo e da humanidade, assim como a expulsão de Adão e Eva
do paraíso. Alguns se deixam fascinar pelos afrescos de ambos os lados, onde
figuram pinturas maravilhosas de Botticelli, Ghirlandaio e Perugino, outros
admiram a imitação de tapeçaria, da autoria de Rafael, que orna as paredes da
Capela.
O cineasta Meireles também acha que a
Capela Sixtina forma um excelente cenário para as altas conversas entre Hopkins
e Pryce. Já fotogênicos por natureza, esses atores impactam ainda mais nesse
ambiente. O filme não acena ao fato que a memória de dois papas paira sobre o
lugar. A do Papa Sixto IV, que manda construir num tempo recorde, entre os anos
1477 e 1480, a Capela que leva seu nome, e a do Papa Júlio II, que, entre 1508
e 1512, reserva polpudas somas de moedas do Vaticano, cambiadas pela Casa
Fugger na Alemanha, a pagar os melhores artistas da época. São exatamente essas
generosas moedas do Papa Júlio II que tanto escandalizam o jovem frade
agostiniano Martinho Lutero em sua visita ao Vaticano, poucos anos depois.
Será que Meireles se deixou seduzir
pela pompa do lugar, como tantos e tantos turistas que se extasiam na Capela
Sixtina, como se deixam fascinar ao atravessar as inumeráveis salas fotogênicas
do Palácio do Inverno em São Petersburgo? A pobre ‘Casa Branca’ de Washington
não tem como rivalizar. Versailles faz figura melhor, assim como o Palácio
Windsor nos arredores de Londres.
Sim, penso que o esplendor do
Vaticano tem de entrar numa avaliação criteriosa do filme ‘Dois Papas’, assim
como a arte triunfal renascentista ostentada na Capela Sixtina. É um detalhe,
sim, mas um detalhe importante.
Onde fica Andrei Rublev (1360-1427),
o famoso monge artista do Mosteiro Andronikov em Moscou, que não consegue
pintar o quadro do ‘Último Juízo’ encomendado pelo Patriarca Ortodoxo para a
Catedral da Anunciação no Kremlin em Moscou, pois, em contraste com
Michelangelo, não se imagina um Cristo que jogue pecadores no inferno (veja o
filme ‘Andrei Rublev’, de Tarkovski 1966)?
E onde fica Helder Câmara, que por
duas vezes cita, em suas Cartas Circulares, seu poema louco do ‘papa que
enlouquece’?
Sonhei que o Papa enlouquecia
Ele mesmo ateava fogo
Ao Vaticano
e à Basílica de São Pedro.
Loucura sagrada,
porque Deus atiçava o fogo
que os bombeiros, em vão,
tentavam extinguir.
O Papa, louco,
saía pelas ruas de Roma,
dizendo adeus aos Embaixadores
credenciados junto a Ele,
jogando a tiara no Tibre,
espalhando pelos pobres
o dinheiro todo
do Banco do Vaticano.
Que vergonha para os cristãos!
Para que um Papa
viva o Evangelho,
temos de imaginá-lo
em plena loucura!
(Carta Circular 18-19/02/1965, II,
II, p. 192, repetido em 4-5/5/1974, VII, I, pp.128-129. Cito pela edição Cepe,
de Recife, em fase de elaboração. Assim o texto de 1974 só existe, até hoje,
‘on line’).
Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.
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