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segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

OS DOIS PAPAS E O PAPA FRANCISCO




                    por Maria Clara Lucchetti Bingemer

            Dirá o leitor que muito já se falou e escreveu sobre o filme de Fernando Meireles, “Os dois Papas”.  E tem razão.  Trata-se, porém, de assunto importante, não só pela relevância que ainda têm a Igreja Católica e o Cristianismo, especialmente no Ocidente.  Mas também pelo fato de que hoje Francisco de Roma é o único líder mundial capaz de chamar a atenção de pessoas de dentro e de fora da Igreja que governa; e de convocar mentes e corações urbi et orbi. 

            Não surpreende, portanto, que um filme sobre sua pessoa desperte interesse e suscite diversas leituras e opiniões. Destaco entre os muitos comentários feitos aqui e ali o magnífico texto de Leonardo Boff, recentemente publicado.  Destaco igualmente impressões de alguns ateus, jornalistas e intelectuais, maravilhados com o filme.  Não destacaria tanto os comentários de algumas figuras de dentro da Igreja que conseguem ver nesta obra cinematográfica de inegável valor apenas inexatidões e parcialidades. 

            Desde o início, o diretor adverte: este é um filme de ficção baseado em fatos reais.  Assim como a literatura, toda arte, inclusive a sétima, tem compromisso com a verossimilhança, e não com a verdade tal como é entendida filosoficamente. Sendo assim, a ficção construída a partir da história e seus fatos é perfeitamente legítima. Mesmo quando o assunto é a instituição do papado e a figura do pontífice e supremo pastor da Igreja Católica. 

            Conheci muito breve e superficialmente o cardeal Joseph Ratzinger.  Um cordial aperto de mãos por uma vez.  Posteriormente, em 2012, fui convidada a apresentar em Roma seu recém lançado livro sobre a infância de Jesus.  Aí cumprimentei o Papa Bento XVI, que três meses mais tarde deixaria o mundo perplexo com sua renuncia à sé de Pedro. Porém, anteriormente a tudo isso, conheci a teologia de Joseph Ratzinger.  Estudei por seus livros e tive contato com seu pensamento.  Trata-se, inegavelmente, de um teólogo profundo e refinado. 

            Sua atuação à frente da Congregação para a Doutrina da fé suscitou sentimentos controversos e conflitivos na Igreja pós-conciliar.  Entre os vários processos a que foram submetidos diversos teólogos de todas as latitudes durante sua presidência, o de Leonardo Boff foi por mim vivido mais de perto devido ao fato de ser um teólogo brasileiro e amigo pessoal. O mesmo Boff, porém, com extrema elegância, defende sua atitude correta e sua boa-fé no texto acima mencionado, mostrando que todo juízo sobre fatos e, sobretudo, sobre pessoas deve ser prudente e matizado. 

           Encontrei o cardeal Bergoglio duas vezes, em Buenos Aires.  E ouvi narrativas e comentários não muito airosos sobre sua conduta durante a ditadura argentina, coisa que o filme de Fernando Meireles retrata fielmente. Não deixa de sublinhar, no entanto, a dificuldade que implicava naquele momento a circunstância de ser superior provincial de uma ordem como a Companhia de Jesus.  Bergoglio tomou as decisões que lhe pareceram acertadas. Porém, sua biografia ficou marcada por esse fato.  E quando anunciaram sua eleição confesso que senti muito temor, ao recordar o que me haviam dito amigos da Argentina sobre sua pessoa e atuação.

            O tempo imediatamente posterior à sua eleição encarregou-se de dissipar meus temores. Diante de meus olhos via uma figura rica e perita em humanidade que pedagogicamente ia marcando o caminho de seu pontificado com gestos secundados por palavras que anunciavam novos tempos para a Igreja e para a instituição do Papado.

            Parece-me que o filme de Fernando Meirelles mostra isso com muita felicidade.  Com Francisco, o papado deixa de ser uma instituição difusamente divina e bem pouco humana para mostrar sua face encarnada, compassiva e aterrissada na realidade.  O mate, o futebol, a pizza, o tango são a configuração do papa argentino que veio do fim do mundo e procura desde sua eleição trazer a Igreja de volta ao Evangelho e ao Concílio Vaticano II. 

            O filme é justo com Bento XVI, parece-me.  Mostra o mais importante de seu legado: a lucidez da renúncia para abrir caminho a outro que pudesse lidar com os enormes problemas da Igreja.  E também é justo com Francisco.  Mostra seu perfil consciente dos próprios limites, mas ao mesmo tempo cheio de destemor ao se lançar na empreitada de fazer a reforma da instituição que governa.

            O pontificado de Francisco é um convite a todos nós, católicos, a jamais duvidar da assistência do Espírito Santo à Igreja.  O filme de Fernando Meireles ajuda esse permanente ato de fé. 
            
 Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), entre outros livros.


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