Por
Eduardo Hoornaert.
Na
noite entre 6 e 7 de março de 1971, ao se levantar para a habitual Vigília,
Helder ouve uma voz, vinda de fora. Ele abre a porta que dá para o pequeno
jardinzinho ao lado da sacristia da igreja das Fronteiras, onde mora, e
escuta. Parecia voz de rosa, um pouco mais forte, embora, também, de
timbre aveludado. Seria uma criança? Não descobri ninguém. Uma risada
(risadinha inconfundível) e uma voz: ‘Sou eu: Clara, Clarinha, a nova irmã que
o Pai lhe dá’. Era uma pedrinha linda de nosso jardim. Levei uma semana para
compreender o que estava acontecendo (Carta Circular 607/3/1971, V,
III, p. 103).
Ao
longo das páginas 103, 119-120 e 207-209 do Tomo V, III das Cartas Circulares,
escritas entre março e abril de 1971, Helder descreve como – aos poucos -
compreende que a pequena pedrinha roliça e clarinha, quase luminosa, fala em
nome das pedras. Pois ela é uma pedra que fala, é a Alma
das Pedras. As pedras têm fama de não ter vida, não ter coração, não ter alma.
Nada disso. De dentro de toda pedra, Clarinha nos espreita com um olhar onde há
de tudo: bondade profunda, mas, também, brejeirice, ânsia de brincar, espírito
de trela. Imaginem o que é viver no íntimo das pedras e só, de longe em longe,
descobrir poetas e loucos a quem se possa manifestar (p. 103).
Clarinha
gosta de falar quando a noite atinge o seu silencio mais profundo,
ou quando a noite é particularmente bela, ou quando ela ou eu estamos mordidos
de tristeza. Pois Clarinha está triste. Ela sofre
porque os humanos, que se consideram os entes mais inteligentes da terra, não
entendem que essa terra – afinal – é uma pedra, que não somente nos sustenta e
possibilita a vida hoje, mas que nos origina. Dela proviemos. São Francisco
falou em Irmão Sol e Irmã Lua, deixou de falar na Irmã Pedra. Mas ela não é a
mais importante das irmãs, pelo menos para quem vive neste planeta? É a mais
humilde, a menos reconhecida, embora nela pisemos a vida toda.
Foi
em noite belíssima, sem lua, mas carregada de estrelas, que ela (Clarinha) me falou sobe Corações de pedra.
‘Que entendem os homens do nosso íntimo para falarem, com desprezo, de
‘corações de pedra’? Eles nem sabem distinguir uma pedra-menina de uma
pedra-adolescente, ou de uma pedra adulta. Será que já viram uma
pedra-enamorada? Já encontraram uma pedra-grávida? Já ouviram uma
pedra-seresteira? Ah! o que os homens fazem com as pedras! O que sofremos quando
a vaidade de Reis resolve usar-nos em pirâmides! O que mais nos doía era
esmagar, com nosso peso, os ombros dos escravos. Ah! o que fazíamos para
aligeirar nosso peso, tornando-nos mais suportáveis e mais leves!
Coração
de pedra! Os homens gostariam que diante de uma pedra insensível, fria e má,
falássemos em coração de gente? Os homens, que receberam tanto de Deus, perdem
a cabeça e não percebem que ainda estão longe de atingir o segredo dos seres.
Você, que me ouve e me entende, diga aos homens que não se iludam com a nossa
aparente rigidez e frieza. O Pai nos faz duras, para melhor servir aos homens.
Mas não temos nada de frias!
Eu
teria mil perguntas a fazer a Clarinha. Mas sentia remorso de interrompê-la. E
ela, que a silêncios sem-fim se vê condenada, deixou-me sentir o bater de seu
coração. Ela quis ouvir o meu. Quando eu ia dizer que ela tinha coração de
pássaro, ou de rosa – tão leves, tão suaves são as batidas! – ela, feliz,
felicíssima, como se me anunciasse a melhor das novas, exclamou: ‘Você tem
coração de pedra’ (pp. 118-120).
É
um elogio. Ter coração de pedra é sentir as vibrações amorosas das pedras e das
coisas em geral. Isso nos leva ao poeta chileno Pablo Neruda em sua ‘Oda a las
Cosas’:
Amo
las cosas loca
Locamente.
Amo
todas las cosas,
no sólo
las supremas,
sino
las infinitamente
chicas.
Ay, alma mía,
Hermoso
Es el planeta.
Oh río
Irrevocable
De las cosas.
No se dirá
Que sólo
Amé
Los peces
O las plantas.
No es verdad:
Muchas cosas
Me lo dijeron todo.
No sólo me tocaron
O las tocó mi mano,
Sino que acompañaron
De tal modo
Mi existencia
Que conmigo existieron
Y fueran para mí tan
existentes
Que vivieron conmigo media
vida
E morirán conmigo media
muerte (Las Cosas de
Neruda, Cexeci, Cáceres, España, 1998, pp. 31-32).
Escreve
Zildo Rocha, que conviveu intensamente com o Bispo Helder entre 1964 e 1970: ‘É
impressionante como em suas vigílias, no silêncio das madrugadas, ele (Helder)
convive com rosas, formigas, pássaros ou jumentinhos, privilegiando quase sempre
a porção frágil, delicada e volátil dos seres da natureza, como se, até nesse
campo do mundo vegetal e animal, lhe fosse conatural e espontânea a opção
preferencial pelos mais fracos e pequeninos’ (Rocha, Z., Irmão dos Pobres e Meu
Irmão. Presença de Dom Helder em minha vida, Recife, Edição do Autor, 2019, p.
196).
Ao
conversar com Clarinha, Helder se sente feliz:
Que
privilégio
Ter
olhos na noite escura,
Ter
ouvidos no silêncio imenso,
Para
contemplar
O
amadurecer das frutas
E
a formação do perfume
No
coração das flores!
Ir
mais longe
Só
se Deus permitir
Acompanhar
No
interior do homem
O
nascimento do amor (Carta Circular
20-21/03/1966, III, I, p. 203).
Ele
não se imagina um céu sem flores:
Os
teólogos que me perdoem,
mas
eu não posso imaginar um céu sem flores.,
O
que fazer quando as flores murcham?
Uma
roseira já me perguntou
se
eu acredito que Deus ressuscitará também as flores.
Em
noite chuvosa, conversa com a chuva:
Chuva,
dá um jeito
De
abrir goteiras
Em
todo o meu corpo,
De
gelar meus ossos,
De
alagar minha alma.
Mas
deixa em paz
Os
mocambos de minha Gente
Que
precisa descansar
Da
realidade triste
E
esquecer no sono
A
fome impertinente (Carta Circular
21/03/1966, III, I, p. 204),
Descobre vida
e santidade...num tijolo:
Como
explicar
que
o tijolo,
irmão
de
milhões de tijolos semelhantes,
me
fizesse
parar
embevecido,
nele
descobrindo
vida
e santidade!?...
Vida,
porque
ele existe.
É
real,
Nada
tem
de
aparência e de sombra.
Santidade,
porque
surgiu
das
mãos do co-Criador,
no
oitavo dia da Criação.(Carta
17-18/4/1971, V, III, p. 215).
E
se opõe resolutamente contra os que pretendem que a terra seja coisa morta:
Quem
disse que a terra é morta
quando
ela palpita de vida!?
Fosse
morta e nela morreriam
as
sementes de vida que lhe confiamos.
A
terra não é uma coisa, um ser inerte.
Quando,
um dia, nos planos divinos
nela
repousarmos, aguardando o amanhecer,
entreguemo-nos
tranquilos a ela,
como
quem é recebido
entre
braços fraternos. (Carta Circular
8-9/7/1970, V, I, p. 284-285).
Clarinha,
a clara pedra que fala, simpatiza com Helder por ele compreender
que a terra não é coisa morta, por escutar a voz de uma pedra a lhe ensinar que
a natureza nos envolve e que o homem não participa só da natureza animal, mas
igualmente da natureza ‘inanimada’.
Afinal,
estamos aqui diante de um pertinente discurso anti-capitalista. Clarinha
argumenta, a seu modo, que não se trata de enxertar uma dimensão ecológica no
discurso capitalista (como fazem não poucos ecologistas), mas de rejeitar um
domínio sobre a natureza que não ausculte o coração das pedras, não
combata o desejo capitalista a se apropriar de tudo em proveito dos ‘donos do
mundo’.
Pois
a simpatia que Helder sente por Clarinha – afinal – é a mesma que ele sente
pelos pobres da terra:
Já
não aguento, Pai,
ver
tanta miséria,
ouvir
tanto lamento.
Sabes
que
comida
perde,
dia a dia,
qualquer
interesse
para
quem carrega nos olhos
as
imagens que eu carrego,
para
quem guarda nos ouvidos
as
vozes que registro para sempre? (Carta
18.19/2/1965, II, II, p. 193).
Clarinha
não grita. Ela fala baixinho. Parece que só convence poetas e loucos.
Sua voz ressoa no silêncio do jardinzinho ao lado da sacristia onde mora Helder
Camara e –por obra e graça das Cartas Circulares desse último – chega hoje aos
nossos ouvidos.
Clarinha
nos espreita. Imaginem o que é viver no íntimo das pedras e só, de longe em
longe, descobrir poetas e loucos a quem se possa manifestar.
Eduardo Hoornaert foi professor
catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da
História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a
formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros
séculos.
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