A julgar as reações dos líderes mundiais
diante da interminável guerra entre Israel e Palestina, não há saída possível
pelo momento: a matança de inocentes vai continuar. Hoje, 2 de agosto, já são 1.349 palestinos mortos, na grande
maioria civis. Ontem o presidente dos Estados Unidos reafirmou o compromisso de
seu país com Israel e acrescentou, como de passagem, que os Estados Unidos são
o país mais poderoso do mundo. São palavras preocupantes, pois mostram que o
homem do ‘sim, podemos’ está virando o tradicional ‘senhor da guerra’,
assumindo o papel de presidentes dos Estados Unidos desde os anos 1950, quando
colocaram no poder um ditador (Ngo Dihn Diem) no Vietnã do Sul, para combater o
‘comunismo’. Desde então, as intervenções americanas têm sido proveitosas para
os Estados Unidos e perniciosas para os estados subalternos, como se verifica
no apoio dado a Israel, Catar e Arábia Saudita, em contraste com as
intervenções desastrosas no Iraque e em numerosas outras regiões do mundo. O cinismo
da declaração de Obama ontem não deixa dúvidas: os ‘poderes deste mundo’ não
estão realmente interessados em por fim à matança na Faixa de Gaza.
Diante desse quadro aparecem, como é
normal, reações de indignação, clamores por justiça e manifestações de rejeição
da postura assumida pelos políticos das grandes potências. Por baixo dessas
reações há uma impressão geral de impasse. A situação parece mesmo sem saída.
As matanças continuarão, ao que tudo indica. Nessas circunstâncias vale fazer a
seguinte pergunta: há mesmo uma saída para uma guerra entre oponentes tão
desiguais como são Israel e Palestina? Quais as condições dessa (improvável) saída?
O cristianismo tem algo a dizer sobre isso? Há textos do Novo Testamento que
podem trazer luz neste momento? Trago aqui dois textos breves do Novo
Testamento que podem ser aplicados à situação que vivenciamos. Deixemos de lado
os Estados Unidos e nos concentremos nos dinamismos humanos existentes nos dois
povos em litígio.
1. Nos anos 50, uns 20 anos depois da morte
de Jesus, o apóstolo Paulo escreveu uma frase que ficou famosa: ‘Não há judeu
nem grego, não há escravo nem homem livre, não há macho nem fêmea, pois vocês
todos são um em Jesus Cristo’ (Gl 3, 28). É uma frase que pode ser aplicada à
situação em que se encontram atualmente judeus e palestinos, da maneira
seguinte: ‘Não há judeu nem palestino’. Assim formulada, a frase é uma
provocação: onde está minha identidade? Está na minha nacionalidade? Eu me
identifico por me declarar belga, alemão, brasileiro, israelense, palestino?
Levo comigo uma carteira de identidade, mas será que ela me define? Aqui o problema
reside no fato que as pessoas costumam confundir identidade e nacionalidade e esquecem
como isso é perigoso. Potencialmente, eu me torno conivente com crimes
cometidos por minha nação, se não tomar distância diante da ideia que
nacionalidade significaria identidade. Identidade nacional pode ser mortífera. No
momento em que um israelense se identifica com o projeto colonizador de sua
nação, ele colabora implicitamente com a morte das vítimas desse projeto
nacional. Assim a ideia nacional (nem falo aqui de ‘nacionalismo’) pode
provocar as maiores desastres, como verificamos na última Guerra Mundial. Penso
inclusive que um dos pontos mais fracos da atual Organização das Nações Unidas (ONU)
consiste exatamente no fato de ser baseada na ideia de nação e não na ideia do universalismo
humano, defendida por São Paulo na carta aos Gálatas, que estamos aqui
comentando. Graças a Deus, vejo pela
televisão que muitos israelenses não se identificam com o projeto colonizador
de seus dirigentes.
Não seria uma boa ideia mandar imprimir as
palavras ‘não há judeu nem palestino’ em largas faixas e afixá-las no Território
de Gaza, em Jerusalém, na frente do Knesset (o parlamento israelense), sem
esquecer a Casa Branca e o Senado em Washington? Mas, será que os ilustres diplomatas do Knesset
e do Senado americano estão interessados em captar o que Paulo quer dizer com
essa frase? Muitos dirão logo que dizer ‘não há judeu nem palestino’ pode soar
bonito, mas não resolve nada. Eles dirão: essas palavras são utópicas,
impossíveis de serem realizadas. Sim, no momento parecem impossíveis, mas não é
verdade que a utopia é, em última análise, o mesmo que realismo? O que escrevi acima acerca de identidade e
nacionalidade corresponde, ou não, à realidade? Vale aqui evocar uma das frases mais contundentes
da revolução estudantil de 1968: ‘sejamos realistas, exijamos o impossível’. Na
atual crise do Oriente Médio, só o ‘impossível’ (o utópico) é realista, enquanto
o ‘possível’ pragmático dos líderes mundiais nada soluciona, é irreal. As
palavras do presidente Obama não correspondem à realidade vivida, nem as do secretário
geral da ONU e do secretário americano Kerry. São palavras ao vento.
2. Aqui entra um segundo texto do Novo
Testamento, desta vez do evangelho de Mateus, que registra um diálogo ocorrido entre
Jesus e Pedro: ‘Pedro pergunta: Senhor, quantas vezes devo fechar os olhos
diante de uma falha de meu irmão a meu respeito? Sete vezes? Jesus responde:
Não digo sete vezes, mas setenta vezes sete vezes’ (Mt 18, 22). O perdão
setenta vezes sete vezes é o ponto culminante da mensagem de Jesus. Só o perdão
é realista, só ele abre as portas do futuro, pois só ele rompe o círculo
vicioso da ‘espiral da violência’ (como dizia Dom Helder Câmara).
Os palestinos argumentam que a criação de
um estado de Israel em terras tradicionalmente habitadas por palestinas é um
crime, e eles têm razão. Mas será que existe no mundo um estado cuja origem não
seja criminosa? Filósofos como Emmanuel Kant e Blaise Pascal nos lembraram, já
faz muito tempo, que não há estado que não seja fundado sobre ação criminal.
Tomemos o exemplo do estado brasileiro, fundado sobre o assassinato de milhões
de habitantes que viviam nestas terras antes de 1500 e sobre o transporte
criminoso de milhões de africanos trazidos para cá como escravos. Como esse
crime já é antigo, silenciado pelos que detêm o poder, fica esquecido
(prescrito, como se diz hoje). A
desfortuna de Israel é que o crime de sua fundação é recente. Faz apenas 66
anos (em 1948) que os tanques israelenses (americanas) varreram do mapa as
habitações palestinas na terra hoje chamada Israel. Além disso, esse crime foi
perpetrado num tempo em que a consciência humana não tolerava mais uma invasão
tão brutal em terra habitada. Entendo que esse crime não sai da cabeça e
principalmente do sentimento dos palestinos, mas temos de ser realistas. Israel tem atualmente mais de 8 milhões de
habitantes (324 por km2) enquanto a Autoridade Nacional Palestina controla por
volta de 4 milhões de habitantes (595 por km2). Dá para ‘eliminar’ Israel? ou
‘eliminar’ Palestina? Com tanta gente
que vive de ambos os lados? Por que não romper esses ‘lados’ e pensar que se
trata, doravante, de uma única terra em que tanto israelenses como palestinos
têm de viver? É a ‘parte que lhes cabe no latifúndio’. Para palestinos e
israelenses de hoje, trata-se aqui de conflitos perpetrados por antepassados de
uma ou duas gerações atrás, pois o conflito entre Israel e Palestina tem suas
raízes numa determinação da ONU em 1947. Diante do leite derramado, a única
solução realista consiste em limpar o chão ou a mesa. No conflito do Oriente
Médio, só o perdão (utópico?) é realista. Esqueçamos as excelências
diplomáticas e ouçamos o homem na rua. Para ele, fica claro que israelenses e
palestinos estão ‘condenados’ a conviver dentro de um mesmo território, aquele
em que nasceram. Só conseguirão viver
juntos se deixarem de se ‘identificar’ como sendo ‘palestinos’ opostos a ‘israelenses’,
e vice versa. Pois a terra que lhes cabe para viver é uma só, assim como a vida,
frágil e passageira. Só há uma Jerusalém, não adianta esticá-la até a morte. É
a cidade de todos, cristãos, judeus, islamitas, crentes e descrentes. É nessa terra e nessa cidade que os
habitantes têm de viver lado a lado. Não há outra perspectiva senão a morte. A
solução está na miscigenação, no sentido ao mesmo tempo preciso e amplo do
termo.
Essas reflexões se baseiam parcialmente no
livro ‘Violência’, da autoria do filósofo Slavoj Zizek, que a Editora Boitempo
de São Paulo acaba de lançar.
Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É
membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina
(CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas
origens, especificamente os dois primeiros séculos.
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