Marcelo Barros
Em grego, o termo
mártir significa testemunha. Comumente é quem dá a vida ou sofre consequências
por ser testemunha da dignidade humana e da liberdade. Há mártires nas lutas
sociais por um mundo mais justo,no combate ao racismo, na defesa da natureza e na
defesa da fé. Nesses dias, na faixa de Gaza, em meio aos ataques do Estado de
Israel à população palestina, voluntários de vários países e de diversas
religiões arriscam a vida ao socorrer feridos e ajudar pessoas a sobreviver. São
mártires vivos, embora alguns acabam feridos e até mortos pelos tiroteios. Na
América Latina, a luta contra as ditaduras, pela democracia e pela justiça teve
e tem ainda muitos mártires. Como, na Bíblia, diz a carta aos hebreus: “eles
formam uma imensa nuvem de testemunhas”. Nesses dias, no Brasil, as comunidades
cristãs de base e os movimentos sociais celebram os 40 anos do martírio do frei
Tito Alencar. Por causa de sua fé no reino de Deus e pelo seguimento do profeta
Jesus, junto com outros jovens dominicanos, no final dos anos 60, esse irmão
enfrentou a ditadura militar brasileira. Foi preso em São Paulo e durante vários
dias foi barbaramente torturado. Ainda na prisão, ele escreveu o relato fiel e
sóbrio dessas sessões de tortura, comandadas pelo delegado Sérgio Fleury e por
sua equipe do DOPS em São Paulo. Esse escrito, fielmente transcrito em um livro
de Frei Betto, até hoje, comove profundamente qualquer pessoa que o lê. Ao
escutá-lo, um cristão sente os ecos dos primeiros cristãos contando nos
evangelhos os sofrimentos e morte de Jesus na cruz.
Mais de um ano
depois, o nome de Frei Tito foi incluído na lista dos presos políticos a serem
libertados pela ditadura, em troca do embaixador suíço que tinha sido
sequestrado. Obrigado a viver no exílio, longe do Brasil, Frei Tito não
conseguiu libertar-se dos traumas sofridos durante as torturas. Na permanente
angústia e terror de ver o seu torturador em todo lugar, ele acabou se
enforcando em um convento da França, onde estava exilado. Desde a sua morte, em
10 de agosto de 1974, as comunidades cristãs latino-americanas o consideram um
irmão que deu a vida pela causa do reino de Deus e sua justiça. Vinte anos
depois, seus restos foram transferidos ao Brasil e, atualmente, repousam em
Fortaleza, sua cidade natal.
Nesses dias,a
província dominicana do Brasil e as comunidades da caminhada promovem vários
eventos para recordar os 40 anos do martírio de frei Tito e refletir sobre a
atualidade do seu testemunho para os nossos dias. Graças a Deus, não vivemos
mais os tempos duros da repressão militar, mas até hoje, tantos anos depois, não
conseguimos esclarecer a maioria dos crimes, fazer justiça às famílias dos
muitos desaparecidos e, principalmente, garantir que crimes como a tortura
nunca mais se repitam. No Brasil de hoje, a tortura continua sendo praticada em
muitas delegacias de todo o país. No ano passado, no Rio de Janeiro, o pedreiro
Amarildo foitorturado e assassinado por soldados que tinham como missão
pacificar os morros do Rio. Em todas as regiões do país, quase diariamente, são
sumariamente assassinados adolescentes e jovens de periferia, em sua maioria,
negros e pobres. Nesses dias, começamos o tempo de campanha política para as
próximas eleições. A segurança pública e a questão da violência urbana são
temas frequentemente lembrados nas campanhas, mas raramente são abordados a
partir da vida dos mais pobres e desprotegidos.
Ao recordar os 40
anos do martírio de Frei Tito, temos a responsabilidade de fazer com que o seu
sacrifício continue sendo fecundo e possa nos comprometer na construção de uma
sociedade nova.
No final dos anos
70, na Nicarágua, um chefe da guarda nacional, responsável pela repressão na
ditadura de Somoza, quis dobrar a resistência dos prisioneiros políticos.
Entrou no cárcere e com grande alegria, anunciou:
- Hoje, o
comandante Carlos Fonseca caiu em uma emboscada que preparamos. Morreu
Um dos
prisioneiros, o comandante sandinista Tomás Borge respondeu na mesma hora:
Carlos Fonseca é
dos mortos que nunca morrem.
Hoje, ao recordar
essa história podemos dizer o mesmo com os mártires da caminhada. Principalmente,
se renovamos nosso compromisso de luta pela justiça e pela libertação do nosso
povo e de todo o continente, podemos afirmar com confiança: Frei Tito é dos mártires
que não morrem nunca. Estão sempre vivos na atualidade das causas em que
acreditamos e pelas quais pacificamente lutamos.
Marcelo
Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e
assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades
eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da
ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45
livros publicados no Brasil e em outros países.
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