por Maria
Clara Lucchetti Bingemer
O Papa fechou a Porta Santa e encerrou o ano da misericórdia. Mas, ao mesmo
tempo, escreveu a carta apostólica Misericordia et miseranda, que
mostra que esta atitude deve ser o centro da vida de todo cristão.
Comentarei detalhes importantes da carta na próxima crônica. Nesta
resgato as raízes da centralidade da misericórdia para a vida.
A alguns pode deixar perplexos a misericórdia ser o
maior desejo de Deus e não o sacrifício. Pois não nos ensinaram sempre
que é importante fazer sacrifícios, porque esses agradam a Deus? Os da
minha geração certamente perderam a conta de quantas tabelinhas de ramalhetes
espirituais preencheram, em folhinhas parecidas com as do jogo de batalha
naval, dando conta de quantos sacrifícios haviam sido feitos naquele mês.
E esses sacrifícios consistiam em privar-se de balas, ou rezar ajoelhada no
chão frio durante bastante tempo, ou passar um mês sem comer chocolates.
Tudo isso para agradar a Deus. E agora nos dizem que ele não quer
sacrifícios e sim misericórdia? Como assim?
Porque sabe disso, Jesus insiste. Sabe que
não é espontânea em nós a prática da misericórdia. Não é natural nossa
inclinação para olhar o outro sem julgá-lo, sem segregá-lo, sem classificá-lo
com rótulos ou compartimentos que sigam nossos padrões. Pelo contrário, é
costume nosso olhá-lo de cima. Pobre dele ou dela se não tem fé como nós, nem
faz sacrifícios diários e miúdos que acumulamos, acreditando assim economizar
para uma eternidade mais confortável ou mais brilhante.
Ganhar a salvação aplicando na poupança do
sacrifício parece que não agrada a Deus. Pelo menos é isso que diz seu
Filho Jesus, o único que O conhece verdadeiramente. E para reforçar ainda mais
sua afirmação, Jesus o diz após ver seu poder questionado por ocasião da cura de
um paralítico, depois de chamar para segui-lo um publicano malvisto entre o
povo por ser desonesto e ladrão, após ser criticado por comer com publicanos e
pecadores.
Impressionante contexto em que muitos de nós
poderíamos identificar-nos facilmente com os críticos de Jesus.
Esclarecedora situação em que estaríamos certamente entre os que julgam sem
cessar o próximo e por isso têm muito que aprender em termos das preferências
de Deus. Ele não se compraz com nossos sacrifícios, oferendas e rituais,
com os quais pensamos comprar sua benevolência. Mas – pasmem! – deseja a
misericórdia incessante e permanente, uma atitude de vida que nos faça
aproximar-nos do outro com as entranhas carregadas de carinho, ternura e
abertura total. Mesmo que o outro não seja puro, nem justo, nem
imaculado, segundo os cânones oficiais.
Este
é o aprendizado que somos convidados a encetar hoje e sempre.
Não podemos acreditar-nos mestres da pureza e
doutores da ascese, exibindo em praça pública quão grande é o nosso espírito de
penitência e sacrifício. Estamos sendo carinhosamente chamados pelo
Senhor, em convite reforçado pelas palavras de Francisco, a sermos discípulos
da misericórdia, procurando humildemente aprender a fazer dela nosso estilo de
vida.
Em tudo a misericórdia deve perpassar-nos de alto a
baixo. Deve inspirar nossas palavras, fazendo-nos “sair dos círculos
viciosos das condenações e vinganças, que continuam a encadear indivíduos e
nações", tal como disse o Papa. A palavra do cristão, reiterou ele,
"propõe-se fazer crescer a comunhão”. Portanto, logicamente não pode ser
de juízo e condenação sobre o outro.
A misericórdia deve guiar nossos gestos.
Estender a mão ao diferente, ouvir o angustiado, erguer o caído sem condená-lo,
procurar colocar-se no lugar do outro para entender sua perspectiva e aprender
com ela.
O próprio Papa deu o exemplo ao encontrar-se em
Cuba com o patriarca Kirill, da Igreja Ortodoxa russa, em fevereiro passado. Um
gesto concreto que pôs fim a uma separação entre cristãos que já dura mais de
mil anos.
Tudo isso é um delicado aprendizado. Para
tanto, necessitamos de disciplina. E do tempo propício para aprender do próprio
Deus, que quer misericórdia e não sacrifício, que é misericórdia em Si
mesmo. Ao longo de toda a Escritura, nós podemos ver e ouvir esse Deus
desviando o rosto das gordas oferendas rituais a Ele feitas com o coração
carregado de dureza e intransigência, com a vida pontilhada de cupidez e
avareza. Não é possível agradá-lo assim. Pois o que Ele quer é
misericórdia.
Deus é Aquele que recebe o filho que se foi com
festa nunca antes vista naquela casa; que deixa para trás as noventa e nove
ovelhas fiéis e sadias para buscar a que se perdeu nos espinhos do caminho por
não seguir a voz do pastor. Em Jesus, encarnação de sua misericórdia,
Deus acolhe a adúltera sem uma palavra de condenação; aceita com gratidão a
homenagem do amor da pecadora pública que entra no banquete do fariseu e banha
com lágrimas e perfume seus pés cansados da poeira da estrada; cura doentes,
toca leprosos, abraça crianças, liberta os pobres, faz os cegos verem, os
surdos ouvirem e os coxos andarem. Olhando para Ele aprenderemos que a
misericórdia é maior que o sacrifício.
Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ e
teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e
da compaixão"(Edusc) Copyright
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