Por Maria Clara Lucchetti Bingemer
Quando Simone Weil, a grande filósofa
e mística francesa, terminou seu período de um ano de trabalho em diversas
fábricas e montadoras francesas, descreveu para seus amigos sua experiência em
uma frase: "Coisas fazem o papel de homens, homens, o papel de
coisas. Aí jaz a raiz do mal".
Não está longe a frase de Simone Weil da que o Papa
Francisco pronunciou há dias, em Roma, em um discurso aos representantes de
movimentos sociais em que se organizam trabalhadoras e trabalhadores da
economia popular, do campo e de diversos setores que representam os excluídos
da sociedade. O encontro, que teve a participação de 170 delegadas e
delegados de 65 países, convocados pelo Cardeal Turckson, foi realizado no
período de 2 a 5 de novembro último.
Ao
comentar a grande desigualdade existente no mundo, que valoriza o capital e não
a vida humana, o Papa denunciou a ditadura do dinheiro sobre as pessoas.
E comentou com especial ênfase a tragédia dos migrantes que morrem no
Mediterrâneo, às portas da Europa, diariamente. A propósito desse escândalo da
nossa época, disse Francisco: ”No mundo de hoje, quando ocorre a
bancarrota de um banco, imediatamente aparecem somas escandalosas para
salvá-lo, mas quando acontece esta bancarrota da humanidade não existe sequer
uma milésima parte para salvar esses irmãos que sofrem tanto. E assim o
Mediterrâneo transformou-se em um cemitério e não somente o Mediterrâneo…muitos
cemitérios próximos aos muros manchados de sangue inocente.”
Parece que o mundo de hoje está esquecido da Ética
que, segundo o filósofo judeu lituano-francês Emmanuel Levinas, é a filosofia
primeira. A Ética se ocupa dos valores que orientam o comportamento
humano e suas atitudes concretas na vida de cada dia. A Ética é composta
por princípios universais, ações nas quais se acredita e que não mudam
independentemente do lugar onde se está. À diferença da moral, que se
traduz em atitudes concretas e se rege por normas e hábitos recebidos, a Ética
busca a fundamentação teórica para encontrar o melhor modo de viver e conviver,
isto é, busca o melhor estilo de vida, tanto na vida privada quanto na pública.
Quando a solicitude das pessoas e instituições se
desentende daquilo que ameaça e põe em perigo a vida humana; quando os recursos
e os meios de que dispõe a humanidade se voltam para instituições impessoais
que visam ao lucro estéril e improdutivo, centrado na reprodução exponencial e
autofágica do capital que beneficia apenas uma minoria, há algo extremamente
doente e insano na sociedade.
Em boa parte é isso que se vive hoje. Quando
as instituições bancárias estão em perigo, acorrem seus coirmãos do mundo
inteiro para socorrê-las e não deixá-las ir à falência. Porém, quando se
trata da vida de milhares de pessoas, de famílias que fogem da morte buscando a
melhoria de condições, as fronteiras se fecham e os governos voltam as
costas. Parece que os migrantes - homens, mulheres, crianças, famílias
inteiras - que encontram a morte no mar Mediterrâneo ou no deserto do Arizona
são coisas e os bancos com seus cofres fortes e seguranças são seres vivos.
Pobre mundo, pobre humanidade que parece haver
perdido a bússola da dignidade de sua condição. Pobres gerações futuras
que herdarão esse estado de coisas sem jamais haver conhecido outra
realidade. E, no entanto...a esperança está no germinal, na pequena semente.
Simone Weil sofreu a experiência da fábrica que matou sua juventude e deixou um
legado luminoso para os que têm a graça de conhecer sua experiência e seu
pensamento.
O Papa Francisco não se cansa de denunciar e
convocar as consciências para o estado de inversão de valores, de cataclismo
ético em que se encontram o mundo e a sociedade. Fala incansavelmente à
Igreja da qual é pastor e à sociedade que o respeita como líder. Trata-se de
um homem apenas.
Simone Weil era uma frágil mulher, que morreu aos 34
anos, na metade do século passado. As Simones e os Franciscos continuam
existindo. E por isso a esperança pode até ser equilibrista e dançar na
corda bamba de sombrinha, mas não podemos perdê-la de vista. O caos está
a um passo, mas a dignidade humana ainda não submergiu definitivamente.
Podemos escolher: ser Simone, ouvir Francisco, ou seguir em frente como
se nada houvesse, compactuando com uma ordem invertida por ausência de ética.
Dura reflexão na noite em que o mundo acompanhava
ansioso para que direção caminharia o país mais poderoso do mundo, que escolheu
Donald Trump seu novo presidente. Que não nos faltem a graça de Deus e a
esperança, virtude maior que ajuda a enxergar a luz em meio às trevas.
Amém!
Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora
do Departamento de Teologia da PUC-RJ. A
teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e
da compaixão"(Edusc)
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