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quarta-feira, 30 de novembro de 2016

ORDENAÇÃO DE MULHERES? PARA QUAL IGREJA E COM QUAL TEOLOGIA?

Por Ivone Gebara



Minha reflexão embora se abra a um contexto internacional da Igreja Católica Romana se situa mais particularmente no contexto latino-americano até certo ponto menos envolvido na temática da ordenação de mulheres. Nunca fomos assíduas lutadoras nessa reivindicação. Entretanto, nessas últimas semanas em meio ao conturbado contexto político nacional, uma quantidade significativa de textos sobre o assunto tem sido divulgada pelas redes sociais, sobretudo católicas.

Da mesma forma, em diferentes sites nacionais a reflexão sobre a ordenação de mulheres e a possível constituição de uma comissão de estudo no Vaticano para o diaconato feminino tem ocupado espaço significativo. Até uma paróquia da zona leste da cidade de São Paulo organiza para breve um debate sobre o tema. Muitos textos divulgados contam histórias de mulheres que segundo a oficialidade da Igreja Católica foram ilegitimamente ordenadas e, por isso, excomungadas. Calcula-se que mais de duzentas mulheres estejam hoje nessa situação e entre elas há também algumas poucas bispas, ordenadas sigilosamente por bispos refratários às ordens vaticanas. A questão da ordenação das mulheres sai de novo das catacumbas e começa a ver a luz do dia, apesar de envolta em mil e uma dificuldades provenientes de posições de grupos os mais diversos e divergentes.

Uma questão crítica

Reconheço que a efetivação da ordenação de mulheres seria um passo que, segundo algumas pessoas, poderia sanar em parte uma situação de desigualdade pública na sociedade e especialmente na Igreja Católica Romana. Entretanto, é preciso deixar claro que para muitas adeptas e adeptos da ordenação de mulheres trata-se apenas da afirmação de um “direito” de ambos os sexos de representarem Jesus Cristo diante da comunidade e não necessariamente de uma reivindicação feminista. Em outros termos, trata-se de pensar apenas na integração das mulheres ao sacerdócio oficial guardando-se a mesma forma de pensar e viver a Igreja. Critica-se a autoridade católica por não abrir espaços às mulheres quando o que elas pedem é estar a serviço da Igreja em diferentes tipos de trabalho e especialmente no ministério ordenado.

Quero apenas abrir algumas pistas de reflexão frente a essa questão de complexa solução no momento.

A meu ver o problema crítico situa-se justamente na consideração do direito das mulheres muitas vezes tomado de forma bastante simplista. O que significa um direito quando a instituição na qual se quer ter direitos é uma das que nega ou que não apóia muitos direitos às mulheres? O que significa ter direito numa instituição cuja ideologia teológica segue valorizando e incentivando o poder masculino em detrimento de uma visão mais participativa e diversificada de serviços, carismas e poderes? O que significa ter direito à ordenação de mulheres quando há uma visão do sacerdócio eminentemente masculina, anacrônica e com uma secular simbologia teológica masculina? O que significa esse direito quando outros direitos são frontalmente desrespeitados? Será que a admissão ao sacerdócio ordenado traria respostas a essas espinhosas questões?

A teologia sacerdotal vigente

A partir da teologia sacerdotal vigente os padres são revestidos de poderes não apenas simbólicos, mas poderes políticos e sociais que lhes permitem orientar vidas e até manipulá-las ou dominá-las.

Usam muitas vezes dos textos bíblicos como lhes convém e justificam suas escolhas como se fossem emanações evangélicas. Sem dúvida as exceções sempre existem e não quero esquecê-las. Mas, o mais comum é os padres concentrarem uma autoridade sobre as pessoas e especialmente sobre as mulheres mantendo e justificando de muitas formas as hierarquias que dominam a terra.

 Essa concentração exagerada de poder impede a ascensão e organização de ministérios ou serviços múltiplos a partir e em favor das comunidades cristãs. Além disso, o modelo de sacerdote que se apresenta é o sacerdócio de Jesus numa interpretação judaizante que me parece cada vez mais distante das ações e inspirações que descobrimos nos Evangelhos. Em vez de renunciarem ao poder que os coloca em evidencia e ao lado de seus pares seculares fortaleceram as alianças entre poder político, econômico e religioso ao longo dos séculos. Impõem decisões e muitos atuam de forma desrespeitosa, sobretudo quando o assunto refere-se à sexualidade feminina.

Reconheço o papel social e cultural de sacerdotes, pajés, mães e pais de santo, imãs nas diferentes religiões e sua evolução na história contemporânea. Estes atores e atoras sociais não são apenas os únicos “guardiães” da tradição religiosa a que pertencem, mas líderes que deveriam ter o coração colado às necessidades de suas comunidades. Dessa forma a participação dos membros nos serviços e na construção de significados atualizados seria uma responsabilidade comum. Isto requer um constante diálogo e uma divisão de saberes e poderes para responder aos sempre novos desafios do contexto em que se vive. Nesse sentido não pleiteio a extinção do papel de pessoas mais preparadas ou líderes éticos em relação aos conteúdos e tradições religiosas, mas estas pessoas só deveriam ter sua autoridade legitimada na medida em que estiverem em conexão com as questões vividas pela comunidade.

Reforma política da Igreja Católica

Nessa perspectiva não penso que as mulheres devam fortalecer um modelo de sacerdócio hierárquico masculino e nem aceitar a ordenação a partir de uma teologia também hierárquica no seu conteúdo e de simbologia fundamentalmente masculina. No processo histórico atual não se fala de “reforma política na Igreja Católica” o que seria a meu ver útil e necessário. É como se a política e a organização atual da Igreja proviessem diretamente de Deus, segundo a vontade de Jesus e se apresentassem de forma imutável nos diferentes séculos da história e nas diferentes culturas onde o cristianismo se implantou. Falar em “reforma política da Igreja Católica” implica igualmente falar de uma reforma das teologias que sustentam essas políticas de caráter masculino patriarcal centralizador. E a reforma dessa teologia vai revelar quase o óbvio, ou seja, a existência não só de muitas teologias e interpretações, mas entre a vida ordinária cotidiana e as teologias que sustentam a organização da Igreja nos seus diferentes níveis. Em termos concretos estou querendo dizer que uma coisa é a vida de cada dia e outra coisa é a teoria política teológica de uma organização religiosa com suas leis e princípios e, sobretudo com a diversidade de pessoas que dela participam. A pretensa uniformidade dos dogmas, a legalidade das leis canônicas escritas, apesar de sua utilidade, vão de encontro ao pluralismo das situações e crenças presentes nas diferentes culturas e momentos da História. A Igreja hierárquica nem sempre as respeitou, mas muitas vezes as combateu como negações da verdadeira doutrina revelada por Deus. É nesse contexto que também se pode falar das teologias feministas e de sua crítica ao centralismo religioso e ao corte eminentemente masculino de sua simbologia religiosa. Têm denunciado com insistência os abusos do poder religioso, sobretudo em relação à posse indevida da decisão sobre nossos corpos. Têm reinterpretado de forma rica e contextualizada a Bíblia e as teologias de forma a responder aos desafios atuais de nosso mundo.

Estas teologias são quase absolutamente rejeitadas ou ignoradas pelos mantenedores da tradição masculina, pois fogem do roteiro estabelecido por esta tradição.

Teologia feminista

Suspeito que boa parte do movimento em favor da ordenação das mulheres não trabalha na linha crítica assumida por muitas teologias feministas. Buscam apenas a igualdade de gênero nos ministérios sem fazer perguntas às bases de sustentação teológica e política da Igreja na atualidade.

Em geral, apenas visualizam o direito das mulheres a exercer ministérios na Igreja Católica pré-definida, na Igreja “universal” já constituída do ponto de vista de sua organização hierárquica. É como se apenas ao se tornarem presentes nas fileiras sacerdotais, as mulheres pudessem por sua presença modificar algo do panorama real, visual e formal de sua representação até agora unicamente masculina. Não ignoro a importância do visual, das quotas de representatividade, mas apenas isto não modifica por dentro nossas convicções. É preciso ter claro quais os comportamentos sociais, políticos e eclesiais que devem acompanhar a ordenação das mulheres. Que novas políticas a Igreja vai assumir, que orientações se vai propor quando novos “sujeitos”, os femininos, passarem a fazer parte de seus quadros de direção e da liderança das comunidades nos diferentes níveis. Estas são exigências que nós mulheres devemos fazer para não assumir algo como se fosse um favor dos homens de Igreja ou um ato magnânimo de concessão a nós simples mulheres.

Opino dessa forma porque conheço algumas das sacerdotisas, pastoras e candidatas ao sacerdócio feminino e minha impressão embora limitada e discutível, carrega a percepção de que não conseguirão uma mudança qualitativa e significativa na estrutura atual da Igreja Católica. Muitas apenas pedem o sacerdócio, mas não expõem e nem exigem as condições de seu lado para essa efetivação.

Trabalham como se a Igreja que deve reconhecê-las fosse, sobretudo o episcopado e o papado, instituições ministeriais masculinas. São estas que devem conceder-lhes a autorização para servirem a comunidade. Elas, sem perceber, se tornam ou se consideram menos Igreja identificando-a a hierarquia que a governa. Algumas dessas mulheres sacerdotisas têm trabalhos de ponta junto a populações marginalizadas e discretamente reorganizadas por elas. Algumas têm até doutorados em teologia e estudaram em universidades de renome internacional. E, no entanto, essa capacitação não é reconhecida pelos prelados. Posso entender a emoção e o desejo de muitas mulheres de se verem no altar, de sentirem que presidem uma celebração eucarística publicamente e que têm certo poder na comunidade. Posso até avaliar a emoção que algumas narraram de poder levantar a hóstia e dizer “este é o corpo de Cristo” como um sonho de infância esperando ser realizado. Ou ainda a emoção de sentirem-se chamadas de ‘pastoras’, ‘madres’ (?), presbiteras ou diáconas numa paróquia. Não as condeno, mas acredito que poderíamos ir mais longe e exigir bem mais num diálogo que deveria ser entre iguais e não entre superiores e inferiores.

Afetos e poderes absolutos e domésticos

Nessa problemática da ordenação das mulheres há um dado igualmente importante que nem sempre é considerado. Trata-se do fato de o Cristianismo na sua forma católica romana ser uma religião organizada a partir de fortes emoções culturais onde o circuito dos afetos revela uma espécie de divisão social de poderes que reproduz a sociedade na qual vivemos. A figura masculina de Deus Pai, Filho e Espírito Santo reveste-se de poder sócio-emocional absoluto enquanto que as figuras femininas como Maria e as muitas santas revestem-se de poder absoluto doméstico, cuidador, acolhedor, protetor e sanador. A representação sacerdotal masculina aparece também emocionalmente ligada ao poder político absoluto masculino, embora muitas vezes, o poder efetivo e decisivo no imediato seja o feminino. Sabemos bem que a ordenação masculina obedece a uma dogmática hierárquica masculina que no fundo começa pela imagem de Deus Pai entregando poder a seu Filho único que envia o Espírito perpetuado e simbolizado pelos sacerdotes masculinos.

Estaríamos nós mulheres, com o advento do feminismo, do pensamento crítico e da teologia feminista plural, dispostas a manter essa anacrônica hierarquia masculina? Estaríamos dispostas a manter a diferença entre sexo masculino e sexo feminino como desnível de capacidades que se expressa também no desnível salarial no serviço às comunidades? Estaríamos querendo manter a divisão social dos afetos e poderes de forma mecânica e naturalizada? Um pequeno exemplo chama nossa atenção. Hoje em muitas dioceses há uma discrepância salarial entre os padres e as freiras e leigos por serviços semelhantes... A discrepância salarial para além das necessidades de cada um reflete mais uma vez a manutenção do privilégio das hierarquias masculinas no interior da Igreja. A revolução de significados em curso nos tempos de hoje não estaria indicando a necessidade de sair das afirmações dogmáticas do passado e abrir novas possibilidades para repensar a herança cristã para nossos dias? A expansão da luta plural pelos direitos humanos não tocaria igualmente direitos mais amplos na Igreja na diversidade de suas comunidades, organizações e ministérios?

A naturalização

Outro aspecto importante nessa problemática refere-se ao perigo de naturalizarmos os comportamentos masculinos e femininos acreditando que todos os pertencentes a um ou outro gênero e até mesmo os transgêneros, se comportariam da mesma maneira. A naturalização significa tornar certos comportamentos como pré-dados pela natureza ou por Deus e afirmar, por exemplo, que a vocação sacerdotal das mulheres é o cuidado diário e não a lida nas políticas públicas em favor do bem comum. Era isso que se acreditava, por exemplo, em muitos países no tempo da luta sufragista das mulheres. Não se pode mais acreditar que existem tarefas ou trabalhos especificamente masculinos e outros especificamente femininos como se tivéssemos identidades laborais pré-definidas e comportamentos já pré-atribuídos a essas identidades. De certa forma essas atitudes assemelham-se as de Jean Jacques Rousseau e séculos depois ao do positivista Augusto Comte que queriam educar as mulheres em função dos homens e da família e buscavam preservá-las da política e dos vícios da vida social para o benefício da sociedade, dos maridos e da educação dos filhos. Além disso, consideravam as mulheres moralmente melhores do que os homens a até vítimas ilibadas reservando a elas um lugar que nada mais era do que uma reprodução talvez melhorada da naturalização dos comportamentos sociais de gênero. Assistimos hoje a reflexões e atitudes semelhantes embora com matizes e justificações diferentes. Estas precisam ser desconstruídas para que nosso rosto humano misturado apareça na sua complexidade e ambigüidade.

A história

Nesse contexto de “pedido” de ordenação das mulheres não podemos nos esquecer também das perseguições que prelados e funcionários da Igreja Católica Romana exerceram e exercem em relação às mulheres. Acusadas de bruxas ou de usurpadoras do poder de pensar que deveria ser apenas masculino foram condenadas à morte ou perseguidas e castigadas durante sua vida. De Ipazia de Alexandria (assassinada por ordem de futuro São Cirilo de Alexandria), a Marguerite Porette ( condenada à fogueira), a Joana D’Arc (condenada à fogueira) e Juana Inés de la Cruz(condenada e proibida de escrever e ensinar) e, sem falar das muitas contemporâneas, as figuras femininas massacradas por ousarem penetrar nos átrios do saber teológico foram milhares. Será que podemos esquecer estas histórias e também esquecer que nos séculos XX e XXI as teologias feministas repensaram boa parte da tradição cristã, mas que esse pensamento é minimamente conhecido além de freqüentemente recusado pelos donos do poder e saber religioso? A recusa a pensar de outro jeito é com freqüência característica das hierarquias religiosas e políticas... Podemos acaso esquecer que alguns eminentes personagens de nossa história atual até propõem a ‘ingenuamente’ a necessidade de uma ‘teologia da mulher’ ou de uma ‘teologia feminina’ ignorando completamente o percurso já feito durante séculos de história e particularmente da história desses últimos 40 anos? E mais não aceitam sequer que se fale de feminismo no interior da Igreja...

Continuam usando um conceito de igualdade abstrata, igualdade diante de Deus, sem confrontar-se com a real situação de violência e exploração vivida pelas mulheres. É simplesmente lamentável...

Podemos acaso esquecer que ainda hoje há interrogatórios, cartas de advertência, admoestações a congregações religiosas femininas, a teólogas e filósofas que acolhem o dom de pensar a vida como parte do serviço ao Movimento de Jesus? Tudo se articula com tudo. 

Uma reivindicação não é um pedido isolado de um conjunto. A ordenação das mulheres se inscreve nesse complexo contexto de idéias e crenças clericais que governam mentes e corações e mantém estruturas organizacionais anacrônicas. Não pode haver um direito isolado da conjuntura em que ele deva ser afirmado e vivido.

Situação ideal?

Muitas pessoas poderão alegar que busco uma situação ideal para o exercício público do sacerdócio ordenado feminino. De forma alguma. Sinto-me apenas chamada a ajudar a refletir sobre velhas e novas questões em que algumas soluções que parecem justas e igualitárias escondem os sinistros meandros do fortalecimento de um poder hierárquico e patriarcal no qual continuamos a viver, a nos alimentar e alimentar outras vidas. Antes mesmo de aprovar esse sacerdócio como direito das mulheres, o que não penso que o governo atual da Igreja Católica fará, teremos que refletir sobre as condições do direito que pleiteamos e os limites do modelo de sacerdócio vigente. Ao mesmo tempo em que este modelo ainda presta alguns serviços à comunidade cristã, também a isenta de muitas responsabilidades frente à construção de sentidos e à organização plural da vida cristã. Por isso sou contra a ordenação das mulheres como concessão, no estilo atual, pois esse é igualmente limitativo e pernicioso para os homens e mulheres.

Tenho consciência, embora bem limitada, da história das mulheres na Igreja Católica Romana e do enorme percurso de lutas que nós percorremos no Cristianismo. Desde a participação próxima e íntima no Movimento de Jesus até os dias de hoje temos sustentado e vivido a fé, a esperança e a caridade, sabendo desde as nossas entranhas que a caridade continua a ser a maior delas. É nela e a partir dela que a reprodução de modelos sacerdotais tradicionais na configuração atual do mundo corre o risco de manter e até ampliar poderes autoritários que desde muito tempo deveriam ter sido revistos e transformados à luz do reconhecimento da outra/o como meu semelhante e meu diferente. Tudo isso é apenas um convite ao pensamento...



Ivone Gebara é filósofa, religiosa e teóloga. Ela lecionou durante quase 17 anos no Instituto Teológico do Recife – ITER. Dedica-se a escrever e a ministrar cursos e palestras, em diversos países do mundo, sobre hermenêuticas feministas, novas referências éticas e antropológicas e os fundamentos filosóficos e teológicos do discurso religioso. Entre suas obras publicadas estão Compartilhar os pães e os peixes, O cristianismo, a teologia e teologia feminista (2008), O que é Cristianismo (2008), O que é Teologia Feminista (2007), As águas do meu poço. Reflexões sobre experiências de liberdade (2005), entre outras.

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