por Marcelo Barros
No Brasil, o Dia de Ação de Graças
nunca se tornou popular, como é nos Estados Unidos, desde o século XVIII e em
outros países do continente. Em nosso país foi implantado por um decreto do
general Dutra nos anos 40 e depois ratificado em 1966 pelo governo militar. Por
isso, muitos associam essa iniciativa com a ideia de Cristandade e de uma
religião civil pouco crítica. Atualmente, o Brasil é um estado laical e
pluricultural. Isso não significa que qualquer expressão de fé deva ser
reduzida ao âmbito privado do indivíduo. O fenômeno religioso faz parte da
cultura e essa é sempre comunitária e social. No entanto, a sociedade é plural
e nenhuma religião deve ser hegemônica. A função do Estado é cuidar da relação
justa e fraterna entre todas as tradições religiosas, para que possam
contribuir para a paz e a justiça de toda humanidade. O fato do Estado ser
laico não proíbe a celebração de um dia de ação de graças, seja a Deus, seja
dando "graças à Vida", como cantava Violeta Parra.
Essa celebração não pode ser
confessional ou sectária e nem tem sentido agradecer a Deus algo que Deus não
quer nem tem nada a ver com isso. É importante saber por que dar graças. Se
damos graças a Deus por uma vitória militar, ou pelo fato de termos dinheiro e
poder, estamos falando mal de Deus que teria beneficiado a uns e ignorado ou
até prejudicado a outros. Esse Deus, cuja imagem esteve na cruz dos
conquistadores que invadiam território dos índios e os escravizavam nada tem a
ver com o Deus que Jesus nos anunciou. O Deus, cujo nome está em agência de
bancos e nas notas de dólar, não é o Deus que Jesus chamou de Paizinho. Todas
as grandes tradições religiosas da humanidade concordam que se existe Deus, só
pode ser fonte de Justiça, Paz e Amor.
Ainda há poucos dias, em Roma, no 3o encontro
que teve com representantes de movimentos sociais, o papa Francisco repetiu: o
atual sistema econômico que domina o mundo é iníquo e nada tem a ver com Deus.
É a base do terrorismo de Estado e do assassinato violento de muitos
pobres.
Se queremos dar graças, precisamos
reconhecer que todos dependemos uns dos outros. É na comunidade que crescemos
como pessoas e o que temos nunca é apenas individual. Todos os bens da terra,
sob certo ponto de vista, são sempre bens comuns. Por isso, só em uma visão
socialista e comunitária, há lugar para a gratidão e a ação de graças. A ação
de graças supõe uma postura de abertura e ternura em relação à vida, às pessoas
e ao mistério de amor que fecunda o universo. É isso que as antigas tradições
espirituais sempre procuraram ensinar.
Na Bíblia, a palavra salmo vem de um termo hebraico que
significa louvor. Um dos mais importantes livros bíblicos é o livro dos
Louvores (salmos). Poderia se chamar de “palavras do nosso amor”. Os evangelhos
mostram que, muitas vezes, Jesus deu graças ao Pai. Sua confiança de que,
através dele, Deus atuava no mundo era tão forte que, algumas vezes, ele
agradecia a Deus não apenas por fatos que ele havia visto ou vivido e sim por
algo que ainda não ocorrera, mas que ele sabia que Deus iria fazer. Assim,
quando foi ao túmulo de Lázaro, ele deu graças ao Pai, antes mesmo de ver o seu
amigo sair vivo do sepulcro (Cf. Jo 11).
Devemos sim desenvolver uma cultura
da ação de graças. Quem crê em Deus dá graças por contemplá-lo presente em cada
ser do universo e no milagre que é a Vida e o amor que nos une. A ação de
graças tem de ser a postura de cada dia da vida. Para verdadeiramente dar
graças, vamos abrir criticamente nossos olhos e nossa inteligência para a
desordem mundial em que vivemos e nos unir aos movimentos sociais e populares
por uma América Latina livre dos colonialismos e uma terra mais justa, fraterna
e de comunhão eco-social.
Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países.
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