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terça-feira, 22 de novembro de 2016

A SUBVERSÃO DA AÇÃO DE GRAÇAS

por Marcelo Barros


No Brasil, o Dia de Ação de Graças nunca se tornou popular, como é nos Estados Unidos, desde o século XVIII e em outros países do continente. Em nosso país foi implantado por um decreto do general Dutra nos anos 40 e depois ratificado em 1966 pelo governo militar. Por isso, muitos associam essa iniciativa com a ideia de Cristandade e de uma religião civil pouco crítica. Atualmente, o Brasil é um estado laical e pluricultural. Isso não significa que qualquer expressão de fé deva ser reduzida ao âmbito privado do indivíduo. O fenômeno religioso faz parte da cultura e essa é sempre comunitária e social. No entanto, a sociedade é plural e nenhuma religião deve ser hegemônica. A função do Estado é cuidar da relação justa e fraterna entre todas as tradições religiosas, para que possam contribuir para a paz e a justiça de toda humanidade. O fato do Estado ser laico não proíbe a celebração de um dia de ação de graças, seja a Deus, seja dando "graças à Vida", como cantava Violeta Parra.

Essa celebração não pode ser confessional ou sectária e nem tem sentido agradecer a Deus algo que Deus não quer nem tem nada a ver com isso. É importante saber por que dar graças. Se damos graças a Deus por uma vitória militar, ou pelo fato de termos dinheiro e poder, estamos falando mal de Deus que teria beneficiado a uns e ignorado ou até prejudicado a outros. Esse Deus, cuja imagem esteve na cruz dos conquistadores que invadiam território dos índios e os escravizavam nada tem a ver com o Deus que Jesus nos anunciou. O Deus, cujo nome está em agência de bancos e nas notas de dólar, não é o Deus que Jesus chamou de Paizinho. Todas as grandes tradições religiosas da humanidade concordam que se existe Deus, só pode ser fonte de Justiça, Paz e Amor.

 Ainda há poucos dias, em Roma, no 3o encontro que teve com representantes de movimentos sociais, o papa Francisco repetiu: o atual sistema econômico que domina o mundo é iníquo e nada tem a ver com Deus. É a base do terrorismo de Estado e do assassinato violento de muitos pobres. 
Se queremos dar graças, precisamos reconhecer que todos dependemos uns dos outros. É na comunidade que crescemos como pessoas e o que temos nunca é apenas individual. Todos os bens da terra, sob certo ponto de vista, são sempre bens comuns. Por isso, só em uma visão socialista e comunitária, há lugar para a gratidão e a ação de graças. A ação de graças supõe uma postura de abertura e ternura em relação à vida, às pessoas e ao mistério de amor que fecunda o universo. É isso que as antigas tradições espirituais sempre procuraram ensinar.

Na Bíblia, a palavra salmo vem de um termo hebraico que significa louvor. Um dos mais importantes livros bíblicos é o livro dos Louvores (salmos). Poderia se chamar de “palavras do nosso amor”. Os evangelhos mostram que, muitas vezes, Jesus deu graças ao Pai. Sua confiança de que, através dele, Deus atuava no mundo era tão forte que, algumas vezes, ele agradecia a Deus não apenas por fatos que ele havia visto ou vivido e sim por algo que ainda não ocorrera, mas que ele sabia que Deus iria fazer. Assim, quando foi ao túmulo de Lázaro, ele deu graças ao Pai, antes mesmo de ver o seu amigo sair vivo do sepulcro (Cf. Jo 11).
Devemos sim desenvolver uma cultura da ação de graças. Quem crê em Deus dá graças por contemplá-lo presente em cada ser do universo e no milagre que é a Vida e o amor que nos une. A ação de graças tem de ser a postura de cada dia da vida. Para verdadeiramente dar graças, vamos abrir criticamente nossos olhos e nossa inteligência para a desordem mundial em que vivemos e nos unir aos movimentos sociais e populares por uma América Latina livre dos colonialismos e uma terra mais justa, fraterna e de comunhão eco-social.


Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países. 



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