Por Marcelo
Barros
Uma amiga dizia que quem deveria
votar no presidente dos Estados Unidos seriam os povos da América Latina,
dominados pelo império que esse presidente representa. Por enquanto só a
metrópole vota. O fato de que, dessa vez, para gerente dos seus interesses, os
cidadãos do Império tiveram de escolher entre um brutamonte racista e
imprevisível e uma ex-democrata insensível ao mundo dos pobres, responsável
pela invasão da Líbia e de outros países, revela a realidade de uma sociedade
sem rumo nem perspectivas sadias.
Qual será o número do massacre humano provocado
em países da periferia até as próximas eleições presidenciais dos Estados
Unidos? Do lado de cá, o governo brasileiro tem se esforçado bastante para merecer
as boas graças dos patrões que patrocinaram sua ascensão ao poder. Depois dos
velhos tempos de ditadura militar, novamente a polícia bate em estudantes e
professores. Não precisa mais de mandato judicial para prender adolescentes de
menor idade pelo crime de fazerem protestos pacíficos. Lavradores são presos
simplesmente por pertencerem ao MST. Bush fazia guerra para prevenir. O atual governo
brasileiro copia a prisão preventiva. Talvez, o pior de tudo é que a grande
maioria da população, ainda hipnotizada politicamente pelo que há de pior na
mídia, dá o seu pleno acordo ao arbítrio dos policiais, à violência usada
contra pessoas desarmadas, à tortura e até, se for o caso, a matar pobres e de
preferência negros, basta que se pareçam com marginais.
O epicentro desse terremoto cultural
de extremismos é a onda de ódio e intolerância, pregada por telejornais e que
se tornou uma espécie de neurose coletiva, antes nunca vista em um país
pacífico como o Brasil. Nesse contexto, é bom recordar que, a cada ano, a ONU
consagra o 16 de novembro como "dia internacional da tolerância". É
claro que o termo é ambíguo. Tolera-se o que não se pode evitar. Ninguém gosta
de ser apenas tolerado. No plano das relações culturais, o termo se tornou
sinônimo de respeito ao outro e diálogo com o diferente. Em uma sociedade pluralista, garantir o
respeito à liberdade de pensamento e de expressão de quem pensa diferente de
nós é um princípio ético fundamental. Baseia-se na consciência da dignidade de
toda pessoa humana e é garantia de que nós possamos também gozar do mesmo
direito. Nas relações interpessoais, Dom Helder Camara afirmava: "Se você
concorda comigo, eu lhe agradeço, mas se discordar de mim, eu agradecerei mais
ainda. Mesmo que depois de conversarmos, eu continuar pensando como antes, você
já me ajudou a aprofundar o assunto".
Quem vive esse princípio, descobre o
diálogo como princípio de espiritualidade. Há mais de 70 anos, em novembro de
1943, entre os muitos judeus assassinados no campo de concentração de Auschwitz,
morreu uma jovem judia holandesa de 27 anos, chamada Etty (Ester) Hillesun. Essa
moça era uma jovem anônima de Amsterdam. Só se tornou conhecida quando, anos
depois de sua morte, o mundo tomou conhecimento de oito cadernos de anotações
diárias. Os primeiros, ela deixou com amigos. Os últimos foram jogados de um
trem, quando ela foi levada ao campo de concentração onde morreria. Todos foram
reencontrados e, a partir de alguns anos, estão publicados em várias línguas. O
diário de Etty Hillesun revela uma moça alegre, de bem com a vida. Por
solidariedade ao seu povo, entregou-se e foi levada a um campo de concentração.
No campo de concentração, em meio às barbaridades que ela sofreu e via os
outros sofrerem, escreveu: “nessas circunstâncias tão terríveis, a minha
contribuição para o meu povo é que não podemos abrir mão da misericórdia.
Precisamos nos tornar incapazes de odiar, aconteça o que acontecer conosco.
Essa será nossa única força”. "O inimigo pode tirar tudo de nós, até a
vida. No entanto, não pode roubar nossa integridade interior, firmada a partir
de uma opção de amar e ser benevolente". “Dentro de mim, há um poço muito
profundo. Nem consigo ver o seu fundo. Às vezes, me parece coberto de pedras e
lixo. Então, para mim, Deus está sepultado. Em alguns momentos, consigo
desenterra-lo e posso até ajudar outras pessoas a desenterrá-lo em seus
corações. Percebo que em uma situação como essa, ó Deus, tu não podes nos
ajudar. Mas, nós podemos sim fazer muito por ti. Podemos ajudar-te a não te
deixar sepultado em nós e a ser testemunhas do teu amor, em uma realidade na
qual todo amor é abolido e chacinado”.
Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países.
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