Por Leonardo Boff
Face ao novo Governo de ultradireita, furioso e
perseguidor, atingindo já direitos fundamentais dos cidadãos, especialmente os
salários e os de outra condição sexual, precisamos unir nossas forças de
resistência e de crítica, por um imperativo ético, de salvaguarda da democracia
e dos commons que pertencem ao povo brasileiro.
Além desse esforço cívico, precisamos da ajuda do
santo preferido dos cariocas que é São Jorge. Sua história legendária nos pode
dar ânimo e fortaleza.
Um dragão terrível ameaçava uma pequena cidade no
Norte da África. Exigia vidas humanas escolhidas por sorteio. Certo dia, a
sorte caiu sobre a filha do rei. Vestida de noiva foi ao encontro da morte. Eis
senão quando, irrompe São Jorge com seu cavalo branco e sua longa lança. Fere o
dragão e o domina. Amarra a boca com o cinto da princesa e o conduz manso como
um cordeiro até o centro da cidade.
Precisamos interpretar esta legenda pois pode
melhorar nossa consciência sobre o que somos realmente. Sigo aqui as reflexões
da psicologia analítica de C. G. Jung especialmente de seu discípulo preferido
Erik Neumann (cf. A história da origem da consciência, Cultrix
1990). Segundo ele, o dragão amedrontador e o cavaleiro heroico são duas
dimensões do mesmo ser humano. O dragão em nós é o nosso inconsciente, a nossa
ancestralidade obscura, nossas sombras. nossas raivas e ódios. Deste transfundo
irromperam para a luz a consciência, a independência do ego e nossa capacidade
de amar e conviver humanamente, representados por São Jorge. Por isso que em algumas
iconografias, especialmente uma da Catalunha (é seu patrono), o dragão aparece
envolvendo todo o corpo do cavaleiro São Jorge, bem como aquela do brasileiro
Rogério Fernandes.
Somos esta contradição viva: temos a porção São
Jorge e a porção dragão dentro de nós. O desafio da vida que sempre nos
acompanha e nunca tem um fim definitivo é São Jorge manter subjugado o dragão.
Não se trata de matá-lo mas de domesticá-lo e tirar-lhe a ferocidade.
O povo sente necessidade de um santo guerreiro e
vencedor, como se mostrou na novela ”Salve Jorge” cujo script foi feito por uma
grande devota do santo, Malga di Paulo. São Jorge salva as mulheres
prostituídas contra o dragão do tráfico internacional de mulheres.
O que assistimos ultimamente no Brasil e
especialmente durante a campanha eleitoral e agora, infelizmente, no atual
governo é a irrupção do dragão. Aqui ele foi solto e se expressou por todo tipo
de violência verbal e até física contra homoafetivos, indígenas, opositores e
mulheres. Como já escrevemos neste lugar, é a emergência da dimensão perversa
de nossa “cordialidade” que, segundo Sérgio Buarque de Holanda, pode se
manifestar mediante o ódio e a inimizade, posto que ela vem também do
coração, donde se origina a cordialidade. Ela estava e está sempre presente
dentro de nós. Mas criou-se uma condição psico-social-política que pôde sair da
escuridão e se manifestar destrutivamente.
Diante do dragão que ganhou visibilidade que vamos
fazer? Precisamos acordar o São Jorge que está em nós. Ele sempre venceu o dragão.
Vamos usar as armas que eles não podem usar. Às discriminações respondemos com
a inclusão de todos indistintamente. Ao ódio disseminado contra opositores,
responderemos com amorosidade e compaixão. À criação de bodes expiatórios,
responderemos com a defesa dos inocentemente marginalizados e injustamente
condenados. Às mentiras e às visões fantasiosas que nos querem levar à Idade
Média, responderemos com a força dos fatos e fazer valer o sentido da
contemporaneidade.
Importa vencer o mal com o bem. Não revidar com os
métodos e ideologias esdrúxulas que apresentam, com a pretensão de não ter
ideologia. O que na verdade mais têm os membros do partido e vários ministros é
uma bizarra ideologia de fazer sorrir de tão rasa, velhista e ridícula.
Nesse afã, fazemos nossa a oração popular: ”Andarei
vestido e armado com as armas de São Jorge para que meus inimigos, tendo pés
não me alcancem, tendo mãos, não me peguem e tendo olhos não me enxerguem…E
meus inimigos fiquem humildes e submissos a Vós. Amém”.
Leonardo Boff é teólogo e coordenador da tradução
da obra completa de C.G.Jung junto à editora Vozes.
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