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quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

O ELEFANTE DE WITTGENSTEIN. A QUESTÃO DO CONHECIMENTO NOS DIAS DE HOJE




Por Eduardo Hoornaert

Certa vez, ao discutir questões filosóficas com um colega num gabinete da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, Ludwig Wittgenstein, com sua conhecida impetuosidade, gritou: ‘Há um elefante na sala’. Com isso, ele quis indicar que seu interlocutor, ao que lhe parecia, não enxergava o óbvio.

A imagem desse elefante me parece apropriada para passar um olhar crítico pelos vastos campos da cognição na civilização ocidental. Desde os primeiros esboços na Mesopotâmia, a impressão que se tem é que o próprio processo civilizador impede de enxergar elefantes de Wittgenstein, principalmente o elefante da escravidão. Na Grécia clássica, que nos lega a filosofia, a escravidão é onipresente, mas invisível. Dizem os historiadores que, na cidade de Atenas em tempo de Péricles (séc. V aC), cinco mil cidadãos vivem sustentados por cem mil escravos, um número aproximativo, pois acerca de escravos não existe registro escrito. No Liceu de Atenas (fundado por Aristóteles no século IV aC) não é difícil se imaginar um vai-e-vem incessante de ‘pedagogos’, escravos que trazem e levam crianças e jovens de famílias boas para participar de exercícios educativos. Pelo pátio do referido Liceu, homens e mulheres se cruzam, a preparar as mesas, servir comidas e bebidas, limpar o chão e as latrinas. Os estudantes não lhes dão atenção.

 Nem o próprio Mestre Aristóteles, que lhes dedica apenas umas linhas de sua ‘Política’ (não cito textualmente): ‘esses nossos servidores fazem o que lhes compete fazer para o bom andamento do Liceu e isso lhes dá satisfação. A natureza cria uns para mandar e outros para obedecer. Os ‘servi ex natura’ (servos por natureza) nos são úteis, e mais não digo, já que temos que nos conformar com as leis da natureza, que dispensam reflexões filosóficas’. Em outras palavras: Aristóteles deixa o colossal elefante de Wittgenstein perambular tranquilamente por seu território.

Séculos depois, o teólogo cristão Agostinho (séc. V dC) não pensa diferente. Ele se mostra triste com os destinos da humanidade pecadora, essa ‘massa damnada’ herdeira do ‘pecado original’ de Adão e Eva. Mas não parece afetado pelo fato que, na guarnição militar costeira romana, sediada em Hipona, onde ele é bispo, se despacham rotineiramente grupos de africanos algemados, com destino aos mercados de escravos existentes na Itália. O teólogo lamenta o ‘inferno’ dos pecadores, mas não parece ouvir os lamentos e sussurros de africanos a serem embarcados para o inferno da escravidão romana. O mestre cristão repete basicamente a argumentação de Aristóteles, só que atribui a escravidão ao pecado, o pecado de Cam. Comentando os versículos 21 a 25 do livro 9 de Gênesis, Agostinho explica que Cam, o filho ‘etíope’ (leia: negro) de Noé, não trata seu pai, desnudo e embriagado em baixo da lona, com o devido respeito. Este, ao acordar e ouvir o relato, condena peremptoriamente Cam e todos os seus descendentes:

Maldito seja Canaã (filho de Cam)
Seja ele escravo de seus irmãos.

Assim a carruagem dos tempos vai invariavelmente acompanhada pelo lento e pesado passo do elefante invisível de Wittgenstein, como nos lembra o escritor português José Saramago em seu ‘Ensaio de Cegueira’ (1995): as pessoas veem, mas não enxergam.

 De modo ainda mais premente, no conto ‘A roupa nova do Rei’, o escritor dinamarquês Hans Christian Andersen (1837) narra que o alfaiate do rei, ao confeccionar uma nova roupa, ‘nunca vista’, para o rei, adverte: ‘só os inteligentes conseguirão enxergar a nova roupa do Rei’. Assim, este pode passear pelado pelas ruas sem que ninguém diga nada. Só uma criança grita: ‘o rei está nu’.

A permanência do elefante de Wittgenstein na cultura ocidental levanta uma questão filosófica. Como se chega a não enxergar uma evidência? Uma pergunta que toca num dos pontos fundamentais da filosofia, a epistemologia. Enfim, de que modo chegamos a conhecer algo? Como se estrutura nosso conhecimento (nossa cognição)? A resposta secular, dada pela filosofia: conhecemos por meio da informação, seja direta, por meio dos cinco sentidos, seja indireta, por falas, escritas ou imagens. As informações diretas, físicas, geram diretamente a evidência. Ou seja, o melhor meio de adquirir conhecimento consiste na observação atenta das coisas, por meio dos cinco sentidos.

E as informações indiretas, por meio de falas, escritas ou imagens? Em que condições elas geram evidências? Aristóteles, em sua ‘Ética’, ao afirmar que a verdade consiste em considerar ‘aquilo que é’ (id quod est), não deixa de observar que essa consideração implica num imperativo ético: nem sempre ‘aquilo que é’ me agrada, está em conformidade com meus interesses. Daí a complicação.

Aqui estamos diante de uma questão em cima da qual os filósofos se debruçam desde séculos: nas informações costumam entrar imperativos não éticos, embora comumente revestidos de moralidade, como são, por exemplo: interesses pessoais, vantagens financeiras, luta pelo poder e exercício do poder, obediência a ordens dadas, compromissos de vida já assumidos, opção por modelos autoritários, ou simplesmente acomodação com situações injustas existentes. A dificuldade consiste no fato que, na maioria dos casos, esses discursos se apresentam como sendo designativos, ou seja, pretendem expressar as coisas como elas são efetivamente. Eis o engodo que poucos parecem perceber. Discursos aparentemente designativos podem ocultar o que se pretende efetivamente: emitir uma ordem, expressar um desejo, uma exortação, um sentimento, uma intuição, uma imaginação, um sonho, um projeto, um cálculo, etc. São discursos que não revelam, mas escondem, contêm intencionalidades não confessas, procuram exercer um domínio sobre as mentes humanas, com a finalidade de fazer passar determinados posicionamentos, formar consensos, enfim, enganar as pessoas.

Não é difícil constatar que a maioria dos discursos, hoje emitidos por poderes políticos e econômicos, serve para justificar imperativos não éticos. Isso cria uma situação dramática, que todos e todas podemos observar diariamente em contatos com nossos vizinhos. As pessoas acabam se metendo num labirinto de palavras tão intricado, que elas não encontram mais a saída. Elas se parecem com aquelas moscas que voam para cá e para lá dentro de uma garrafa aberta. A boca da garrafa está aberta, ou seja, há saída. Mas as pessoas não a encontram, de tão confusas e desorientadas, tão desacostumadas a refletir. Elas costumam, desde muito, entregar sua inteligência ao ‘Jornal Nacional’ da TV Globo ou às manchetes da revista Veja. Desse modo mal escapam ao bombardeio diário de Fake News, que hoje toma conta dos noticiários. Eis uma situação que o sociólogo polonês Zygmunt Bauman qualifica de ‘líquida’. Não há mais verdade, só há notícias.

Fico pensando: como é que esse tema da complexidade cognitiva ficou por tanto tempo fora das cogitações de eminentes filósofos clássicos da tradição ocidental, como Aristóteles e Agostinho, que – como escrevi acima – nem conseguem enxergar o elefante de Wittgenstein a passear por seus territórios? Como é e que eles não alertam com o devido vigor diante dos perigos de uma cognição pervertida? Mesmo muitos filósofos modernos parecem omissos nesse ponto, ao dar a impressão de confiar demais em ‘informações’. Quem contempla o atual cenário do universo cognitivo, verifica com espanto quão facilmente as pessoas se deixam prender nas redes de discursos enganosos. Como já dizia Maquiavelli, as pessoas costumam ficar indefesas (ele fala até em ‘disponíveis’) diante de enunciados emanados de fontes que lhes parecem confiáveis. Voltaire ainda acrescentou: ‘mentez, mentez toujours: il en restera toujours quelque chose’ (mintam, mintam sempre: algo há de ficar). E Goebbels, ministro da informação do governo nazista, completou: ‘uma mentira repetida mil vezes se torna verdade’.

Afinal, tivemos de esperar a revolução linguística do século XX para ver aparecer uma geração de filósofos disposta a encarar de frente a questão cognitiva e se propor a premunir as pessoas contra palavras enganosas, esclarecer a perversidade de determinados usos da linguagem e precaver diante de palavras pretensamente designativas. Não é por acaso que um dos analistas políticos mais argutos de nossos dias seja Noam Chomsky, um linguista. Nem falo em Slavoj Zizek, Bakhtin, Ricoeur, Bourdieu e outros.
Esses filósofos linguistas nos propõem um exercício diário, o de limpar nossa cabeça. Ninguém se engane, a ‘Fake News’ veio para ficar e se desenvolver sempre mais, pois repousa sobre uma tecnologia em pleno desenvolvimento, que ainda não revelou todas as suas potencialidades. Vivemos em sociedades cada vez mais ‘informáticas’, onde não só enormes conglomerados informativos derramam sobre nós diariamente um fluxo ininterrupto de informações, mas onde o twitter permite que cada um(a) de nós emita, por sua vez, informações e afirmações, a seu bel prazer. Nossa única defesa reside em nosso cérebro, como nos lembra Mao Tse Tung:

Que os pássaros façam ninhos nas árvores
Você não pode impedir.
Mas que eles façam ninhos em seu cabelo
Isso você pode impedir.

Em outras palavras: somos convidados a praticar um exercício contínuo e diário de domínio inteligente sobre nosso próprio pensamento. E no Brasil 2019 não faltam oportunidades para tanto: elas são diárias!

Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.

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