Por
Maria Clara Lucchetti Bingemer
Em 2005, chorei e lamentei o resultado do
plebiscito. Depois de lutar em várias frentes pelo fim da liberação do
posse de armas e de sua comercialização, tive que amargar, junto com outros
tantos, a derrota por larga margem. Os que defendiam a comercialização de
armas e sua posse venceram.
Agora, o presidente assina o decreto que legitima
não só a posse de arma, chegando a facultar a uma mesma pessoa possuir até
quatro armas de fogo. O choro e o lamento recrudescem com mais
força. Parece que o Brasil caminha cada vez mais célere em direção a
converter-se em um país bélico e violento.
São de impressionar os argumentos para o decreto
que legitima posse de armas. Embora os defensores desta medida digam ser uma
iniciativa que mitigará a violência, isso é conhecido e largamente
desmentido por todas as estatísticas. Mais armas geram mais violência e
também mais mortes. Que o digam as mulheres, cujos assassinatos
proliferam exponencialmente no país e que agora terão que conviver com
companheiros não apenas violentos e agressivos, mas armados. As mortes de
mulheres certamente vão aumentar no Brasil com essa medida.
Mas há mais: armas de fogo, letais e mortíferas,
são comparadas a carros, que podem ter acidentes, e a liquidificadores, que
podem machucar dedos de crianças. Creio que há uma profunda diferença
entre os objetos comparados aqui. Um carro tem a finalidade de
transportar. Se mal dirigido ou se abalroado por outro veículo ou
qualquer outra causa, pode sofrer um acidente e eventualmente provocar ferimentos
e morte. Um liquidificador é um eletrodoméstico que tem a finalidade de
fazer sucos ou vitaminas com vários legumes ou sopas etc. Eventualmente, se uma
criança escapa do controle da mãe ou do responsável e coloca o dedo em seu
motor, pode machucar-se.
Já arma de fogo tem como finalidade ferir e
matar. Este é o seu objetivo e para isso será usada. Quando portada
por um adulto, pode atirar em legítima defesa ou por vingança, ou outro
qualquer motivo. Mas quando manipulada por uma criança, pode transformar
o que era uma inocente brincadeira em uma tragédia sem tamanho.
Não pretendo aqui repetir as inúmeras análises já
feitas brilhantemente por tantos jornalistas e comentaristas das mais diversas
áreas. Restrinjo-me à minha área de conhecimento que é a teologia cristã.
E pergunto: como pode um governo que tanto valoriza o Evangelho, que reivindica
em várias situações e várias instâncias o respaldo de Deus para suas decisões e
ações, tomar medidas que vão em direção contrária a tudo que a Palavra de Deus
proclama com força e insistência? A liberação da posse de armas contraria as
propostas mais centrais do Evangelho de Jesus e, portanto, da Bíblia cristã.
O uso de armas, quaisquer que sejam elas, sempre
foi questionado pelo Deus da Revelação cristã e radicalmente condenado por
Jesus de Nazaré em quem os cristãos reconhecem o Filho de Deus e Deus
mesmo.
Em momento algum de sua pregação e ministério,
Jesus solicitou ou permitiu aos que o seguiam como discípulos que apelassem
para a violência. No Jardim das Oliveiras, já bem próximo à sua prisão, o
Mestre repreendeu a atitude dos discípulos que faziam uso da espada.
E esse texto se encontra em mais de um evangelho: “embainha a tua espada”, diz
João 18,10; “pois todos os que tomam a espada morrerão pela espada”, dirá
Mateus 26,52. A mensagem é clara: não pode ser instrumento de
salvação o que traz a morte.
Muito significativa ainda é a atitude de Jesus
relatada apenas em Lucas 22,49-51: diante da pergunta dos seus “Senhor, devemos
ferir com a espada? ” E à ação de usá-la decepando a orelha do soldado romano,
Jesus respondeu curando o que foi ferido, mesmo sendo um “inimigo”. Trata-se de
reação não apenas de repreensão. Mais ainda: de reparação que o Mestre, às
portas da morte, assumiu diante da tentativa de violência praticada por um dos
discípulos. Com isso vemos o Evangelho dizendo: não basta não concordar com a
violência e não portar instrumentos que a provoquem e efetuem; é necessário
reparar seus danos, curar suas feridas. Jesus diz “Basta”. Trata-se aqui de um
“basta” a toda e qualquer tentativa de violência, mesmo que seja na melhor das
intenções, que no caso dos discípulos, era de salvar o Mestre dos soldados que
vinham prendê-lo.
A mim, particularmente, em todos os episódios que
antecederam a assinatura do decreto, chocou-me a atitude de padres que defendem
o porte de armas e que entram em escolas de tiro para aprender a usá-las.
Argumentam que atirar em legítima defesa é moral, porque mata não um inocente,
mas um agressor. E exortam os fiéis a liberar-se do complexo de culpa e
da ideologia pacifista.
Com todo respeito, creio que sobre isso o evangelho
é bem claro. Para um cristão, a violência não se justifica nunca. E se
queremos – como é fato – que a segurança e a paz reinem em nosso país, o caminho
certamente não é o de facilitar venda e posse de armas. Mas sim trabalhar
para que haja mais justiça, a fim de que haja menos violência. Como já dizia
São Paulo VI: “o desenvolvimento é o novo nome da paz. ” Justiça e paz andam de
mãos dadas e não se pode construir uma sem a outra.”
Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da
PUC-Rio, autora
de de “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), entre
outros livros.
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