Por Maria Clara Lucchetti Bingemer
A violência urbana é um dos maiores problemas que, hoje em
dia, atinge não só o Rio de Janeiro, como a maioria das cidades brasileiras.
Trata-se, além disso, de uma situação que acontece igualmente em nível mundial.
No entanto, apesar da gravidade do problema, sente-se que faltam luzes,
perspectivas, no seu enfrentamento e, sobretudo, idéias que tenham
uma dimensão prática, concreta, que possam ser traduzidas em ações. Neste
sentido, é fundamental a participação ativa da Igreja Católica, não só em
termos de ação pastoral, como igualmente na elaboração de uma reflexão no
combate à violência.
A Igreja tem a tradição de um pensamento que se transforma em
ação. Foi muito atuante nos anos 60, 70, 80, em toda a questão social no país.
Durante a Ditadura, a Igreja foi, sem dúvida, um santuário não só da
resistência ao autoritarismo, como porta de abertura de uma agenda social
muito forte. Feita a democratização, vejo que entramos em outros períodos,
outro contexto, no qual o tema da violência foi ocupando um lugar central. E é
justamente aí que uma participação forte da Igreja se faz necessária e mesmo
indispensável no momento desse debate. Trata-se, em síntese, de refletir e
atuar sobre a relação entre direitos humanos, segurança pública e violência.
O Brasil tem uma memória na qual se encontra a temática dos
direitos humanos, seus valores, operadores, e seus militantes
formados em confronto com os teóricos, valores e operadores da
segurança. A memória do tempo da Ditadura Militar coloca a militância dos direitos
humanos em confronto com a da segurança pública, trocando acusações entre
si, trocando, às vezes, até cadáveres.
Há uma forte dicotomia entre essas duas tradições: a
dos direitos humanos e a da segurança pública, a ponto de o tema direitos humanos
no Brasil com freqüência ser associado, na opinião pública, a um discurso que
ignora o problema da segurança e defende os bandidos e criminosos, sob alegação
de motivos ideológicos. A origem de tal oposição vem do fato de que a
afirmação dos direitos humanos foi feita num momento em que o Estado, não só no
Brasil, estava numa situação de totalitarismo, como o nazismo, ou com o
socialismo totalitário; ou em situações de regimes militares, ditaduras.
A afirmação dos direitos humanos era, pois, a afirmação
de direitos, individuais ou de grupos, diante de uma autoridade do Estado. É
como se fosse a defesa do indivíduo e dos grupos contra um poder que vem de
cima. Foi nesse contexto que tudo se formou, com base nas denúncias de prisões
arbitrárias, de tortura, do abuso da autoridade e da violência. Os direitos
humanos se formaram nesse contexto, de defesa de direitos dos indivíduos diante
de um poder externo, um poder autoritário de Estado. É nessa posição que a
temática dos direitos humanos se firmou na nossa memória recente da segunda
metade do século XX, depois da Segunda Guerra. Porém, a impostação do problema
foi superada pelo processo de democratização no qual tivemos o fim do poder
autoritário, mas a continuação da violência.
O que percebemos, sobretudo nas comunidades pobres do Brasil
e da América Latina, é que o fato de viverem em tamanha insegurança implica uma
perda efetiva dos direitos básicos associados aos direitos humanos. Ou seja,
numa situação de insegurança, as pessoas têm dificuldade de liberdade de
expressão. Sabemos da prática da lei do silêncio, como é chamada, a qual
resulta justamente da profunda insegurança em que as pessoas vivem.
Se alguém é violentado ou tem alguma pessoa próxima agredida
hoje no Brasil, o mais comum é que as pessoas próximas, ou a família,
perguntem-se e acabem concluindo que não é negócio, não faz sentido chamar a
polícia, a Justiça para ajudar.
O direito básico, elementar de recorrer à Justiça, e de
reportar uma violência da qual se foi vítima está eliminado pela insegurança. O
direito de associação, por sua vez, é muito complicado em condições de
insegurança. Em muitos bairros, vemos, até mesmo, dificuldade do chamado ir
e vir. Temos, dentro de algumas das grandes cidades brasileiras, comunidades
que, em certos períodos, vivem uma realidade de Estado de Sítio. Quer dizer, há
horário para voltar para casa correndo o mínimo de perigo possível.
Chegamos a esse nível de interferência nos direitos
elementares. E a experiência que viemos fazendo nas últimas décadas mostra
claramente que a insegurança acarreta perda, de fato, dos direitos elementares
que compõem a agenda dos direitos humanos. Isso significa que segurança é uma
condição desses direitos, não se opondo, em seus princípios, a eles. É
essencial para que os vários direitos individuais e coletivos possam ser
exercidos.
É uma idéia que contraria a nossa memória recente, embora
esteja na origem do pensamento político democrático. O grande debate dessa
área de reflexão se dá sobre quem controla as armas. Existem armas na
sociedade, e alguém precisa controlá-las. Essa fiscalização é realizada pelo
Estado. Mas agora a pergunta é: Quem controla o Estado, que controla as armas?
Existe, portanto, todo um debate sobre as formas democráticas de participação
de controle.
Por isso, o grande desafio hoje é conseguir integrar essas
duas histórias, esses dois temas, e produzir uma dinâmica que é difícil, porque
evidentemente o tema da segurança impõe o tema da força, o uso da força na
sociedade, seus limites e seu controle. Mas há uma tensão inerente a essa
relação, uma tensão constitutiva. Sem segurança, não se tem direitos humanos.
Isso implica numa abordagem do tema da segurança pública inseparável do
tema dos direitos humanos.
A dificuldade central é que se tem, de um lado, o uso da
força, a imposição de limites e, de outro, o comportamento das pessoas. Sabemos
que a autoridade da lei implica uma combinação: o uso da força, da capacidade
de impor limites, que é uma capacidade distintiva da polícia, e a legitimidade
dessa lei, dessa ação. Essa relação entre legitimidade e uso da força é
difícil, mas é óbvio que, quanto maior a legitimidade, menor o uso da força, e
vice-versa.
O que vivemos hoje no nosso país é um uso da força que, na
maioria absoluta dos casos, aparece como ilegítima. O típico trabalho policial
que encontramos na sociedade é um trabalho que só aparece quando alguma
tragédia já aconteceu. É por causa disso que a polícia está associada à
tragédia. Ela aparece para reagir a alguma crise, algum problema, alguma
desordem ou tragédia. É uma reação, na maior parte das vezes, que não resolve
problema algum.
O que está em jogo é recuperar um sentido de segurança que
seja reconhecido, e, portanto, legitimado, como um princípio viabilizador dos
direitos e do desenvolvimento. Dos direitos num sentido bem pleno, não apenas
daquele direito mínimo do exercício da liberdade individual, mas num sentido
maior, de propiciador da superação de conflitos e contradições que são
geradores de violência.
Se a polícia tivesse, com a comunidade, uma agenda de
resolução de problemas, teríamos o que chamamos de trabalho preventivo.
Não existe esse tipo de planejamento para a resolução de problemas. Para se ter
um trabalho desse tipo, é preciso que os policiais sejam formados e tenham uma
agenda que reconheça a sua capacidade de agir. Não só receber ordens, mas agir
na situação.
Não há dúvidas de que há um trabalho a ser feito, e há muito
espaço para a sociedade civil, a Universidade, as ONG‚s e a Igreja participarem
dele. Talvez uma Pastoral da Policia precise ser desenvolvida com
urgência. Já existe um trabalho na polícia, mas está mais limitado aos eventos
rituais.
Em todo caso, o Evangelho tem certamente muito a dizer com
sua mensagem de amor e perdão até as últimas conseqüências, seguindo o exemplo
do próprio Jesus Cristo. Mas há que haver uma mobilização lúcida e
esclarecida para que essa mensagem evangélica possa dar todos os frutos que é
capaz de dar.
Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do
Departamento de Teologia da PUC-Rio, autora de de “Mística e
Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), sua mais recente obra, entre outros
livros.
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