por Maria Clara Lucchetti Bingemer
As situações-limite pelas quais passa a humanidade são reveladoras. Às
vezes ressaltam a crueldade de que são capazes os seres humanos, inventando
técnicas de tortura, linhas de montagem industriais para eliminação massiva de
pessoas, corrupção monumental que beneficia uns poucos, atirando outros mais
fundo na fome e na miséria. Pressionado pela desgraça e a crueldade, o ser
humano se animaliza e em seu instinto de sobrevivência busca a todo custo
salvar-se ainda que seja ao preço da vida e da segurança de outros.
O extraordinário é que essas mesmas situações extremas revelam um outro
aspecto, não tenebroso, mas luminoso. E extremamente criativo. Evidenciam
os ápices de nobreza da qual são capazes os mesmos seres humanos, os quais,
premidos e encurralados por tiranias e opressões, criam respostas generosas e
até mesmo heroicas. Ou seja, extraem vida ali onde a vida é humanamente
impossível.
Toda essa introdução vem a propósito da festa – celebrada em 14 de agosto -
de um santo do século XX que talvez seja pouco conhecido: o franciscano
polonês Maximiliano Kolbe. Entrando jovem para a ordem franciscana, fez
doutorado em filosofia e teologia em Roma. Foi posteriormente missionário no
Japão. Era profundamente devoto da Virgem Maria e se dedicou durante toda a
vida a promover a espiritualidade de veneração a ela como Imaculada, ou seja, a
sem pecado, a toda pura.
O fato mais marcante da biografia desse homem acontece, no entanto em
Auschwitz, o campo de extermínio nazista para onde foi levado como prisioneiro
durante a Segunda Guerra Mundial. O número tatuado em seu braço
era 16.670. Um dia do ano de 1941, após a fuga de um prisioneiro, os
SS seguiram o protocolo habitual. Dez outros prisioneiros deviam morrer como represália
à fuga. O sargento polonês Franciszek Gajowniczek, ao ouvir seu nome chamado
para dar um passo à frente murmurou: “Coitada de minha esposa e de meus
filhos”.
Maximiliano Kolbe, que estava a seu lado, ouviu essas palavras e interpelou o
oficial nazista dizendo: “Sou um sacerdote católico polonês. Estou
velho. Gostaria de ocupar o lugar deste homem, que tem esposa e filhos”.
O oficial ficou irritado, mas finalmente aceitou o louco oferecimento de
Kolbe. E o franciscano de 47 anos foi enviado a uma cela subterrânea
juntamente com outros nove a fim de morrer de fome.
Kolbe, enquanto teve forças e lhe foi permitido, celebrou a Eucaristia com pão
e vinho fornecidos às escondidas por guardas que lhe tinham simpatia.
Após três semanas, ainda sobrevivia, juntamente com três outros. Os
nazistas necessitavam desocupar a cela onde estavam os condenados e eliminaram
os sobreviventes com uma injeção de fenol. Os corpos foram incinerados no forno
crematório no dia seguinte. Era o dia 15 de agosto, festa da Assunção de
Maria.
Não posso dizer que sintonizo com o
estilo de espiritualidade de Maximiliano Kolbe. Sua intensa devoção à
Imaculada Conceição de Maria é admirável, mas soa um tanto piegas para os dias
de hoje, sobretudo em tempos de diálogo ecumênico, quando importa reforçar os
pontos em comum com os irmãos de outras igrejas.
Porém, sintonizando ou não, é
necessário reconhecer que seu gesto é de uma força tal que dignifica não apenas
sua pessoa, mas a todo o gênero humano. Revela a constitutiva capacidade
de autotranscedência que tem a criatura finita penetrada pelo Espírito divino.
Em meio a um contexto de morte e horror, o obscuro franciscano realizou um movimento
redentor de extraordinário alcance. De sua morte brotou a vida para um homem e
toda a sua família. E seu testemunho permanece através dos tempos
lembrando que é salvando a vida do outro que salvo a minha.
Na festa de São Maximiliano Kolbe, a
alteridade revela sua prevalência sobre o ego e suas imediatas necessidades. E
o amor mostra-se mais criativo que o ódio, gerando vida ali onde os conluios da
morte parecem haver fechado todas as saídas.
--
Maria
Clara Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e
autora de “O mistério e o mundo” (Editora Rocco), entre outros livros.
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