Por Eduardo Hoornaert.
A luta do Papa Francisco
por uma palavra evangélica merece ser situada diante de um amplo horizonte
histórico. Assim se percebe melhor sua importância. Neste segundo texto acerca
da ‘luta pela palavra’, regrido ao século II dC, uma época bem próxima à vida
de Jesus, para mostrar que ali já se trava um embate em torno da palavra, algo
que tem a ver com a atual luta do Papa Francisco. Embora se possa dizer que
toda a história do cristianismo, de certo modo, é uma luta pela palavra
evangélica e que a tradição de Jesus, nesse particular, atravessa uma história
de sucessos e fracassos, fidelidades e traições, equívocos e acertos, temos de
reconhecer que alguns episódios são particularmente significativos. São
encruzilhadas. Posições assumidas por muito tempo podem ser abandonadas, novos
caminhos trilhados. O Papa Francisco está numa dessas encruzilhadas. Enfim, o
que acontece nestes dias na cúpula da igreja católica pode mudar o curso da
igreja católica em pontos importantes.
A luta pela Palavra nos
inícios do movimento de Jesus.
Os atuais debates em
torno do Papa Francisco ganham mais nitidez quando consideramos determinados
textos das origens do cristianismo. Quando, por exemplo, voltamos a atenção a
textos como o Evangelho de João, que já conserva traços de uma luta pela
palavra no seio dos grupos de discípulos na Ásia Menor, apenas 70 anos após a
morte de Jesus. Escrito por volta do ano 100, esse evangelho trata de um tema
que voltará frequentemente na história do cristianismo, um tema que diferencia
o cristianismo dos demais movimentos religiosos da época: o Espírito Santo.
Os evangelhos sinóticos
(Marcos dos anos 70, Lucas e Mateus dos anos 80) mencionam também o papel do
Espírito Santo na vida de Jesus e se seus discípulos, mas com um realce menor
que o de João, que é categórico: o movimento de Jesus é um movimento
impulsionado pelo Espírito Santo. O texto fundamental, aqui, narra uma conversa
entre Jesus e fariseu Nicodemos, que lemos no capítulo 3 do Evangelho de João.
Após desnortear seu interlocutor com considerações aparentemente contraditórias
(nascer de novo, etc.), Jesus diz ao fariseu perplexo: o Espírito sopra
onde quer. Igual ao vento. Aqui há um eco do Evangelho de Marcos,
onde se narra, na nos primeiros versículos do primeiro capítulo, que Jesus, ao
subir das águas do Jordão, é imediatamente impulsionado pelo Espírito Santo ao
deserto, para um embate de quarenta dias com o Adversário. O Espírito sopra
onde quer e leva Jesus para onde quer. No Evangelho de João, quando se aproxima
o fim de Jesus, o Espírito Santo aparece como o sustento da comunidade em
situações angustiantes. Jesus diz: ele será o ‘Defensor’ (o texto usa o termo
‘Paráclito’) dos discípulos, nas investidas do Adversário que se
aproximam: Rogarei ao Pai e ele lhes dará um Defensor a permanecer para
sempre com vocês (14, 16); Mas o Defensor lhes ensinará tudo e
recordará tudo que eu lhes disse (14, 26); O Espírito da verdade dará
testemunho de mim. E vocês também darão testemunho (15, 26); É do
interesse de vocês que eu vá embora: pois se não for o Defensor virá a vocês (Jo
16, 7);Quando vier o Espírito da Verdade, ele os conduzirá à plena verdade (16,
13). Jesus confia o futuro do movimento ao Espírito Santo, que ensinará
tudo, recordará tudo que eu lhes disse. Podemos dizer que o cristianismo
é o Espírito Santo em ação.
É a partir de afirmações
tão fortes que teólogos do século II, como Ireneu (ca. 130-202) e Tertuliano
(160-220), entendem que o Espírito Santo é ‘unius substantiae’ (da mesma
substância) do Filho Jesus, ‘igual ao Filho’ (palavras de Tertuliano em seu
escrito ‘Contra Práxeas’). Não há nada, na história do cristianismo, que se
compare a esse reconhecimento: o Espírito Santo faz parte da divindade. Isso
significa que Deus age que nem um vento ‘que sopra onde quer’. Não há como
captar o cristianismo em regulamentos doutrinários e morais. Ele escapa sempre,
como o vento, e abre um campo de liberdade, criatividade, inovação, ação
revolucionária, profetismo. O Defensor quebra paradigmas universalmente em
vigor, derruba cânones e regulamentos, abre horizontes de liberdade. Com ele, o
profetismo cristão entra na lista dos movimentos revolucionários, a sacudir a
inércia, causar perturbação e insegurança nos que procuram canalizar o
movimento de Jesus. Tertuliano, no final do século II, expressa essa ideia com
palavras lapidares: ‘quem expulsa a profecia, afugenta o Paráclito’ (prophetiam
expullit, Paracletum fugavit).
Com essas considerações
abrimos o rol de inúmeras tensões e frequentes conflitos que marcam a história
do cristianismo. Aqui, no intuito de reforçar a importância da atual luta do
Papa Francisco, comento dois episódios marcantes do século II dC: o caso de
Marcião e o caso de Montano, ambos considerados em torno do tema da luta pela
Palavra do Espírito Santo.
A palavra do Espírito
Santo: Marcião.
O caso de Marcião,
ocorrido entre 120 e 144 dC, ilustra bem o que acabo de escrever. Conto
brevemente a história, mas antes advirto: toda a documentação disponível em
torno de Marcião está imbuída de um forte teor de repulsa diante daquele que
será, por longos séculos, considerado o ‘pai dos hereges’, o primeiro grande
herege. Temos, pois, que ler essa documentação com espírito crítico e nos
deixar guiar, por exemplo, por historiadores do quilate de Adolfo von Harnack,
que, em sua ‘História dos Dogmas’, em que descreve a formação do dogma cristão
nos três primeiros séculos, assume a postura crítica que se espera de um bom
historiador.
Por volta de 120 dC,
apenas noventa anos após a morte de Jesus, aparece em Roma um cristão vindo do
Oriente do Império, chamado Marcião de Sínope, um importante porto marítimo
situado no Mar Negro (chamado, na época, de Pontus Euxinos. no norte da atual
Turquia). Filho de um rico armador de navios, ele pede licença para ser aceito
numa das comunidades cristãs existentes na metrópole e paga, inclusive, uma
fiança.
Marcião é uma
personalidade marcante. Não gosta do que vê em Roma e manifesta logo sua
discordância. Para ele, o Jesus que se venera entre os cristãos romanos não
corresponde ao Jesus de Nazaré. Como se pode praticar ritos que são próprios
dos sacerdotes romanos, se Jesus não gosta de sacerdotes? Como se pode seguir
regulamentos, se Jesus não liga para regulamentos, não se importa com questões
de pureza e impureza, não lembra a obrigação de ‘subir’ ao Templo para as
festas, não insiste no pagamento de impostos estipulados pelas autoridades,
enfim, não segue as prescrições legais? Jesus fala em pão, casa, filhos,
sustento da família, idosos, produção agrícola, trabalho de cada dia. Eis o que
importa para ele. Alerta diante do perigo do enriquecimento (‘não se pode
servir a dois senhores’) e ensina que é preciso estar sempre disposto a servir.
Marcião não vê nada disso em Roma.
Os fiéis de Roma se
assustam, Não encontrando argumentos a contradizer o imigrante do Ponto. Então,
para manter a paz entre seus fiéis, os presbíteros resolvem, em 144 dC,
devolver a Marcião o dinheiro que ele doou ao se apresentar e pedir que ele se
retire de Roma. Decepcionado, o ‘mestre’ vencido regressa para o Ponto onde,
longe dos grandes centros, organiza uma igreja, a igreja marcionita, que
subsiste até o século VI. Depois desaparece nas brumas da história.
Essa história deixa um
gosto amargo na boca. Os cristãos de Roma não conseguem enxergar a ação do
Espírito Santo nas palavras e atitudes do imigrante Marcião. A mensagem de
Jesus será tão difícil de ser compreendida?
Há de se considerar aqui
que, no decorrer do século II, as comunidades cristãs - na medida em que se
tornam mais numerosas, com maior número de participantes e maior visibilidade –
acolhem pessoas que já não gostam de ver um Jesus tão radicalmente comprometido
com os condenados da terra. A tendência é de se alinhar à política do poder do
estado, como se pode verificar nos escritos de Justino (100-160 dC), por
exemplo. Aparecem diversas tendências. Alguns dizem que o ensino desses mestres
prejudica ‘as pessoas simples’ e semeia divisão. Marcião não é o único a ser
afastado nesses anos decisivos, a mesma sorte sendo reservada a mestres como
Valentino, Taciano e Montano (cuja história conto em seguida). Aparece o termo
‘herege’, que serve para discriminar os que não seguem a linha predominante.
Aparecem pastoralistas que, querendo apagar o fogo, aconselham moderação, lutam
pela unificação, mas, mesmo assim, concordam em traçar uma linha divisória
entre ‘ortodoxos’ e ‘hereges’. Mestres que são exigentes em termos de pobreza e
despojamento perdem audiência. O tema Espírito Santo é controverso. Estamos
diante de um momento decisivo na história do cristianismo.
A palavra do Espírito
Santo: Montano.
Apenas 14 anos após o
afastamento de Marcião, em 158 dC, eclode mais um movimento a agitar as mentes
dos líderes cristãos durante décadas.
O palco, agora, é a
Frígia (centro-oeste da atual Turquia). Um certo Montano, um sacerdote de
Cibele convertido ao cristianismo, cria, em Pepusa, uma localidade rural perto
de Filadélfia, na Frígia, um movimento de escravos, libertos e trabalhadores
rurais da região. Ela vai acompanhado de duas mulheres profetisas, Priscila e
Maximila, que – no linguajar da época – falam em línguas, se extasiam e
gritam: aparece o Defensor(Paráclito), que se manifesta com
gemidos inefáveis (Rm 8, 26) e grita: Abba, Pai (Gl 4, 6).
Cita-se o Dito 44 do Evangelho de Tomé: Quem quer que blasfeme contra o
Espírito Santo não será perdoado, seja na terra, seja no céu, um Dito que
aparece nos evangelhos sinóticos e em textos como o Diatesseron de Taciano, uma
frase frequentemente repetida nos primeiros tempos do movimento de Jesus
(Harnack, I, 427). Blasfemar contra o Espírito Santo é se desviar do caminho de
Jesus. Se o Defensor se revela agora na Frígia, uma região tão desprezada e
discriminada quanto a Galileia de Jesus, é prova que ali se pratica a legítima
tradição de Jesus.
Antes de continuar,
repito aqui o que escrevi acerca da tradição em torno de Marcião: as fontes
literárias disponíveis sobre o montanismo estão igualmente recheadas de
preconceitos, exageram nos aspectos negativos, tratam o montanismo como se
fosse uma heresia.
Pesquisas sérias apuraram
que se trata aqui de um movimento de gente pobre, escrava, liberta, gente do
campo, iletrada, que retoma textos do Evangelho de João como os que citei acima
(Jo 14, 16; 14, 26; 15, 26; 16, 7) e os aplica a Montano, Priscila, Maximila. O
Espírito Santo lhes dita o que têm a dizer. Palavras que alimentem a esperança
dos pobres, ditas de modo livre imaginoso. Assim, a profetisa Priscila, com
ingênua ousadia, se diz Cristo aparecido em forma de mulher (Harnack,
I, 429). Um mundo de cristofanias e teofanias, com um entusiasmo ainda não
abafado, bem ao gosto do povo. O nascimento de Jesus num presépio, os anjos e
os pastores, a fuga ao Egito, Jesus entre os doutores em Jerusalém. O menino
Jesus brinca com São João Batista, ajuda seu pai São José na carpintaria.
Histórias que o povo guarda com carinho e transmite de geração em geração. Os
profetas passam pelas comunidades, ensinam as coisas de Jesus de um modo que as
pessoas entendem facilmente, são bem acolhidos pela população. Os documentos
aludem a uma ‘explosão de profetismo’ no final do século II, que vai muito além
da Frígia e atinge largos espaços das partes orientais do Império Romano.
Os intelectuais cristãos,
os chamados ‘Padres da Igreja’, não reagem todos do mesmo modo diante do
montanismo. Se, de um lado, percebem que o caráter convulsivo das manifestações
pró e contra Montano demonstra que algo está errado com o sistema que se
pretende implantar no movimento cristão, de outro lado ficam intimidados com a
força de uma reação por parte dos bispos. Como acontece frequentemente na
história da humanidade, os mais organizados vencem a parada. No caso do
montanismo, os bispos são a parte mais organizada. Sua vitória impõe
conformidade e silêncio. Muitos intelectuais hesitam e, com o tempo, acabam se
conformando. Enquanto Ireneu ainda demonstra simpatia pelo montanismo,
Tertuliano é bem mais reticente. Em princípio, ele simpatiza com os montanistas
e, com sua pena afiada, escreve a frase lapidar que talvez melhor descreve o
valor perene de movimentos como o montanismo e o profetismo em geral: ‘Ubi
tres, ibi ecclesia, licet laici: onde se reúnem três, há igreja, mesmo se são
leigos’ (Exortação à Castidade). Mas, paradoxalmente, Tertuliano aceita
determinados princípios diametralmente opostos à ideia leiga. Ele aceita a
‘regra apostólica’, a ‘sucessão apostólica’, a ‘reserva exclusiva’, além de
concordar com a ideia que o tempo da revelação do Espirito Santo teria expirado
com a morte do último apóstolo. Efim, ele acaba pendendo do lado do
‘apostólico’. Segundo von Harnack, essa contradição em Tertuliano se deve ‘a
uma convicção não cristã, mas romana, segundo a qual toda religião postula leis
firmes e ordenações estáveis’ (Harnack I, 434).
Por volta de 177, o
montanismo alcança Roma, onde suscita controvérsias. Ali aparece um certo
Praxeas, ‘confessor’ proveniente da Frígia, que vem predispor o bispo local
(ainda não se fala em papa) contra o ‘Paráclito’. A repressão é rápida. Quatro
bispos romanos sucessivos se pronunciam contra o ‘Paráclito’ (Harnack I, 742) e
são logo acompanhados por bispos da Ásia, que cerram fileiras contra Montano.
Por volta do ano 200 dC se percebe um recuo dos profetas e um avanço dos
bispos. Os primeiros Sínodos episcopais da história do cristianismo são
dirigidos contra o montanismo. O tom dos textos conservados é ríspido e severo,
tende a desmoralizar os profetas, que só estariam dizendo bobagem, coisas sem
sentido, confundindo os fiéis, espalhando ideias contraditórias, agitando as
comunidades, desorientando e fanatizando. Significativa a omissão do termo
‘profeta’ e a insistência no termo ‘apóstolo’. Apóstolos contra profetas, eis a
questão. Apóstolos apresentados como herdeiros de uma missão recebida de Jesus,
que atravessa a história por meio da ‘sucessão apostólica’, de uma dinastia de
bispos. O bispo é a atualidade, o profeta é o passado. Os profetas antigos,
como Isaías, Jeremias e outros, terminam sua missão com a morte do último
apóstolo. Não há mais profetas. Os apóstolos herdam a missão profética.
Em tudo isso, não se pode
esquecer que os textos desses primeiros Sínodos são redigidos ‘no calor da
hora’, ou seja, marcados pelas emoções do momento. Emoções claramente
anti-montanistas, anti-Paráclito. O historiador não atribui a esse tipo de
textos um valor além do que ressalta de uma análise contextualizada. Quando os
Sínodos afirmam que só os apóstolos são mediadores da revelação, eles estão em
guerra contra um movimento que pretende o contrário. Em outras palavras, o
confronto com o montanismo postula uma interpretação a ser realizada dentro do
princípio do contexto (Harnack, II, 387). Seja como for, a restrita atribuição
da revelação ao universo ‘apostólico’ e a retirada de credenciais ao
‘profético’ acabam convencendo muita gente. A ‘auctoritas scripta’
(predominância da tradição escrita sobre a tradição oral) vence as falas de
gente iletrada, as falas de Montano, Priscila, Maximila. Por trás, se
desvaloriza a ação do Espírito Santo na história, e isso é muito sério.
Nesse sentido se pode
dizer que o Credo de Niceia (do ano 325) segue uma conduta já traçada pelos Sínodos
do início do século III. Nele, toda a atenção se concentra na figura de Jesus,
a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, ‘Theon ek Theou’ (Deus de Deus). Só no
final parece, como se fosse um apêndice, a frase ‘kai eis to Agion Pneuma’ (e
também no Espírito Santo). E ponto final (o Credo de Calcedônia, no final do
século IV, acrescenta: ‘que falou pelos profetas’). Medo de uma igreja por
demais profética? De uma igreja liderada por ‘mestres’ livres, diretamente
inspirados pelo Espírito Santo? Da influência do ‘mestre’ Ario de Alexandria,
contra quem se dirigem todas as baterias em Niceia? Os bispos vêm acompanhados
por sacerdotes intérpretes de textos bíblicos. Não há registro da presença de
‘mestres’ (profetas) no Concílio de Niceia, que consagra a vitória dos
sacerdotes ‘apostólicos’ sobre os mestres ‘espirituais’.
A Palavra do Espírito
Santo: o Papa Francisco.
Eis o que vale rememorar
hoje, no embate entre o papa e alguns cardeais. Vale rememorar que o movimento
montanista provoca uma divisão de águas no organograma da igreja cristã. Há um
antes e um depois da intervenção episcopal daqueles tempos remotos. Muda a
política global da instituição cristã. Como escreve Adolfo von Harnack em sua
‘História dos Dogmas’, o que acontece no final do século II determina o
curso ulterior do cristianismo. E, de modo ainda mais pungente: a
primeira ortodoxia vira heresia. O corpo episcopal toma oficialmente conta dos
destinos da tradição cristã, e os resultados dessa decisão perduram até nossos
dias. Bispos contra profetas, palavras de ordem contra o Espírito Santo.
À primeira vista, a
história do Papa Francisco tem nada a ver com histórias tão antigas como a de
Marcião e Montano. Além disso, o atual Papa não costuma evocar o tema do
Espírito Santo. Mas não se pode deixar de observar o seguinte: o atual papa não
se projeta propriamente como líder de uma religião peculiar, mas como
interlocutor em questões que atingem a sociedade humana em geral. Isso é muito
importante. É um sinal do Espírito Santo que sopra onde quer.
Num texto que publiquei
em meu blog dois meses atrás sob o mesmo título ‘O Papa Francisco e a Luta pela
Palavra’, chamei a atenção ao fato que Francisco fala em ‘não julgar’, ‘dar
preferência a processos’, ‘ser igreja em saída’, ‘não insistir sempre nas
mesmas questões’, etc. Embora essas expressões esporádicas não
explicitem uma tese, penso que não se pode ignorar que Francisco não sai em
defesa de ‘princípios católicos’, como fizeram seus antecessores desde o
surgimento da Idade Moderna, não aborda temas como ‘tradição apostólica’,
‘sucessão apostólica’ (bispos sucessores dos apóstolos), ‘reserva apostólica’
(a revelação divina reservada aos apóstolos e seus sucessores), os temas de um
embate entre bispos e montanistas no início do século III, largamente
integrados na tradição da oficialidade cristã. Ele se move num outro patamar.
Se é para evocar aqui
essa antiga contenda entre o ‘profético’ e o ‘apostólico’, como faço nestas
páginas, há de se dizer que Francisco está do lado do ‘profético’, do
‘Paráclito’, do Espírito Santo. Suas palavras abandonam lugares comuns, desde
muito integrados no discurso da oficialidade cristã e isso causa estranheza em
muita gente, enquanto cria distância diante do que dizem cardeais como Müller,
Brandmüller e Burke, que dizem as coisas de sempre, fáceis de serem entendidas
pela maioria dos católicos. Pois a história ensina que, quando uma mesma
narrativa se repete ao longo de séculos por meio dos mesmos gestos, das mesmas
palavras, das mesmas imagens e dos mesmos ritos, a mente humana passa a
considerá-la normal e até normativa. Assimila essa narrativa e dela se
apropria. Estamos tão habituados a ver mitras e estolas, capas e casulas,
báculos episcopais e invocações solenes, preces codificadas sempre repetidas,
estamos tão acostumados a ver o papa falar do evangelho num dos mais suntuosos
cenários da Europa Ocidental, que achamos isso normal. A luta pela palavra
evangélica é ingrata e dura. Palavras ‘fáceis’, sempre repetidas, garantem
sucesso político. Isso em contraste com o Papa Francisco, que opta por palavras
‘difíceis’. Como as do Espírito Santo.
Eduardo Hoornaert foi professor catedrático
de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da
Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do
cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.
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