Por Marcelo
Barros
No DNA de todos os caminhos espirituais está a vocação
humana para a liberdade. Para se acolher o Espírito Divino no mais profundo de
nossas vidas, todos temos de procurar permanentemente sermos livres. Mesmo com
imensas contradições e ambiguidades, todas as religiões têm em sua natureza a
missão de colaborar para que se organize uma sociedade de pessoas libertadas. Infelizmente,
nem sempre as religiões foram fieis a essa orientação. No passado e mesmo nos
dias atuais, muitas têm sido coniventes com situações de opressão, injustiças e
violência.
A cada ano, no dia 23 de agosto, a ONU celebra o dia
internacional da lembrança do tráfico de escravos e de sua abolição. Durante
toda essa semana, em vários países, principalmente naqueles mais marcados pela tragédia
terrível que foi, na história, a escravidão negra, ocorrem eventos e
conferências sobre o assunto. No entanto, infelizmente, o tráfico e a servidão
humana não são apenas lembranças de um passado distante. Até hoje, a África
inteira sofre consequências sociais da colonização e da exploração que, por séculos,
saqueou suas riquezas e escravizou os seus povos. Mesmo nos nossos dias, o
petróleo e os diamantes e minerais do subsolo só têm contribuído para os
Estados Unidos e os países ricos da Europa . Para os africanos, acarreta apenas
imensa miséria e servidão.
No mundo contemporâneo, a escravidão mudou apenas de
forma. Embora ilegal, o tráfico de seres humanos permanece fonte de riqueza
para máfias internacionais, especializadas em prostituição forçada e em
migrantes clandestinos que lhes rendem dinheiro. Os escravagistas do século XXI
não operam mais em navios negreiros e sim em jatos de última geração.
De acordo com dados da Organização Internacional do
Trabalho (OIT), os lucros provenientes do tráfico humano, são de mais de trinta
bilhões de dólares por ano. No mundo de hoje, mais de 12 milhões de pessoas já
passaram por alguma forma de trabalho forçado ou de servidão. Destas, 10
milhões foram exploradas por agentes privados e muitas em trabalho forçado
resultante do tráfico humano. Os dados mais elevados encontram-se na Ásia,
seguidos da América Latina e nas Caraíbas. Mesmo na América do Norte e nos
países ricos da Europa ocidental, quase 500 mil pessoas são vítimas do tráfico
humano e de formas de escravidão contemporânea. Dessas mais da metade são mulheres
e jovens menores de idade.
Em um país, como o Brasil, no qual cinco pessoas
possuem riqueza equivalente à metade pobre da população brasileira, fica
praticamente impossível eliminar, no campo e nas cidades, situações de trabalho
semelhantes à escravidão. As políticas do atual governo federal favorecem o
trabalho informal e a perda dos direitos dos trabalhadores. Em todo o país as
condições de trabalho são cada vez mais precárias. Na Amazônia, há estreita
relação entre o desmatamento da Amazônia que tem crescido muito nesses anos e a
prática de trabalho forçado. Em pleno centro de São Paulo, indústrias de fundo
de quintal e empresas de tecelagem empregam bolivianos em situação ilegal, obrigados
a morar no lugar de trabalho, com horários extenuantes e sem salários fixos.
Trabalham para pagar dívidas que crescem ininterruptamente e exigem mais
trabalho.
A raiz da escravidão é o sistema social que perpetua a
desigualdade social e considera o dinheiro mais importante do que a vida. O
trabalho escravo atinge principalmente índios, negros, mulheres pobres e
crianças. Ele atenta contra a dignidade das vítimas, mas também de toda a
sociedade que convive com essa barbárie. O trabalho escravo ainda persiste
porque os que o praticam encontram pessoas com tal fragilidade social que se
tornam mais vulneráveis a isso Cada um/uma de nós é responsável por criar uma
cultura, nas quais esse tipo de crime se torne impossível. Principalmente, quem
está ligado a alguma tradição espiritual deve assumir esse compromisso pela
justiça como testemunho de sua fé em um Espírito que é amor e ternura
solidária. Há muitos anos, um poeta escreveu:
“Quem trabalha pelo pão de cada dia, faz avançar no mundo o projeto
divino. Quem varre a rua e recolhe o lixo está preparando o reino de Deus”.
MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br
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