Maria
Clara Lucchetti Bingemer
Foi tudo tão rápido
que nem sei onde e quando começou. De repente havia um inimigo à solta.
Começou na China, estava longe. Depois atingiu outros países da
Ásia. Quando chegou à querida Itália começamos a tremer. E quando
percebemos estava instalado no país. Junto com ele, a apreensão e o
medo.
O vírus não tem
rosto, é insidioso. Infiltra-se pela mão mal lavada, um toque no rosto, um
gesto distraído nos cabelos. Alia-se aos gestos mais cotidianos e normais: a
maçaneta aberta, o botão do elevador pressionado. Ou mais ainda nos gestos
afetivos: apertos de mão, abraços, beijos, tudo que aproxima, conforta e afaga
os corpos e corações humanos.
Diziam primeiro que
era mais inofensivo que as gripes anteriores, depois percebeu-se que na verdade
não era assim. Assaltou violentamente nossos mais inofensivos desejos: estar
juntos, conversar, partilhar comida e bebida, divertir-se. Feriu de morte tudo
que é lazer: festas, reuniões, eventos. De repente o inimigo sem rosto, se não
estava já instalado no próprio corpo, alojava-se ameaçadoramente no corpo do
outro.
E então os
cientistas, governantes e autoridades começaram a dar-nos orientações
totalmente na contramão do que sempre acreditamos ser correto fazer: isolar-se,
afastar-se, fechar-se, não sair de casa. Não ir ao encontro das pessoas,
não abandonar seu confinamento por nada. Parecia tão monstruoso, tão fora de
propósito. Mas agora, após vários dias da quarentena que é nosso único
caminho de salvação, começamos a aprender muitas lições.
A primeira é que a
antropologia filosófica e teológica, a psicologia e todas as ciências humanas
não podem estar mais certas. Somos indubitavelmente seres
relacionais. Apenas na interação com o outro nos sentimos existindo
plenamente em nossa humanidade. É isso que nos faz o que somos: seres
dialogais, de linguagem, feitos para interagir, conviver, trocar experiências.
Seres que se autocompreendem a partir do rosto do outro e dos sinais que ele
emite.
A segunda é que
nunca ficou tão evidente que tudo e todos naquilo que se chama de vida estão
interligados. Tanto se desequilibrou a natureza, tanto se agrediu a mãe terra,
a casa comum, os recursos naturais, em suma tanto se desumanizou a vida que
agora vemos as forças da morte emergindo do caos que nós mesmos criamos. A
pandemia apocalíptica que nos ameaça dá bem a medida do tamanho da
irresponsabilidade com que vimos tratando a vida, não só a nossa, mas a do
planeta e a de todos os seres vivos.
No entanto, há
também boa notícia – Evangelho – em meio a tanta desolação e tristeza. O
medo e a morte não têm a última palavra em todas as situações. A coerção
dura sobre a expressão da relacionalidade fez em muitos casos surgir – que
maravilha! – uma criatividade nunca vista em expressão dessa mesma
relacionalidade. E isso só comprova a tese antropológica que apenas na
relacionalidade somos, nos movemos e existimos.
Senão vejamos:
moradores confinados vão às janelas para cantar, aplaudir os profissionais de
saúde, acenar a vizinhos que mal se cumprimentavam antes, freneticamente correndo
para produzir e fazer dinheiro. Jovens anônimos se oferecem por meio de
bilhetes para fazer as compras do mercado a fim de que os anciãos, mais
ameaçados pela doença, não precisem sair de casa e fiquem protegidos. Os avós,
sofrendo por não poder ver e abraçar os netos, recebem destes vídeos amorosos,
cheios de carinho, beijos, afeto.
Mas há mais ainda:
os profissionais da saúde arriscam as vidas até o extremo para não deixar de
atender os doentes, correndo a cada momento risco de contaminação. Médicos
são infectados na linha de frente. E com eles, enfermeiros e agentes de saúde
que priorizam a saúde alheia e dão testemunho heroico de solidariedade.
Muitos destes sucumbiram à carga viral. Médicos e agentes de saúde cruzam os
ares para ajudar outros países, carentes de recursos. Tenores emprestam a voz
para encher os ouvidos temerosos de más notícias com uma renovada
esperança.
Na combalida
Itália, sempre tão ensolarada e alegre, um sacerdote já idoso faz um gesto de
santidade, cedendo seu respirador para que outro doente, mais jovem e com mais
perspectiva de vida, possa usá-lo. O Papa Francisco, idoso e sem boa parte de
um pulmão, peregrina pelas ruas de Roma vazia a fim de rezar pelo povo que geme
sob a pandemia.
Tudo é relação e
dela depende. Tomara que a humanidade saia dessa crise iluminada por
todos esses ensinamentos e revigorada por tantos testemunhos, mesmo em meio ao
caos que alguns poucos irresponsáveis insistem em instalar e estimular.
Maria Clara
Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora
de “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), entre outros livros
Copyright 2020 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER –
Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação,
eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>
Nenhum comentário:
Postar um comentário