leonardo
boff
Hoje, dia 19 de março é o dia de São
José, o santo tão venerado pelos nordestinos e por tantos outros cristãos. Se
não chover até o dia de São José, a seca virá. Por isso ele é venerado com
grande expectativa e unção especialmente pelos camponeses.
Escrevi um livro sobre São José, produto de 20 anos de pesquisa (São
José a personificação do Pai, Verus 2005 e Vozes 2012). Não se pode pensar
concretamente no mistério da encarnação do Filho Jesus sem a presença de José.
Foi ele quem acolheu Maria grávida e criou as condições reais para uma vida de
família.
Mas na tradição nunca se deu muita importância a ele. Só se pensa em sua
missão e, uma vez cumprida, ele pode desaparecer e ser esquecido. Na verdade,
Maria, sem José, não teria condições de cuidar da vida do menino Jesus,
especialmente ameaçado de ser morto pelo terrível Herodes. Os primeiros sermões
sobre São José só começaram a ser feitos a partir dos anos 800. Por aí se
percebe a pouca importância que lhe era atribuída, explico no livro.
A razão é que vivemos num tipo de Igreja na qual o que conta é quem
detém a palavra e poder de decisão, que são os bispos e os padres,numa palavra,
a Hierarquia. De São José não temos nenhuma palavra. Ele apenas teve sonhos.
Nem sabemos sua origem e quem foram seus pais. A Igreja não sabia o que fazer
com São José. Só em 1870, foi proclamado patrono da Igreja. Mas, na verdade,
ele é patrono da Igreja dos invisíveis e anônimos, dos milhões e
milhões de cristãos que vivem no seu dia a dia os valores do evangelho
da solidariedade, do respeito e do amor desinteressado. Vejo em São José a
representação de milhões de cristãos que nunca aparecem nem podem falar e
decidir sobre suas vidas e os rumos da sociedade em que vivem.
Dei em 2013 a Walter Sebastião a seguinte entrevista que transcrevo.
Qual o sentimento do senhor diante da cena do nascimento de Jesus?
Precisamos resgatar a inteligência emocional e cordial que vai além da
razão intelectual. Quando nasce uma criança, nos enchemos de admiração e
dizemos: sempre que nasce uma criança é sinal de que Deus ainda
acredita na humanidade. Assim devemos entender os relatos bíblicos sobre o
nascimento de Jesus. A comunidade cristã, quando escreveu os evangelhos, cerca
de 40-50 anos depois da crucificação de Jesus e de sua ressurreição, já havia
entendido que atrás daquela criança se escondia o próprio filho de Deus. Por
isso cercam a cena do Natal de significados celestiais, como anjos que cantam,
a estrela no céu, os sábios (magos) que vêm de longe.
Como tudo historicamente aconteceu não o sabemos pela razão intelectual,
mas pela inteligência emocional e cordial intuímos que aí há um mistério ao
qual nos acercamos com reverência e respeito. E criamos símbolos adequados que
conferem relevância a esse fato, que, em si, pareceria banal.
Que tipo de paternidade São José enseja ou inspira?
A teologia cristã diz que ele exerceu todas as funções de pai, que foi a
de cuidar de Maria em sua gravidez e de proteger Jesus e sua mãe, Maria, quando
tiveram que fugir para o exílio no Egito. Viveu como esposo e iniciou o filho
nas tradições religiosas do povo e na profissão de carpinteiro que era uma
espécie de fac-totum (telhados, mesas, janelas etc).
Dogmaticamente, nada impede que ele tivesse sido pai biológico de Jesus.
Os evangelhos falam que “Jesus é filho de José”, ou “o filho do carpinteiro”.
Mas não é isso que testemunha toda a tradição cristã.
A gravidez de Maria se deve à ação do Espírito Santo que foi a primeira
Pessoa divina a vir a esse mundo. Veio morar nela, quer dizer, a elevou à altura
divina para gerar um Filho que também fosse divino como observa São Lucas no
seu evangelho. Desta forma, com Jesus deu origem a uma nova humanidade,
totalmente purificada do peso da história, marcada pela dimensão do negativo,
da ruptura com a criação, com os outros e especialmente com Deus. Ele foi pai
adotivo e legal no sentido semita, aquele que dá o nome à criança, como refere
o evangelho de São Mateus. Assim se torna o pai social. De toda forma, Maria e
Jesus formam a família de José.
Como a dimensão do masculino se afirma a partir de São José?
José mostra o lado melhor da paternidade, que é o de ser o cuidador, o
educador e provedor,aquele que está sempre ao lado da esposa e do filho. A
Bíblia fala que era um “homem justo”. Na linguagem da época significava que
socialmente assumia uma liderança e era considerado um ponto
de referência para todos.
Hoje, sofremos com o eclipse da figura do pai. Isso produz sentimento de
insegurança nos filhos e filhas e sua falta de limites. José foi um educador.
Se Jesus mais tarde vai chamar Deus de “paizinho querido”(Abba) isso significa
que ele teve uma experiência de grande intimidade com o pai José. Freud mostrou
que a base para uma imagem boa de Deus provém de uma relação boa com o próprio
pai.
Os tempos de José e os nossos são diferentes. Mas a missão é a mesma:
ser aquela figura que cuida, que provê tudo o que a família precisa, que inicia
nos valores éticos e espirituais da sociedade e que aceita correr riscos em
defesa da família, como quando teve que enfrentar o deserto a caminho do Egito.
Aí aparece a dimensão do masculino ( do “animus”, a coragem, a
direção e a determinação), que junto com o feminino (a “anima”, o afeto,
o cuidado e o amor) ajudam a constituir uma personalidade integrada e feliz,
pois cada pessoa carrega seu lado feminino e masculino.
Qual a importância teológica de São José?
Tenho defendido a tese, até hoje nunca ajuizada pelas autoridades
doutrinárias da Igreja, de que São José é a personificação do Pai celeste. Deve
haver um equilíbrio no mistério de Deus que se auto-entregou e se revelou à
humanidade. O Espírito Santo, segundo Lucas, veio sobre Maria e fez morada
nela, quer dizer, ficou permanentemente nela. Em seu seio, por causa da
presença do Espírito Santo, começou a se formar a santa humanidade do Filho do
Pai.
O Filho se encarnou em Jesus, nascido de Maria. E o Pai não ficou de
fora desse processo. Ele é bem representado pela figura de José, porque o Pai é
o mistério absoluto representado pelo silêncio (não fala, quem fala é o Filho),
é o criador de todas as coisas. O grande psicanalista C.G. Jung mostrou que o
sonho representa o Profundo, o lado de Mistério do ser humano. São José só teve
sonhos, nele o Profundo se manifestou.
Ele também é o homem do silêncio e o trabalhador. Este, o trabalhador,
não fala com a boca, mas pelas mãos que constroem a casa, os bancos, as janelas
e os telhados. O Pai celestial é o que cuida de todo o universo e de cada um de
nós, à semelhança de São José, que cuidou da família em tudo o que fosse
necessário.
São José comparece como a figura mais adequada para receber em sua vida
a vinda do Pai que também veio morar conosco. Se o sonho é expressão do
mistério no ser humano, o Pai é o Mistério absoluto. Portanto, há uma adequação
entre São José e o Pai celeste.
Identifiquei na Igreja de São Francisco Xavier, na pequena vila de Saint
François du Lac, em Quebec, no Canadá, um quadro de 1742 que representa são
José com o mesmo rosto do Pai celeste que aparece no alto. Daí me veio a ideia
de que São José é a personificação do Pai celeste. Assim temos a família divina
encarnada na família humana.
A totalidade do mistério da Santíssima Trindade entrou em nossa história
e a santificou. São José é parte desta entrega total do Deus-família à família
humana. Os cristãos deveriam refletir mais sobre essa conexão para se sentir
mais envolvidos pela presença divina e ficar sabendo que o nosso Deus é um Deus
próximo e que se revelou assim como é, como Pai (em José) como Filho (em Jesus)
e como Espírito Santo (em Maria).
Leonardo Boff é teólogo e escreveu São José: a personificação do
Pai, Vozes, Petrópolis 2012
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