Leonardo Boff
Em Glasgow, nesse final de 2021, com a COP26 se
discute como reduzir os níveis de gases de efeito estufa para não
chegarmos em 2030 a 1,5 graus Celsius e então a um caminho sem retorno. A
maioria está cética, pois os grandes emissores não cumpriram o Acordo de Paris.
Reduzirem apenas até 7% e o Brasil, ao contrário, cresceu em 9% sua emissão.
Dada a engrenagem do processo produtivo mundial de viés capitalista que tende a
não assumir nenhum limite em seus ganhos, provavelmente não alcançaremos esta
meta.Nossos filhos e netos herdarão uma Terra devastada e poderão nos
amaldiçoar por não termos feito a lição de casa. A situação dramática da Terra
está ausente nos debates.Não se fala da relação destrutiva para com a natureza.
Vejamos rapidamente, no curso da história, como chegamos ao drama atual.
A interação com a natureza
Nossos ancestrais que se perdem na penumbra dos
tempos imemoriais, entretinham uma interação não
destrutiva: tomavam o que a natureza fartamente lhes oferecia.. Esse
tempo durou milênios, começando na África, onde surgiu o ser humano, pela
primeira vez há alguns milhõe de anos. Por isso, somos todos, de alguma
forma, africanos.
A intervenção na natureza
Há mais de dois milhões de anos, irrompeu, no
processo da antrogênese (a gênese do ser humano na evolução) o homem
hábil (homo habilis). Aqui ocorreu uma primeira virada. Inicia-se aquilo
que culminou de forma extrema nos nossos dias. O homem hábil inventou
instrumentos com os quais operava uma intervenção na natureza: um pau pontiagudo,
uma pedra afiada e outros recursos semelhantes. Com eles podia ferir e
matar um animal ou podia cortar plantas. Essa intervenção se
desenvolveu muito mais intensamente com a introdução da agricultura e da
irrigação, ocorrida volta de 10-12 mil atrás na era chamada
do neolítico. Desviavam-se águas dos rios, melhoravam
colheitas, criavam animais e aves para serem abatidos.
É o tempo em que os humanos deixaram de ser nômades
e se fizeram sedentários, com vilas e cidades, geralmente, junto aos rios
como ao Nilo no Egito, ao Tigre e ao Eufrates no Oriente Médio, ao Indo a o
Tanges na Índia e ao redor do imenso lago interno, o Amazonas que há
milhares de anos, desaguava no Pacífico.
A agressão à natureza
Da intervenção passamos
à agressão da natureza, na era industrial a partir
do século XVIII. Surgiram as fábricas com a produção em massa. Forjou-se todo
tipo de instrumentos técnicos que permitiam extrair enormes riquezas da
natureza. Partia-se da premissa de que o ser humano é “senhor e dono” da natureza, não se sentindo mais como
hóspede e parte dela. A ideia-força era a vontade de poder, entendidida
como capacidade de dominar tudo: outras pessoas, classes
sociais, povos, continentes, a natureza, a matéria, a vida e a própria Terra
como um todo. Foram produzidas armas de destruição em massa, químicas,
biológicas e nucleares.
O inglês Francis Bacon, tido como o fundador do
método científico moderno, chegou a escrever:”Deve-se torturar a natureza
como o torturador tortura a sua vítima, até ela entregar todos os seus
segredos”. Os conhecimentos científicos foram logo transformados em
técnicas de extração de bens naturais, cada vez mais aperfeiçoadas,
para realizar o propósito de acumulação ilimitada. Aqui a agressão ganho estatuto oficial. Foi e
continua sendo aplicada até os dias atuais
A destruição da natureza
Nos últimos tempos de modo especial, depois da
segunda guerra mundial (1939-1945) a sistemática agressão ganhou dimensões
de verdadeira destruição de ecossistemas, da
biodiversidade, dos bens e serviços escassos da natureza, até da Mãe
Terra agredida em todas as suas frentes.
Segundo notáveis cientistas, inauguramos uma nova
era geológica, chamada de antropoceno, na
qual o ser humano emerge como a maior ameaça à natureza e ao equilíbrio da
Terra, particularmente de seus climas. Chegou-se ao ponto de nosso
processo industrialista e o estilo consumista de vida dizimar anualmente cerca
de 100 mil organismos vivos. Mais de um milhão deles estão sob grave ameaça de
desaparecimento.
A partir desta verdadeira tragédia biológica
começou-se a falar de necroceno, quer
dizer, a morte (necro) em massa de vidas da
natureza e de vidas humanas por miséria, fome de milhões e milhões e agora pelo
Covid-19 planetário.
A erosão da Matriz Relacional
Perdeu-se a perspectiva do Todo. Ocorreu uma
verdadeira fragmentação e atomização da realidade e dos respectivos
sabares. Sabe-se cada vez mais sobre cada vez menos.Tal fato
possui suas vantagens mas também seus limites. A realidade não é fragmentada.
Por isso os saberes também não podem ser fragmentados. Falamos da aliança entre
todos os saberes, também dos populares (Prigogine).
Deixou-se de considerar as relações de interdependência que todas coisas guardam entre si.
Numa palavra: erodiu-se a matriz relacional de
todos com todos, que envolvem o próprio universo. Nada existe fora da relação.
Numa poética formulação do Papa Francisco em sua encíclica Laudato si: sobre o cuidado da Casa Comum (2015) se
afirma:
O Sol e a Lua, o cedro e a
florzinha, a águia e o pardal, o espetáculo de sua diversidades significa que
nenhuma criatura se basta a si mesma; elas são interdependentes uma das outras
para se completarem mutuamente no serviço uma das outras!(n.86)
Se realmente todos estamos entrelaçados, então
devemos concluir que o modo de produção capitalista, individualista, depredador
da natureza, visando o maior lucro possível sem se dar conta das relações
existentes entre todas as coisas, emitindo gases de efeito estufa, está na contramão
da lógica da natureza e do próprio universo.
A Terra nos criou um lugar amigável para viver mas
nós não estamos nos mostrando amigáveis para com ela. Ao contrário, movemos-lhe
uma guerra, sem chance de ganhá-la, a ponto de ela não aguentar mais e começar
a reagir numa espécie de contra-ataque. Este é o significado maior da intrusão
de toda uma gama de vírus, especialmente do Covid-19. De cuidadores da natureza
nos fizemos em seu Satã ameaçador.
Ou mudamos ou podemos correr o risco de
desaparecer
Até o advento da modernidade o ser humano
percebia-se ligado ao Todo. Agora a Mãe Terra foi transformada “num banheiro” e
“estamos cavando nossa sepultura” disse o Secretário Geral da ONU António
Guterres ao abrir os trabalhos na COP26 no dia 31/10/2021, ou num baú
cheio de recursos a serem explorados. Nessa compreensão que acabou por se
impôr, as coisas e os seres humanos estão desconectados entre si, cada qual
seguindo um curso próprio.
A ausência do sentimento de pertença a um Todo
maior, o descaso pelas teias de relações que ligam todos os seres, tornou-nos
desenraizados e mergulhados numa profunda solidão, coisa que o impedia
uma visão integradora do mundo, que existia anteriormente.
Por que fizemos esta inversão de rumo? Não será uma
única causa, mas um complexo delas. A mais importante e danosa foi termos
abandonado a referida Matriz Relacional, vale
dizer, a percepção da teia de relações que entrelaçam todos os seres. Ela nos
conferia a sensação de sermos parte de um Todo maior, de que estávamos
inseridos na natureza como parte dela, como irmãos e irmãs, como afirma a Fratelli tutti do Papa Francisco e não
simplesmente seus usuários e com interesses meramente utilitaristas. Perdemos a
capacidade de admração pela grandeur da
criação, de reverência face ao céu estrelado, de respeito por todo tipo de vida
e da capacidade de chorar pelo sofrimento da maioria da humanidade.
Se não fizermos esta virada de “senhores e donos” (dominus) da natureza para “irmãos e irmãs (frater)
entre todos, da humanidade e da natureza, não serão eventuais
acordos alcançados na COP26 de diminuição de gases de efeito estufa que
irão nos salvar.A questão é a mudança de paradigma.Ou mudamos ou corremos o
risco de desaparecer da face da Terra.
Leonardo Boff é eco-teólogo e escreveu: Ecologia:grito da Terra-grito do pobre, Vozes
2015; Como cuidar da Casa Comum, Vozes 2017.
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