Eduardo Hoornaert
Este
texto é um comentário do primeiro capítulo do livro Vigília e Testemunho, uma autobiografia que Marina Bandeira (1925-2019)
redigiu entre 2008 e 2011 e que foi digitalizada e publicada como e-book em
novembro 2013 pelo ‘Centro Alceu Amoroso Lima pela Liberdade’ (CAALL). Esse é o
primeiro livro que li por inteiro em PDF (Portable Document Format), projetado
em letras grandes em meu computador, o que permite uma leitura fácil.
O
livro contém 370 páginas, subdivididas em capítulos que focalizam eventos
sucessivos na vida de Marina. Cada capítulo vai subdividido em breves
narrativas: episódios vividos pela autora, reflexões esporádicas. Estilo
direto, não rebuscado. Afinal, uma literatura bem próxima da oralidade. O
primeiro capítulo, intitulado XXXVI
Congresso Eucarístico Internacional, contém 40 subdivisões. O segundo,
intitulado Comissão Justiça e Paz,
tem 11, o terceiro, Fundação Nacional do
Bem-estar do Menor, 7, e o quarto, Retorno
à Comissão Justiça e Paz, tem apenas 6 subdivisões. Isso significa que o
primeiro capítulo contém três quartos do texto de Marina. É nele que me
concentro. Desde já escrevo que, nesse capítulo, entram muitos episódios
vividos no Movimento de Educação de Base (MEB),
um trabalho que roubou o coração de Marina.
Numa
primeira leitura, as memórias de Marina vão descritas de modo linear, sem
relevo. Mas, quem lê o Prefácio (pp. 9-11), redigido pelo Professor Cândido
Mendes, fundador do CAALL, percebe que, por trás das aparências, o texto tem
relevo, sim. Expressa uma ‘opção’. Eis como Cândido Mendes se expressa, em seu
estilo característico: Marina Bandeira sempre optou, ao longo de sucessivos
empreendimentos, por abandonar os
aparelhos para se aproximar do espontaneismo coletivo e de sua
auto-organização. O Professor Cândido vê Marina como uma navegadora por
muitas águas, mas sempre com bússola na mão, a indicar o ‘norte’. Ela procura
passar de trabalhos em aparelhos (trabalhos
articulados a partir de organismos estabelecidos por autoridades, sejam estas
civis, militares ou eclesiásticas), ao espontaneismo
coletivo e de sua auto-organização (trabalhos oriundos de iniciativas).
Neste
texto, sigo a intuição de Cândido Mendes. Marina Bandeira, efetivamente, não mergulha
de corpo e alma em projetos com a Funabem (Fundação Nacional do Bem-Estar do
Menor), que ela aborda no terceiro capítulo de seu livro. Trata-se de um
projeto do governo brasileiro e Marina não vê a hora de abandonar os trabalhos
na Funabem e voltar à Comissão Pontifícia Justiça e Paz, com a qual colabora ao
longo de 25 anos. E, mesmo em relação à CPJP, Marina fica sempre ‘com um pé
para trás’. Quando recebe o convite de se tornar Coordenadora Internacional de dita
Comissão, sediada em Roma, ela recusa peremptoriamente: essa não é minha praia. Trata-se de um projeto que, afinal, também cai
‘de cima para baixo’ e, daí, corre o perigo de se perder na burocracia.
Em
vivo contraste com esses projetos ‘governamentais’, Marina embarca com
entusiasmo em iniciativas ‘espontâneas’. Quando ela ouve falar, numa data que
não sei precisar, de um grupo de mulheres, no Rio de Janeiro, que se reúne
mensalmente, ela se anima em participar (descrevo essa iniciativa no parágrafo
02 deste texto). Com o mesmo entusiasmo recebe, em 1954, a sugestão, por parte de
José Vicente Távora, na época bispo auxiliar no Rio de Janeiro, de colaborar na
preparação do 36o Congresso Eucarístico Internacional (veja parágrafo 04). Nesse
contexto, ela entra em contato o outro Bispo auxiliar do Rio, Helder Camara. Aí
mergulha de vez em projetos alternativos, que a levam a participação entusiasta
na Cruzada São Sebastião, no Banco da Providência, na Feira da Providência. Tudo
isso na segunda parte dos anos 1950. Quando ela ouve falar de escolas
radiofônicas educativas, em Natal, por iniciativa de Dom Eugênio Sales, e
quando Dom José Vicente Távora a convida formalmente no sentido de colaborar no
‘Movimento de Educação de Base (MEB), Marina não hesita. Dedica ao MEB os
melhores anos de sua vida (15 anos). Deixo de comentar muitos outros episódios,
pois não é minha intenção escrever uma nova biografia de Marina (!). Apenas
ainda aponto aqui que, já nos últimos anos de sua atuação, ela se sente bem a
dar suporte logístico à Comunidade de Emaús e agradece o acolhimento que lhe é
dispensado pela CAALL. Tudo isso se encaixa na distinção, feita por Cândido
Mendes, entre trabalhos ‘mandados’ e trabalhos ‘espontâneos’, no transcurso da
vida de Marina Bandeira.
Escrevi
acima, na primeira frase deste texto, que aqui só pretendo comentar o primeiro
capítulo da biografia Vigília e
Testemunho. Divido meu texto em cinco parágrafos: (1) O ambiente familiar;
(2) Um grupo feminino; (3) Mulheres que mexem com a igreja; (4) O ano 1955. Os
parágrafos 02 e 03 constituem, na realidade, uma pré-história da atuação de
Marina. Mesmo assim, fiz questão de mencionar esses anos anteriores à atuação
de Marina, pois isso ajuda a situar sua vida no contexto mais amplo de uma
atuação feminina marcante na cúpula da igreja católica no Brasil, entre 1940 e
1980. Só no parágrafo 04, Marina entra
em cena. Mas não resisto à vontade de juntar um quinto parágrafo (5), em que conto
como Marina, certa feita, no Vaticano em Roma, transformou uma audiência privada com o Papa Paulo VI
num tête à tête com ele, em cima de
todos os regulamentos protocolares. Um episódio que, em meu entender,
caracteriza bem o modo de ser de Marina Bandeira.
Primeiro
parágrafo: o ambiente familiar.
Deixemos
a palavra com Marina: Por temperamento e
formação na família, eu era contra a ditadura. No caso, a de Vargas, do Estado
Novo. Minha mãe e minha avó materna estudaram na Inglaterra, logo, tradição
democrática. Meu pai se formara em Engenharia nos Estados Unidos. Faleceu aos
45 anos, em 1935, mas gravei diversos comentários sobre os horrores da
Revolução Russa: ‘Havia muitos abusos, antes e agora se vingam. É como navio
lançado ao mar: tende para um lado, para o outro, depois acerta o rumo’.
Criticava os abusos do ditador Mussolini. Contava que amigo seu, mexicano, na
universidade, nos Estados Unidos, dizia que a sorte do Brasil era não ter
fronteira com eles. Meu pai não pertenceu à Aliança Nacional Libertadora, mas
era simpatizante. Em resumo: tinha tendência para a esquerda.
Morávamos em Ipanema, naquela época
bairro novo, uma espécie de Liga das Nações, com a presença de vários estrangeiros:
funcionários de embaixadas e consulados e de sedes de grandes empresas
estrangeiras. Brincávamos com crianças inglesas, alemãs e francesas e, é claro,
com brasileiras, como a família Paranhos. Após a morte de meu pai, minha mãe,
chefe da família, teve de sustentar os cinco filhos: a mais velha com 13 anos,
a segunda com 12, eu com 10 anos incompletos, meu irmão com 6 e a mais moça com
2 e meio. Minha mãe, depois de fazer traduções em casa, trabalhou, durante a
Segunda Guerra Mundial, na Base Naval Americana, no Rio – com salário
equivalente ao de almirante da Marinha de Guerra do Brasil, mas trabalhava no
Carnaval e na Semana Santa etc., pois se tratava de “esforço de guerra”. Enfim,
são recordações de criança, de adolescente (Vigília e Testemunho, p. 39).
Ela
continua com recordações familiares nas páginas 84-87: Meu vovô pertencera à Loja Maçônica na juventude, fez seus estudos de
Medicina em Salvador e no Rio de Janeiro e especializações em Viena, Milão e
Paris. Já casado, com dois filhos, foi eleito por Pernambuco para a primeira Assembleia
Constituinte da República. Em discurso inflamado em que criticava o marechal
Floriano, então no poder, renunciou ao mandato e abriu consultório médico no
Rio. Na maturidade, tornou-se católico praticante. A maioria de seus pacientes
era inglesa anglicana... Minha mãe e irmãs estudaram no Colégio Holy Child
Jesus, na Inglaterra, no qual os católicos, por motivos históricos, eram
minoria discriminada. Para facilitar o diálogo com cristãos não romanos, no
colégio estudavam a Bíblia, em tempo de forte influência do cardeal Newman, de
visão bem aberta. Duas irmãs de minha mãe tornaram-se religiosas da Sociedade
do Sacré Cœur de Jésus. A terceira, botânica, aluna do professor Pacheco Leão,
após a morte dos pais, veio a ser assistente de professor na Escola de Botânica
da Sorbonne, em Paris, mas retornou ao Rio e entrou para o Carmelo de Santa
Teresa. A nós, crianças – ela era muito querida –, explicava que, ante a
tentação de candidatar-se a “vereadora comunista”, pois eram tantas as
injustiças sociais, preferiu a clausura: pedir ajuda constante a Deus. Meu tio,
engenheiro, depois fazendeiro, benfeitor dos jesuítas, era conhecido como
“jesuíta de casaca”. A família de meu pai era espírita (Allan Kardec), mas
papai, ao se casar, rapidamente deixou de frequentar as sessões e passou a
apoiar minha mãe em nossa educação católica. Havia parentes judeus. Meu pai
trabalhava em empresa de ingleses anglicanos.
Após a morte de papai, mamãe decidiu
que os parentes mais próximos eram as tias freiras do Sacré-Cœur. Pagava as
mensalidades de nós três, talvez com algum desconto. Minha tia Mère Christina
Bandeira era a diretora de estudos. Ao fim do primeiro dia de aula, que
consistia na leitura em francês do regulamento do colégio – todas as alunas
reunidas no imenso Salon des Actes –, convocou nós três ao seu gabinete, no
prédio então inaugurado, no Morro da Graça, no bairro de Laranjeiras. Há tempos
não convivíamos com essa tia, por motivo de atritos durante o inventário dos
meus avós. A nós três, de fumo no braço (faixa preta, sinal de luto), perguntou
se tínhamos entendido o “règlement”. Ante a resposta afirmativa, declarou: “O
règlement se aplica a todas as alunas, mas a vocês com maior rigor. A partir de
hoje, não há mais tia Christina, sou Mère Bandeira”. Era manifestação do
sentido de duty inglês. Nada de nepotismo.
Tive dificuldade de me adaptar ao
colégio. No Colégio Notre Dame de Sion, passamos apenas o segundo semestre (até
a morte de papai) antes de ir para o Sacré-Cœur de Jésus, onde fiquei dos 10
aos 17 anos. Se não era indisciplinada, também não ganhei medalha por bom
comportamento, ou outra qualquer. Mas fiz boas amigas... Para nós,
semi-internas, a missa era diária, às 8 horas.
Essa
educação, que se pode qualificar de ética, rigorosa e elitista, fez de Marina
uma mulher que sabe se comportar em todos os ambientes, inclusive na ‘alta
sociedade’ nacional e internacional, sempre demonstrando um comportamento ético
a toda prova.
Marina
é uma ‘senhora’, uma ‘lady’. Há um delicioso episódio que ela mesma conta nas
páginas 166-168 de seu livro sob o título: four
brazilian ladies. Cito (com ligeiras adaptações no texto
original): Em Nova York, setembro de
1964, no hotel, recebo um telefonema comunicando que ‘Her Majesty the Queen’ (Sua
Majestade a Rainha [da Inglaterra]) me pergunta
se aceito seu convite para ir à Inglaterra (num programa de intercâmbio
cultural) com outras três brazilian
ladies, entre os dias 24 de setembro e 21 de outubro de 1964. (Aceito e
empreendemos a) viagem em primeira classe
na British Airways, um luxo só. Em
Londres, carro com motorista para nossos deslocamentos. Instaladas em bom
hotel, onde, no jantar para as boas-vindas, tivemos a companhia de lady Edith
Summerskill, médica, antiga deputada pelo Partido Trabalhista (Labour Party),
agora na Câmara dos Lordes. Jantar interessantíssimo para nós. Lady Summerskill
não escondeu sua surpresa: ‘Não sabia que no Brasil existiam mulheres como
vocês!’...Fomos a Birminghan, Stratford-upon-Avon. Assistimos a um balé no
Royal Covent Garden e à apresentação de uma orquestra no Royal Albert Hall, etc.,
etc.
Esse
depoimento dispensa comentários, pois demonstra quanto Marina deve ao ambiente
em que nasceu e se formou. Depois de ler essas memórias, em que cintila vida e
alegria, compreendo o cuidado da sobrinha Marina Bandeira Klink em cultivar a
memória da família Bandeira. Vale a pena.
Segundo
parágrafo: Um grupo feminino.
O
que vou contar aqui constitui uma pré-história no percurso da vida de Marina
Bandeira. A história começa com Virgínia Côrtes de Lacerda, uma leiga católica que,
no início dos anos 1940, ensina numa universidade do Rio de Janeiro e se encontra
diariamente com o padre Helder Camara por ocasião da missa matutina no Hospital
Ana Nery. Ambos passam a trocar livros para leitura. É que o referido sacerdote
está passando por uma fase na vida em que se torna um leitor quase obsessivo,
de tanto procurar se orientar, numa igreja basicamente autoritária, por
paradigmas democráticos (Veja: Lucy Pina Neta, O Dom da Leitura. Helder Câmara e suas bibliotecas, São Paulo,
Edições Paulinas, 2018).
Virgínia
fica intrigada com as numerosas anotações a mão que aparecem nas margens dos livros
que Helder lhe empresta, as datilografa por conta própria e as encaderna. Acha
tão interessantes essas anotações, que convoca algumas amigas a ler e comentá-las
em reuniões mensais que, bem no estilo da Ação Católica da época e de suas ‘equipes
de vida’, constituem momentos de lazer e arte (cinema, teatro, com comentários)
alternados com momentos de espiritualidade (uma manhã por mês). Essa vontade,
no sentido de compartilhar impressões, planos e espiritualidades, corresponde
bem a um sonho do padre Helder Camara, que acalenta, desde muito, formar um
‘círculo de leitura’, como realça Lucy Pina Neta no trabalho acima mencionado.
Com
o tempo se forma uma real ‘equipe de vida’ que acompanha o padre e depois bispo
Helder ao longo da vida e que, ao sabor de sua insuperável inventividade, no
correr do tempo, ganha diversos nomes: Grupo Confiança, Família São Joaquim,
Apostolado Oculto, Família Messejanense, ou simplesmente Família. Finalmente, prevalece
o nome ‘Família Messejanense’, alusão a um distrito da cidade de Fortaleza no
Ceará (terra originária de Helder Camara).
Não
me consta que Marina Bandeira, naqueles anos iniciais, tomasse algum contato
com essa ‘Família’. Mas quando, a partir de 1954, nela se integrou, foi para
valer. Efetivamente, a ‘Famíia’ de Helder Camara tornou-se uma das articulações
mais criativas da igreja católica nos anos 1950-80. Os primeiros sinais de
aproximação de Marina se deram por meio do padre José Vicente Távora. Eis o que
ela escreveu a esse respeito: Minha
convivência com conventos mostrou aspectos positivos e negativos. Ao sair do
colégio, queria distância da “Igreja dos Padres”. A Europa devastada pela
guerra marcou-me; afinal, todos eram países cristãos. O que é amor ao próximo?
Onde fica o Evangelho? Foi o padre José Vicente Távora quem, com sua
simplicidade, seu empenho diário em favor dos mais fracos, me fez ver que os
ensinamentos dos Evangelhos, na prática, passo a passo, eram viáveis. No
Palácio São Joaquim, para onde dom Távora me levou, encontrei clima de
fraternidade e confiança. Os riscos de atritos pessoais foram resolvidos na
raiz por dom Helder, dom Távora e Cecilinha Monteiro (Vigília e Testemunho, p. 89).
Terceiro
parágrafo: Mulheres que mexem com a igreja.
Continuo
com algumas palavras sobre a ‘pré-história’ da atuação de Marina. A assessoria,
muitas vezes gratuita, de mulheres, em trabalhos de apostolado e secretaria, é algo
comum na igreja católica. Mulheres que se prontificam a trabalhar por ‘amor a
Deus e à igreja’. Elas consolidam, dia após dia, as bases do poder do padre
junto ao povo, frequentemente suportam que esse as trate de forma paternal e
costumam ser discretas em relação à sua condição de subalternas generosas.
Mas
com o grupo em torno de Virgínia Lacerda e Helder Camara, as coisas são diferentes.
Trata-se de um grupo feminino que ‘mexe’ com a igreja católica em sua
organização interna.
Situado
no bairro da Glória, setor histórico da cidade do Rio de Janeiro, palco dos
mais garbosos bailes em tempos de Império na segunda parte do século XIX, na
presença do Imperador Dom Pedro II, de Dona Teresa, do Marquês do Abrantes, do
Visconde do Meriti (dono do Palácio), da alta sociedade do Rio de Janeiro, o
Palácio São Joaquim é doado ao primeiro Cardeal brasileiro, Dom Arcoverde, no
início do século XX. Desde então, funciona como moradia de Arcebispos e Centro Administrativo/Pastoral
da Igreja Católica na Arquidiocese do Rio de Janeiro.
Em
1948, o Arcebispo Cardeal Dom Jaime Câmara mora aí, quando fica surpreendido, segundo
suas próprias palavras, pela conquista do
térreo do Palácio por mulheres e, por conseguinte, se encontra na contingência
de se retirar no piso superior.
Conto
em poucas palavras como isso ocorre. Em 1947, o então padre Helder recebe a
solicitação de reorganizar, em nível nacional, o movimento da Ação Católica.
Ele aceita, mas sob uma condição: que sua ‘Família’ colabore no projeto. Assim,
uma equipe feminina se instala no térreo do Palácio São Joaquim. E não demora em
impressionar por realizar grandes trabalhos, em nível nacional, no lapso de
tempo relativamente curto de quinze anos (entre 1947 e 1962): a reorganização
nacional da Ação Católica; as articulações preparativas à criação da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e, alguns anos depois, à
criação do Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM). O padre Helder Camara e
sua equipe trabalham intensivamente, conseguem centralizar em nível nacional
atividades antes desarticuladas, espalhadas pelo país, de militantes da Ação
Católica, ao criar um Secretariado Nacional e, com isso, conseguir que os
militantes se sintam mais livres da tutela de bispos locais, ao mesmo tempo em
que se superam o isolamento e a particularização num país imenso como o Brasil.
O modelo de centralização nacional da Ação Católica é tão bem-sucedido que
encontra ressonância fora do país: formam-se Secretariados Nacionais da Ação
Católica pelo mundo afora. Em 1952, Helder é nomeado Bispo auxiliar no Rio de
Janeiro e aplica logo a experiência bem-sucedida da Ação Católica à
centralização de dioceses, ou seja, à criação de uma Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB), que já mostra os primeiros resultados no final do
mesmo ano 1952, quando Helder é aclamado, por unanimidade, como primeiro
Secretário Geral da CNBB.
Na
literatura corrente acerca desses sucessos, o foco comum é a figura de Helder
Camara. Mas a teóloga Ivone Gebara, numa entrevista em 22 de agosto de 2019,
encontra as palavras certeiras: Helder (Camara)
é o que é porque havia mulheres
extraordinárias que estavam junto dele. Palavras que se aplicam plenamente
a Marina Bandeira.
Quarto
parágrafo: O ano 1955.
Três
anos depois da criação da CNBB, em 1955, a incansável equipe feminina consegue
outro resultado espetacular. Ela é grandemente responsável pelo imenso sucesso
do XXXVI Congresso Eucarístico Internacional no Rio de Janeiro, onde o Brasil
se torna, pela primeira vez em sua história, um palco do mundo. O imenso
sucesso projeta o nome de Helder Camara nacional e mesmo internacionalmente, enquanto
a ‘Família’ fica na sombra.
Por
volta de 1955, Marina Bandeira entra em cena. Deixemos a palavra com ela: Em 1954, deixei meu trabalho no Departamento
de Imprensa da Embaixada da Índia para me dar um ano sabático. As férias
duraram pouco: Dom José Vicente Távora, recém-nomeado bispo auxiliar do Rio de
Janeiro, meu amigo, me pediu para colaborar na organização do XXXVI Congresso
Eucarístico Internacional, que se realizaria entre 17 e 24 de julho de 1955, no
Rio de Janeiro. Minha experiência na BBC em Londres (como locutora e tradutora
júnior) e os contatos com a imprensa no Rio seriam úteis. Para aceitar,
estabeleci uma condição: só estaria disponível uma tarde por semana. Minha
primeira tarefa foi assistir a uma palestra de dom Helder Camara, que não
conhecia, sobre o Congresso. O orador realçou a importância do evento e a extrema
necessidade de voluntários. Na quarta-feira seguinte, lá estava eu no Palácio
São Joaquim, para as reuniões semanais. Já na primeira presença, fui
apresentada como secretária de dom Távora, na Comissão de Publicidade do Congresso
(Vigília e Testemunho, p. 25).
Não
vou contar aqui a história do famoso Congresso Eucarístico Internacional de
1955. Só quero lembrar que o sucesso foi tanto que provocou um questionamento
de seus pressupostos (como acontece frequentemente na história com eventos
espetaculares). Para que reunir tanta gente em torno da Eucaristia? O que
significa, afinal, Eucaristia? Não significa compartilhamento, beber no mesmo
cálice e comer do mesmo pão? O Bispo Auxiliar Helder Camara vivencia na alma a
‘irrupção do evangelho’ em sua vida. Já nos últimos meses do mesmo ano 1955,
ele volta sua atenção às 150 favelas que configuram o panorama da cidade de Rio
de Janeiro, e pede a colaboradoras e colaboradores do tempo da preparação do
Congresso Eucarístico que não abandonem seus postos, mas redirecionem seus
trabalhos no sentido de focar a urbanização e humanização das favelas. E no dia
29 de outubro 1955, apenas 90 dias após a conclusão do Congresso, se cria a ‘Cruzada
São Sebastião’, um plano ambicioso de urbanização de favelas do Rio de Janeiro
no curto prazo de dez anos, de modo que a cidade possa comemorar, em 1966, já
plenamente urbanizada, seu quarto centenário. Eis, pelo menos, o planejamento
na época. A Cruzada é secundada, desde 1959, pelo ‘Banco da Providência’, uma
superintendência filantrópica para manter e supervisionar trabalhos
assistenciais espalhados pela cidade a socorrer pessoas em situação de risco.
Mais adiante vem a ‘Feira da Providência’, que deve servir para abastecer lares
com recursos angariados em atividades assistenciais apoiadas pelo Banco. A Praia do Pinto, no Leblon, fica perto da
zona de apartamentos onde mora parte da burguesia do Rio. Helder, com suas
auxiliares, planeja construir aí uma vila popular, para que os pobres vivam
próximos de seus locais de trabalho como empregadas domésticas, porteiros,
caseiros, serventes. A ideia é revolucionária: que os pobres façam parte da
privilegiada Zona Sul da Cidade Maravilha.
Em
tudo isso, Marina Bandeira entra de cheio e demonstra seus talentos de
organizadora e articuladora. Em 1965, Helder Camara anota numa de suas Cartas Circulares (Carta Circular
19/20-11-1965, Cepe, I, III, p. 266): Marina
tem jeito para public relations. Verifiquei pessoalmente, em diversas
oportunidades, o grande apreço que ele tinha por Marina Bandeira.
Ela
mesma conta a história, que acabo de evocar, em seu livro acerca do período
1940-1964 da história da igreja católica no Brasil, que o CAALL publicou e que,
por sugestão de Cândido Mendes, recebeu o título A Igreja católica na virada
da questão social. Virada na igreja, virada também na vida da autora.
Quinto
parágrafo: Tête-a-tête com o Papa.
Sei
que meu retrato de Marina Bandeira é incompleto e provisório. Relato aqui um
episódio de sua vida que compensa um pouco essa incompletude ao flagrar, ao
vivo, a personalidade de Marina Bandeira. Nas páginas 194-195 do livro Vigília e Testemunho vai uma deliciosa
história vivida por ela em Roma, quando pede uma audiência privada com o Papa Paulo VI para solicitar sua
colaboração no encaminhamento de problemas financeiros e humanos que ela
enfrenta no Movimento de Educação de Base (MEB). A ‘audiência’ se transforma em
outra coisa, como revela o texto a seguir.
Eis
como Marina relato o ocorrido: Chegou o
esperado cartão para a audiência com o papa: dia e hora em Castel Gandolfo
(residência de verão). O cartão informava a vestimenta: vestido de manga
comprida e véu. Tudo isso tinha em ordem – vestido de duas peças cinza-claro
que Leninha, minha irmã, não queria mais. Uma das AFIs (Auxiliares
Femininas Internacionais), disponível no
horário, me levou no seu Volkswagen ao Castel Gandolfo. Chegamos com bastante
antecedência. Recebida no castelo-palácio pelo mordomo, este, após longo
percurso, indicou-me o salão, com cadeiras à volta, onde deveria aguardar. O
salão, muito belo, não tinha paredes no corredor e se viram as pessoas que
voltavam após a audiência. Enquanto aguardava, procurava imaginar a audiência.
De todos, a quem perguntava, ouvia: de uma coisa esteja certa, tête-à-tête com o papa não existe.
Então imaginava o papa em algum tipo de trono, assessores à volta, e eu em pé,
tentando explicar nossos problemas. A sós, sem testemunhas, na igualdade, não
existe. É audiência. Escuta-se. (Aí Marina conta que, num certo momento,
apareceu Monsenhor Benelli, secretário, que explicou a Marina por que sua hora
de atendimento estava demorando tanto). Benelli: ‘O papa sabe que você está aqui... Você ficou por último para não ter
limite de tempo’. Perguntei como se fala com o papa: ‘apenas diplomacia ou se
diz a verdade?’. Resposta: ‘Se você não
disser tudo o que pensa, cometerá o maior erro de sua vida’. Mais tranquila,
esperei mais um pouco até me levarem para a antessala, onde aguardei a saída do
ministro de Malta e família.
Paulo VI abriu a porta e indicou que
entrasse. Tentei ajoelhar, beijar o anel, mas suas mãos seguraram as minhas,
impedindo-me. Encaminhou-se para a escrivaninha e, de pé, mostrou a cadeira
defronte. Durante segundos houve cena meio cômica: o papa, cavalheiro, insistia
que me sentasse, mas eu não queria sentar-me antes. Devemos ter sentado ao
mesmo tempo. Escolhi o idioma francês. Descrevi as dificuldades com o governo
militar, a não liberação de recursos. Acentuei as contradições dos bispos: uns
apoiavam firmemente, outros criticavam com dureza. Expliquei a viagem prevista
para a Europa, na tentativa de conseguir recursos financeiros. Descrevi o
estado de exaustão da mocidade, que se debatia, alguns com úlceras e outros
problemas de saúde. Sustentei que melhor seria encerrar o trabalho e facilitar
a ida dos que quisessem para outros continentes: a África, por exemplo. Eu me
empolguei. Disse tudo o que pensava. De repente, vi que o papa, com as mãos nos
braços da cadeira, cabeça um pouco para trás, dava uma boa gargalhada… Só então percebi meu dedo apontado para o
nariz de sua Santidade! Pedi perdão e procurei me controlar. Paulo VI
afirmou: ‘O MEB é muito importante. O melhor trabalho de educação de base da
Igreja no mundo. Não pode acabar’. E acrescentou: ‘É inútil procurar recursos,
nas entidades católicas da Europa, sem antes ter ‘un bout de papier quelconque’
(um
pedaço de papel) do governo do Brasil’.
Repeti que era difícil. Resposta: ‘Insista, vai conseguir’. Com seu sorriso
amigo, nos despedimos.
Isso
não é ‘audiência’, é ‘tête à tête’, diálogo ‘horizontal’ com alguém que representa,
como ninguém, ‘verticalidade’ e respeito hierárquico. Aparece uma mulher segura
de si, sem timidez e sem medo de externar seu pensamento. O dedo em riste (como
se fosse cabo de lança) em direção ao nariz de um papa: isso é uma cena
impagável! Autenticidade, pragmatismo, espontaneidade, afirmatividade. Esse diálogo,
de certo modo, caracteriza a vida inteira de Marina. Ela não se intimida diante
do detentor de uma dignidade considerada suprema. Não se faz de humilde suplicante, não se faz representante dos
pobres, seu comportamento não tem essa coloração artificial que se percebe em
muitos/as que pretendem representar ‘a base da sociedade’. Marina é elite.
Elite cultural, intelectual e ética, que representa o melhor que nossa
sociedade tem.
De
repente, a história de Marina Bandeira evoca tempos passados. Tempos medievais,
quando a igreja se empenhou em ‘evangelizar’ as classes altas da sociedade, quando
o Senhor do Castelo saía para defender ‘viúvas e órfãos’, ou seja, fracos e indefesos,
quando o cavaleiro nobre obedecia às regras da ‘Deuda Dei’, ou seja, respeitava
os tempos, no calendário anual, de trânsito seguro (sem medo de assaltantes) nas
estradas que levavam a feiras, por onde se escoava a produção local em produtos
agrícolas e artesanais. O resultado foi um florescimento sem par de uma
economia bastante igualitária. Há historiadores que dizem que essa ‘evangelização
da nobreza’ foi a maior vitória que a igreja católica conseguiu, ao longo de dois
mil anos de atuação.
Olhando
com atenção se percebe que a história de Marina se encaixa nesse método
tradicional de evangelização da elite. É o que se desprende da leitura do primeiro
parágrafo deste texto, onde Marina aparece herdeira de uma sucessão de gerações
de uma elite cultural, intelectual e ética. É nesse sentido que repito: Marina
representa o melhor que nossa sociedade tem.
Por
fim, faço votos para que a leitura de Vigília
e Testemunho ajude a pessoas de classe privilegiada a fazer sua opção por não
privilegiados.
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