por Maria Clara Lucchetti
Bingemer
O mundo assiste perplexo a mais uma performance destruidora do Estado
Islâmico. E mais uma vez na França. Agora, a vítima mais evidente é
um ancião de 86 anos, padre católico, responsável pela igreja de Saint Etienne
du Rouvray, ao norte do país. Obrigado a ajoelhar-se diante de outros
paroquianos, entre eles uma freira que conseguiu escapar e vários outros, padre Jacques
Hamel foi decapitado diante de todos.
Pela seriedade do fato e por ser o mais recente de uma
série, importa refletir atentamente sobre o ocorrido. Trata-se de uma guerra,
sim, do EI contra o Ocidente, mas um tipo diferente de guerra. Como diz
Xavier Pikaza, teólogo espanhol, não uma guerra de religiões, mas a Guerra da
Religião.
O EI e sua prática terrorista tem se empenhado em atacar
pontos, lugares, situações simbólicas fortes do Ocidente e sua
civilização. Assim é que a mortal sequência que se arrasta desde janeiro
de 2015 inclui: o ataque a um periódico satírico que simboliza a liberdade de
expressão e não poupa a religião, seja ela qual for (Charlie Hebdo); o ataque a
uma sala profana de espetáculos (Bataclan, Paris); contra a celebração da festa
nacional francesas (Nice). Chegou a hora da Igreja Católica. Embora
tenha acontecido em uma pequena igreja, foi um ataque ao cristianismo francês –
nunca é demais recordar que a França é a filha mais velha da Igreja – e a
vítima é um padre que celebra o rito por excelência do catolicismo: a
Eucaristia. Seu assassinato também é feito dentro do ritual islâmico
djihadista radical.
O delegado para as relações inter-religiosas da diocese de
Lyon, Christian Delorme, alerta para o risco de o EI obter o que busca: o
esgarçamento e a ruptura definitiva entre muçulmanos e cristãos. Para isso,
apela à solidariedade entre essas duas grandes religiões monoteístas: ”É
preciso que cada um esteja consciente de que aqueles que dizem pertencer ao
Estado Islâmico desejam o caos, a guerra. E de nenhuma maneira devemos
dar-lhes este presente. Pois não ultrapassaremos esta situação senão juntos e
solidários. Nossa salvação virá de nossa solidariedade com a comunidade
muçulmana, ela também vítima dessa barbárie. ”
Alguns poderão tachar de ingênua a afirmação de
Delorme. Ao que me parece falta-lhes razão. Igualmente falta-nos a
todos maior acuidade de olhar e discernimento dos objetivos mais profundos do
grupo radical auto proclamado EI. O que desejam destruir é aquela
interface, aquela zona de relacionalidade onde se misturam muçulmanos e não
muçulmanos, que desafiam os mais obscuros prognósticos vivendo pacificamente
juntos.
A igreja atacada na Normandia
situa-se não longe de uma mesquita. Havia entre as duas trabalhos
pastorais conjuntos, entre eles um comitê interconfessional, onde discutiam e
rezavam juntos. Ali foi celebrado, pouco tempo atrás, o funeral do
paraquedista muçulmano que era religioso, mas contra o radicalismo do EI. A
pretensão do califado é dividir o mundo em branco e preto, e não aceitar
nenhuma síntese, nenhuma flexibilidade de relacionamentos. Por isso, os
atentados sempre atingem situações desta “zona cinza”, zone grise segundo
jornalistas franceses, onde as diferenças convivem e se enriquecem mutuamente.
Se o EI faz esses ataques e nós o condenamos, da mesma
forma não podemos cair na armadilha de derramar sobre a mídia mensagens cheias
de ódio, racismo e islamofobia. Isso significa entrar no jogo dos
terroristas e, mais ainda, fazer uma cruzada anti-islâmica, como parece ser o
objetivo deles: fazer uma cruzada antiocidental e anticristã.
Não se trata de ingenuidade, mas de estratégia inteligente
e de fé e prática do Evangelho, que proclama incansavelmente que todos os seres
humanos podem e devem conviver pacífica e fraternalmente, apesar de todas as
dificuldades. Que a morte do padre Jacques Hamel, assim como de todas as
outras vítimas do terrorismo – entre elas vários muçulmanos – possa
inspirar-nos a tentar construir um mundo melhor, onde a convivência pacífica e
fecunda seja o pão de cada dia e o empenho maior.
Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do departamento de teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de Teologia
e literatura - Afinidades e segredos compartilhados (Ed. Vozes)
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