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segunda-feira, 1 de agosto de 2016

CRISTÃOS E MUÇULMANOS: COEXISTÊNCIA IMPOSSÍVEL?


por Maria Clara Lucchetti Bingemer



            O mundo assiste perplexo a mais uma performance destruidora do Estado Islâmico.  E mais uma vez na França.  Agora, a vítima mais evidente é um ancião de 86 anos, padre católico, responsável pela igreja de Saint Etienne du Rouvray, ao norte do país.  Obrigado a ajoelhar-se diante de outros paroquianos, entre eles uma freira que conseguiu escapar e vários outros, padre Jacques Hamel foi decapitado diante de todos.

            Pela seriedade do fato e por ser o mais recente de uma série, importa refletir atentamente sobre o ocorrido. Trata-se de uma guerra, sim, do EI contra o Ocidente, mas um tipo diferente de guerra.  Como diz Xavier Pikaza, teólogo espanhol, não uma guerra de religiões, mas a Guerra da Religião. 

             O EI e sua prática terrorista tem se empenhado em atacar pontos, lugares, situações simbólicas fortes do Ocidente e sua civilização.  Assim é que a mortal sequência que se arrasta desde janeiro de 2015 inclui: o ataque a um periódico satírico que simboliza a liberdade de expressão e não poupa a religião, seja ela qual for (Charlie Hebdo); o ataque a uma sala profana de espetáculos (Bataclan, Paris); contra a celebração da festa nacional francesas (Nice).  Chegou a hora da Igreja Católica.  Embora tenha acontecido em uma pequena igreja, foi um ataque ao cristianismo francês – nunca é demais recordar que a França é a filha mais velha da Igreja – e a vítima é um padre que celebra o rito por excelência do catolicismo: a Eucaristia.  Seu assassinato também é feito dentro do ritual islâmico djihadista radical.

             O delegado para as relações inter-religiosas da diocese de Lyon, Christian Delorme, alerta para o risco de o EI obter o que busca: o esgarçamento e a ruptura definitiva entre muçulmanos e cristãos.  Para isso, apela à solidariedade entre essas duas grandes religiões monoteístas: ”É preciso que cada um esteja consciente de que aqueles que dizem pertencer ao Estado Islâmico desejam o caos, a guerra.  E de nenhuma maneira devemos dar-lhes este presente. Pois não ultrapassaremos esta situação senão juntos e solidários. Nossa salvação virá de nossa solidariedade com a comunidade muçulmana, ela também vítima dessa barbárie. ”

             Alguns poderão tachar de ingênua a afirmação de Delorme.  Ao que me parece falta-lhes razão.  Igualmente falta-nos a todos maior acuidade de olhar e discernimento dos objetivos mais profundos do grupo radical auto proclamado EI.  O que desejam destruir é aquela interface, aquela zona de relacionalidade onde se misturam muçulmanos e não muçulmanos, que desafiam os mais obscuros prognósticos vivendo pacificamente juntos. 

                 A igreja atacada na Normandia situa-se não longe de uma mesquita.  Havia entre as duas trabalhos pastorais conjuntos, entre eles um comitê interconfessional, onde discutiam e rezavam juntos.  Ali foi celebrado, pouco tempo atrás, o funeral do paraquedista muçulmano que era religioso, mas contra o radicalismo do EI. A pretensão do califado é dividir o mundo em branco e preto, e não aceitar nenhuma síntese, nenhuma flexibilidade de relacionamentos. Por isso, os atentados sempre atingem situações desta “zona cinza”, zone grise segundo jornalistas franceses, onde as diferenças convivem e se enriquecem mutuamente.

            Se o EI faz esses ataques e nós o condenamos, da mesma forma não podemos cair na armadilha de derramar sobre a mídia mensagens cheias de ódio, racismo e islamofobia. Isso significa entrar no jogo dos terroristas e, mais ainda, fazer uma cruzada anti-islâmica, como parece ser o objetivo deles: fazer uma cruzada antiocidental e anticristã.

             Não se trata de ingenuidade, mas de estratégia inteligente e de fé e prática do Evangelho, que proclama incansavelmente que todos os seres humanos podem e devem conviver pacífica e fraternalmente, apesar de todas as dificuldades.  Que a morte do padre Jacques Hamel, assim como de todas as outras vítimas do terrorismo – entre elas vários muçulmanos – possa inspirar-nos a tentar construir um mundo melhor, onde a convivência pacífica e fecunda seja o pão de cada dia e o empenho maior.

Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do departamento de teologia da PUC-Rio.  A teóloga é autora de Teologia e literatura - Afinidades e segredos compartilhados (Ed. Vozes)    

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