por Maria Clara Lucchetti
Bingemer
Diante
do absurdo do mal e da crueldade que vitima inocentes e extermina povos
inteiros em escala industrial, alguns escolhem a indignação, a denúncia, outros
entram em depressão e se demitem do pensamento e da reflexão que possa ser
explicativa. Outros optam pelo silêncio. Essa foi a opção do Papa
Francisco em sua visita a Auschwitz: recolher-se em oração diante do lugar dos
horrores onde aconteceram coisas que não têm explicação e que, portanto,
desafiam o entendimento humano.
A
pé e sozinho, no silêncio da oração, o Papa atravessou o portão do campo de
concentração, encimado pelas palavras “o trabalho liberta", mote nazista
que reforça o escárnio cruel sobre aquilo que na verdade consistia em um lugar
onde imperava o
trabalho escravo e os
horrores do extermínio de mais de um milhão de judeus, ciganos, testemunhas de
Jeová, opositores políticos e homossexuais.
Terceiro papa a visitar
este memorial, patrimônio da Unesco, Francisco preferiu não fazer discursos.
Suas únicas palavras foram as que escreveu no livro de honra: “Senhor, perdoe
tanta crueldade”. Auschwitz era o quartel general da chamada “solução final”. O
termo "Solução Final" foi empregado para se referir ao plano de
aniquilação total do povo judeu. O genocídio, ou extermínio em massa dos
judeus, foi o ápice de uma década de graves medidas discriminatórias contra
eles, e que cresciam em severidade a cada ano.
Na primavera de
1942, Himmler – comandante da SS - determinou que Auschwitz tornar-se-ia
uma "fábrica" de extermínio em grande escala. Ali, cerca de um milhão
de judeus, de diversos países da Europa, foram assassinados. Os métodos eram os
mais variados. As SS e a polícia alemã assassinaram perto de 2.700.000
judeus utilizando asfixia por gás venenoso, fuzilamento e enforcamento. Outros
3.300.000 sucumbiram devido às atrocidades cometidas contra eles por fome,
maus-tratos, espancamento, frio, doenças, experiências “médicas”, e outras
formas de crueldade inimagináveis. Como tudo era cuidadosamente documentado com
fotos, datas e descrições pormenorizadas na impecável organização de Adolf
Eichmann, hoje o mundo pode ver os rostos das vítimas e constatar quantas
mulheres, crianças, idosos, havia entre eles.
O que se passou ali nos dá
vertigem. É muito difícil entender o porquê de o ser humano agir com
tamanha insensibilidade e crueldade. A teologia cristã se viu interpelada
pelo fantasma de Auschwitz. A pergunta do grande pensador judeu Hans
Jonas atingiu o coração de teólogos como o protestante Jürgen Moltmann e o
católico Johann Baptist Metz, por exemplo.
Sua reflexão surge da
terrível experiência de ser sobrevivente da descomunal tragédia da shoah,
do holocausto. Seu pensamento e sua luta para entender o que é ininteligível se
transformou neles em vocação teológica precedida por esse sofrimento e essa
dor. A questão por Deus brotará do mais profundo de suas entranhas na medida em
que se perguntarão por que estão vivos ao contrário de tantos milhões de outros.
Ao mesmo tempo se perguntarão onde está Deus quando inocentes são massacrados
em escala industrial em nome de uma perversa ideologia.
Ambos encontrarão na
Paixão de Jesus Cristo o paradigma para a paixão do mundo e da
humanidade. E justamente essa Paixão mostrará que Deus está crucificado
com as vítimas, em silêncio, com e como elas. E diante desse silêncio do
Deus Crucificado, Deus se cala, tornado impotente por uma violência à qual não
pode revidar, mas apenas sofrer, com-padecer. E este silêncio é mais eloquente
do que qualquer palavra pronunciada. A Palavra interpretativa de Deus
sobre o que se passou em Auschwitz é análoga à Palavra interpretativa do Pai de
Jesus sobre o acontecimento do Gólgota, ou no acontecimento da compaixão de
Deus no Mistério Pascal.
Parece-nos ser esse
silêncio do próprio Deus que o Papa Francisco quis imitar. É nele que
desejou mergulhar a fim de tomar sobre si a dor de uns e o pecado de outros,
implorando para todos o perdão divino. A caminhada silenciosa do Papa em
Auschwitz é diferente das visitas de seus outros dois antecessores, João Paulo
II e Bento XVI. Enquanto estes optaram por falar e rezar em voz alta,
Francisco decidiu calar-se com o silêncio divino, experimentando a memória que
emana do campo dos horrores e esperando que seu silêncio orante seja cheio da
esperança de que tal genocídio nunca mais se repita.
Maria
Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da
PUC-RJ.
A
teóloga é autora de Teologia e literatura - Afinidades e segredos
compartilhados (Ed. Vozes)
Copyright
2016 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste
artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem
autorização. Contato: agape@puc-rio.br>
Nenhum comentário:
Postar um comentário