O Jornal On Line O PORTA-VOZ surgiu para ser o espaço onde qualquer pessoa possa publicar seu texto, independentemente de ser escritor, jornalista ou poeta profissional. É o espaço dos famosos e dos anônimos. É o espaço de quem tem alguma coisa a dizer.

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

QUANDO FOI QUE A IGREJA CATÓLICA CONDENOU FORMALMENTE A ESCRAVIDÃO?


Por Eduardo Hoornaert



A escravidão acompanhou a maior parte da história do cristianismo.  Nos primeiros séculos a própria Igreja foi, em amplos setores, escravocrata sem que isso, aparentemente, causasse estranhamento. Prova é a escassez de documentação a respeito. É por puro acaso que sabemos, por exemplo, (pela leitura da Carta a Filemon), que o apóstolo Paulo tinha um escravo a seu serviço. Esse dado passa despercebido. Mas quando lemos hoje, em livros de história, que naqueles tempos um escravo normalmente não vivia mais que 25 anos, de tanto labutar e sofrer, compreendemos que essa situação não tinha nada de inocente.

Na era dos colonialismos modernos, a partir do século XVI, o escravismo recrudesceu de forma virulenta e se tornou sistêmico, ou seja, era uma fator fundamental da vida econômica. Também a Igreja (com suas estruturas hierárquicas estabelecidas desde séculos) não tinha como se sustentar em países como o Brasil senão por meio de trabalho escravo, como bem assinalou o Padre Nóbrega no seu famoso dilema: ou viver num Brasil com escravos ou abandonar a missão do Brasil.  Não existia paróquia ou convento sem escravos. Aproximadamente quatro  milhões de africanos foram importados ao Brasil, ao longo de quatro séculos, sem que se alguma voz eclesiástica autorizada aparecesse a condenar a escravidão formalmente. Temos, decerto, o caso dos Padres Gonçalo Leite e Miguel Garcia bem no início da missão jesuítica na Bahia, que apresentei em meu livro ‘História da Igreja no Brasil (período colonial), Vozes, Petrópolis, 5ª edição, 2008, 308), mas isso é muito pouco. Quando, na segunda parte do século XIX, abolicionistas como Luís Gama, José do Patrocínio e Joaquim Nabuco, fizeram suas campanhas contra a escravidão,  não encontraram apoio na Igreja. Tiveram de apelar para a Maçonaria, como escreveu Joaquim Nabuco. Ele mesmo  chegou a viajar a Roma, mas não foi recebido pelo papa Leão XIII. O resultado: o Brasil foi o último país do mundo a abolir oficialmente a escravidão.

O tempo passou e a Igreja continuou calada, não disse nada acerca da escravidão. Temos de esperar até o Concílio Vaticano II (1962-1965) para ver aparecer o termo ‘escravidão’ em um texto tão genêrico e tão abstrato que precisa prestar muita atenção para perceber que se trata aqui da condenação de algo que sustentou os trabalhos missionários durante séculos. No parágrafo 27 da Constituição ‘Gaudium et Spes’ se lê:

São infames as seguintes coisas: tudo quanto se opõe à vida, como seja, toda espécie de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho; em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis.

É no meio de um monte de condenações genéricas que aparece (ou melhor, fica escondido) o termo ‘escravidão’. Trata-se da única passagem em que o termo aparece num sentido econômico, social e político, pois, nas demais passagens de documentos do Vaticano II, o termo ‘escravidão’ tem um sentido metafórico. A frase, em que o termo aparece, segue o modelo dedutivo, tradicional em textos eclesiásticos: a partir de um texto bíblico, de uma afirmação dogmática ou de um princípio filosófico se entabula uma reflexão. A formulação contrasta com o modelo de leitura que o Papa João XXIII quis imprimir aos textos do Concílio, quando falou em ‘sinais dos tempos’. Ele recomendou o método indutivo: em primeiro lugar, analisar a realidade vivida e só depois, num segundo momento, investigar a Palavra de Deus acerca dela e finalmente agir (ver, julgar, agir).

Acontece que a Constituição Pastoral Gaudium et Spes é um texto híbrido. Em alguns parágrafos, segue o modelo dedutivo, em outros o indutivo. Na Introdução e nos parágrafos 4 a 10, por exemplo, o modelo indutivo prevalece, mas é logo abandonado na Primeira Parte do documento, entre os parágrafos 12 e 63. Na segunda Parte da Constituição (‘Alguns Problemas mais urgentes’), no parágrafo 46, a leitura indutiva é retomada e se estudam cinco setores da vida (família, cultura, economia, política, comunidade internacional) a partir de uma descrição da realidade vivida. É nesse bloco, que que a problemática da escravidão e de suas consequências merecia ser abordada, o que infelizmente não aconteceu. A menção à escravidão ficou no parágrafo 27, numa citação tão escondida em meio à longa lista de ‘coisas infames’ (homicídio, suicídio, aborto, eutanásia, prisões arbitrárias, deportações, prostituição, etc.) que o leitor menos avisado passa por cima dela, sem perceber seu alcance.

A questão de fundo é a seguinte: como a Igreja se afastou tanto e por tanto tempo de um dos princípios fundantes do movimento de Jesus, que é a misericórdia e a ação a favor do ser humano que chega ao último degrau da despersonalização, sendo tratado como ‘peça’ a ser vendida, comprada, explorada e utilizada até a exaustão? Como ela não revela de vez essa história com toda clareza, num documento como Gaudium et Spes? É estarrecedor ter de constatar que a alusão passageira à escravidão, no parágrafo 27 de Gaudium et Spes, constitui a primeira condenação eclesiástica da escravidão, autorizada pela mais alta instância, em toda a história da Igreja Católica. Numa referência meio escondida, redigida depois que o instituto formal da escravidão foi abolida na maioria dos países civilizados.

Será que o Concílio, para corresponder aos problemas que a humanidade enfrenta, teria de se expressar de forma mais clara sobre esse ponto? Penso que sim, pois há de se considerar que, de diversos modos, a escravidão persiste, embora de forma camuflada.Só destaco aqui a situação em que muitas mulheres brasileiras vivem atualmente.  O universo dos empregados domésticos no Brasil conta hoje com aproximadamente 600.000 pessoas, das quais 96 % são mulheres. 20 % das mulheres negras do país são empregadas domésticas. Entre a atual situação das babás e a das amas-de-leite do final do século XIX, no Rio de Janeiro, quando 92 % delas eram proibidas de alimentar seus próprios filhos, pois a ‘indústria’ das amas-de-leite estava no auge, há mais continuidade que ruptura. A babá de hoje, como a ama-de-leite do passado, cuida dos filhos dos outros e frequentemente não tem como cuidar convenientemente de seus próprios filhos. Esse é apenas um aspecto de uma realidade que continua viva em nossos dias. É urgente voltar à leitura bíblica em torno da escravidão e perceber como ela foi distorcida ao longo dos tempos. Nesse sentido, você pode consultar um trabalho meu já antigo, dos anos 1980: ‘A leitura da Bíblia em relação à escravidão negra no Brasil-Colônia: um Inventário’ (Estudos bíblicos 17, Vozes, 1988, 11-30).

 Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.

www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/

Nenhum comentário:

Postar um comentário