Por Eduardo Hoornaert
A
escravidão acompanhou a maior parte da história do cristianismo. Nos
primeiros séculos a própria Igreja
foi, em amplos setores, escravocrata sem que isso, aparentemente, causasse
estranhamento. Prova é a escassez de documentação a respeito. É por puro acaso
que sabemos, por exemplo, (pela leitura
da Carta a Filemon), que o apóstolo Paulo tinha um escravo a seu serviço. Esse
dado passa despercebido. Mas quando lemos hoje, em livros de história, que
naqueles tempos um escravo normalmente não vivia mais que 25 anos, de tanto
labutar e sofrer, compreendemos que essa situação não tinha nada de inocente.
Na era
dos colonialismos modernos, a partir do século XVI, o escravismo recrudesceu de
forma virulenta e se tornou sistêmico, ou seja, era uma fator fundamental da
vida econômica. Também a Igreja (com suas estruturas hierárquicas estabelecidas
desde séculos) não tinha como se sustentar em países como o Brasil senão por
meio de trabalho escravo, como bem assinalou o Padre Nóbrega no seu famoso
dilema: ou viver num Brasil com escravos ou abandonar a missão do Brasil.
Não existia paróquia ou convento sem escravos. Aproximadamente quatro milhões de africanos foram importados ao Brasil, ao longo de quatro
séculos, sem que se alguma voz eclesiástica autorizada aparecesse a condenar a
escravidão formalmente. Temos, decerto, o caso dos Padres Gonçalo Leite e
Miguel Garcia bem no início da missão jesuítica na Bahia, que apresentei em meu
livro ‘História da Igreja no Brasil (período colonial), Vozes, Petrópolis, 5ª
edição, 2008, 308), mas isso é muito pouco. Quando, na segunda parte do século XIX,
abolicionistas como Luís Gama, José do Patrocínio e Joaquim Nabuco, fizeram
suas campanhas contra a escravidão, não encontraram apoio na Igreja.
Tiveram de apelar para a Maçonaria, como escreveu Joaquim Nabuco. Ele
mesmo chegou a viajar a Roma, mas não foi recebido pelo papa Leão XIII. O
resultado: o Brasil foi o último país do mundo a abolir oficialmente a
escravidão.
O
tempo passou e a Igreja continuou calada, não disse nada acerca da escravidão.
Temos de esperar até o Concílio Vaticano II (1962-1965) para ver aparecer o
termo ‘escravidão’ em um texto tão genêrico e tão abstrato que precisa prestar
muita atenção para perceber que se trata aqui da condenação de algo que
sustentou os trabalhos missionários durante séculos. No parágrafo 27 da Constituição ‘Gaudium et Spes’ se lê:
São infames as seguintes coisas: tudo quanto se
opõe à vida, como seja, toda espécie de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia
e suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as
mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as
próprias consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as
condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a
escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e jovens; e também
as condições degradantes de trabalho; em que os operários são tratados como
meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis.
É no meio de um monte de condenações
genéricas que aparece (ou melhor, fica escondido) o termo ‘escravidão’.
Trata-se da única passagem em que o termo aparece num sentido econômico, social
e político, pois, nas demais passagens de documentos do Vaticano II, o termo
‘escravidão’ tem um sentido metafórico. A frase, em que o termo aparece, segue
o modelo dedutivo, tradicional em textos eclesiásticos: a partir de
um texto bíblico, de uma afirmação dogmática ou de um princípio filosófico se
entabula uma reflexão. A formulação contrasta com o modelo de leitura que o
Papa João XXIII quis imprimir aos textos do Concílio, quando falou em ‘sinais
dos tempos’. Ele recomendou o método indutivo: em primeiro lugar,
analisar a realidade vivida e só depois, num segundo momento, investigar a
Palavra de Deus acerca dela e finalmente agir (ver, julgar, agir).
Acontece que a Constituição Pastoral
Gaudium et Spes é um texto híbrido. Em alguns parágrafos, segue o modelo
dedutivo, em outros o indutivo. Na Introdução e nos parágrafos 4 a 10, por
exemplo, o modelo indutivo prevalece, mas é logo abandonado na Primeira Parte
do documento, entre os parágrafos 12 e 63. Na segunda Parte da Constituição
(‘Alguns Problemas mais urgentes’), no parágrafo 46, a leitura indutiva é
retomada e se estudam cinco setores da vida (família, cultura, economia,
política, comunidade internacional) a partir de uma descrição da realidade
vivida. É nesse bloco, que que a problemática da escravidão e de suas
consequências merecia ser abordada, o que infelizmente não aconteceu. A menção
à escravidão ficou no parágrafo 27, numa citação tão escondida em meio à longa lista de ‘coisas
infames’ (homicídio, suicídio, aborto, eutanásia, prisões arbitrárias,
deportações, prostituição, etc.) que o leitor menos avisado passa por cima
dela, sem perceber seu alcance.
A
questão de fundo é a seguinte: como a Igreja se afastou tanto e por tanto tempo
de um dos princípios fundantes do movimento de Jesus, que é a misericórdia e a
ação a favor do ser humano que chega ao último degrau da despersonalização,
sendo tratado como ‘peça’ a ser vendida, comprada, explorada e utilizada até a
exaustão? Como ela não revela de vez essa história com toda clareza, num
documento como Gaudium et Spes? É estarrecedor ter de constatar que a alusão
passageira à escravidão, no parágrafo 27 de Gaudium et Spes, constitui a
primeira condenação eclesiástica da escravidão, autorizada pela mais alta
instância, em toda a história da Igreja Católica. Numa referência meio
escondida, redigida depois que o instituto formal da escravidão foi abolida na
maioria dos países civilizados.
Será que o
Concílio, para corresponder aos problemas que a humanidade enfrenta, teria de
se expressar de forma mais clara sobre esse ponto? Penso que sim, pois há de se
considerar que, de diversos modos, a escravidão persiste, embora de forma
camuflada.Só destaco aqui a situação em que muitas
mulheres brasileiras vivem atualmente. O universo dos empregados
domésticos no Brasil conta hoje com aproximadamente 600.000 pessoas, das quais
96 % são mulheres. 20 % das mulheres negras do país são empregadas domésticas.
Entre a atual situação das babás e a das amas-de-leite do final do século XIX,
no Rio de Janeiro, quando 92 % delas eram proibidas de alimentar seus próprios
filhos, pois a ‘indústria’ das amas-de-leite estava no auge, há mais
continuidade que ruptura. A babá de hoje, como a ama-de-leite do passado, cuida
dos filhos dos outros e frequentemente não tem como cuidar convenientemente de
seus próprios filhos. Esse é apenas um aspecto de uma realidade que continua
viva em nossos dias. É urgente voltar à leitura bíblica em torno da escravidão
e perceber como ela foi distorcida ao longo dos tempos. Nesse sentido, você
pode consultar um trabalho meu já antigo, dos anos 1980: ‘A leitura da Bíblia
em relação à escravidão negra no Brasil-Colônia: um Inventário’ (Estudos
bíblicos 17, Vozes, 1988, 11-30).
Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.
www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/
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