Por Ivone Gebara
Parece tão simples
discorrer sobre a fé se apenas repetirmos o Catecismo que nos foi ensinado.
A gente decorava as
verdades da fé e discorria sobre elas como aula bem aprendida.
A lembrança da fé como
virtude teologal, como força dada por Deus para sustentar nossa vida diária na
linha do bem e da justiça fez parte da formação religiosa de muitas pessoas.
A fé tinha apenas caráter
construtivo positivo, estava só na direção do bem a todas as pessoas.
Entretanto, quando a
pergunta vem depois de muitos anos vividos as respostas do Catecismo, embora
conservem sua pertinência, já não fazem eco de nossa verdade, ou melhor, da
verdade de minha fé nos limites de meu hoje.
O que é mesmo fé para mim?
Já não tenho uma resposta ou uma definição precisa. Já não falo dela como algo
seguro, coerente e claro. Já não sei determinar seus limites nem sua
profundidade ou sua clara expressão.
Constato apenas que esse
algo que chamo ou que chamamos fé habita no claro escuro de minha vida, na
mistura e na contradição que sou e que vivo. Habita o meu cotidiano, colada à
minha pele e misturada às minhas entranhas.
A fé ou a adesão que faço
a valores e pessoas não se expressa apenas nas coisas positivas e bonitas que
desejo que habitem nosso mundo.
Não vem de um Cristianismo
aprendido, aquele que tinha respostas a todas as perguntas, embora as respostas
fossem incompletas e parciais.
Mas, a fé hoje para mim é
parecida com a constatação da miséria e da grandeza humana, fé como acolhida da
desproporção que nos habita, que nos faz ser sempre maiores e menores do que
pensamos ser.
Fé expressa de diferentes
maneiras em tradições milenares de sabedoria humana que nos ajudam a acolher a
inconstância e a constância variada e criativa de nossa história.
Vem-me ao espírito um
texto do Evangelho em que Jesus denuncia aqueles que enxergam a palha no olho
do outro e não percebem a trave que está em seu próprio olho.
Nessa linha, tenho
percebido nossa maior ou menor cumplicidade na construção da violência e da
crueldade no mundo, sobretudo quando apontamos em primeiro lugar para a
irresponsabilidade e a injustiça dos outros.
É quase espontâneo em nós
descobrir primeiro os culpados ou os inimigos que de certa forma perturbam a
justiça social que imaginávamos.
Aqueles que não são como
eu ou não pensam como eu me incomodam.
Até certo ponto essa
atitude nos isenta da responsabilidade social pessoal e da apreensão do
pluralismo que nos caracteriza. É comum que nos acusemos mutuamente de
traidores ou de egoístas quando nosso bem próprio ou nossas ideologias estão em
jogo.
A fé tem a ver com a
acolhida dessa massa humana misturada da qual somos parte.
Tem a ver com a limitada
realidade de nosso corpo marcado pela complexidade de sua constituição.
A fé é um ingrediente
fundamental na complexa história de nossa vida.
Está presente na mistura
de tudo com tudo… Na farinha e no fermento, na massa sovada, descansada e
finalmente levada ao forno. Está no pão partilhado, no pão falsificado, no pão
roubado. Está na lenha que se acendeu e assou o pão. Está no comércio do pão e
em todos que o comem.
Creio em nossa
responsabilidade coletiva na manutenção ou na tentativa de sanar o desejo de
tirar proveito das pequenas e grandes coisas.
Os exemplos não faltam nas
diferentes instâncias da vida familiar e social. Quem nunca se aproveitou de
uma situação em beneficio próprio? Quem nunca atirou pedras sobre os outros,
sabendo-se merecedor de outras tantas? Quem nunca aceitou glórias e benefícios
mesmo sabendo-se pouco merecedor? Quem nunca mentiu para sair-se bem ou para
ocultar uma situação embaraçosa? Quem nunca usou do nome de Deus para
esconder-se de si mesmo e dos outros?
Somos trevas e luz… A fé
está em nossa carne, esta carne que se entrega às vezes às pequenas e grandes
corrupções e às vezes a grandes e pequenas causas.
Move-se de muitas maneiras
dentro de nós mesmos. No fundo, nós e nossa fé somos um. Marcados por nossa
história, nossos medos, nossas paixões e nossos interesses.
Além disso, ela é também o
grito fundo que me acorda do torpor egoísta e me faz perguntar pelo outro, por
meu vizinho, por minha filha, pela criança caída na estrada…
Outras vezes está na pura
beleza da aurora de um novo dia, ou no entardecer luminoso de certos dias de
outono ou num sorriso ou num olhar que desmancha nosso coração de prazer.
Por isso espero… Que
o coração humano não seja soberbo e ganancioso. Que nos eduquemos para não
desequilibrar a instável balança de nossa vida, para não destruir a beleza que
nos rodeia, para não ficar indiferente à dor alheia, para não sermos os únicos
a participar do banquete de maravilhas que a Terra azul nos oferece.
Minha fé e minha esperança
se encontram, se dão as mãos, se assemelham, se misturam, se atraem, se
conflitam, vivem uma da outra.
O que espero não são os
novos céus e nova terra. O que espero não é a visão beatífica e a vitória total
do bem… O que espero não é a Justiça total. Isto me deixaria até embaraçada,
pois não sei qual seria esse Bem maior ou essa Justiça total imaginada por
tantos.
Prefiro evitar os
totalitarismos do bem, assim como tentamos evitar os totalitarismos do mal. Sei
que ‘céus’, ‘terra sem males’, ‘bem absoluto’ são imagens tecidas de culturas
passadas.
Sei que são linguagens a
serem sempre decifradas de novo, visto que nutriram e nutrem os segredos de
vida e as esperanças de muitas e de muitos.
Piso no chão, nas ruas
empoeiradas, respiro a poluição, ouço lamentos e gargalhadas de prazer. Como
agrotóxicos e bebo água imprópria para o consumo. Caio em armadilhas
inesperadas. Tenho frio e muito calor. Tenho fome e excessos de gorduras. Vivo
nesta carne e é dela que espero algo porque é nela e dela que vivo. Esta carne
que somos nós, corpo da terra, animal, vegetal, marinha, humana é o lugar de
minha esperança.
Esperança em pequenas
coisas, em pequenos gestos capazes de revolver a terra seca que nos tornamos,
de fazer voltar carne e músculos e ternura nos corações de pedra que
construímos.
Crianças saciadas,
gostando de ler e escrever, alfabetizadas e letradas. Adultos vivendo para além
da ganância e da competição… Fim da produção de armamentos… E há ainda tantas
outras boas coisas!
Será que dizendo isso
estou fugindo do concreto, tirando os pés do chão, levitando nos ares? Creio
que um pouco, sim… Esperar para além de toda a esperança é próprio dos seres
humanos.
O impossível inclui o
possível. E, a poesia é uma forma de esperar para além das esperanças, de
comparar o azul do céu aos olhos da amada, o vento balançando as folhas do
coqueiro aos cabelos da morena, o lobo e o cordeiro comendo no mesmo prato.
Sem essa dose de esperança
louca para além das esperanças, a humanidade deixaria de ter sonhos e de fazer
poesia.
A humanidade deixaria de
ter fé na sua capacidade de destruir as armas de guerra e torná-las pás e
arados para preparar a nova semeadura, deixaria de apostar de novo no amor e na
justiça apesar dos muitos enganos.
Sim eu creio, tenho fé e
espero… No pão partilhado de cada dia, na acolhida ao estrangeiro, no cuidado
ao órfão e ao velho, ao drogado e ao alcoólatra, às vítimas de tantas guerras…
Eu creio, apesar do real
escurecido que meus olhos veem hoje… Espero que as portas de alguns juízes
iníquos se abrirão para atender as viúvas, que alguns governantes abraçarão o
direito e a justiça e algo será um pouco melhor nas relações humanas.
Eu creio e espero que o
calafrio que atravessa meu corpo quando capto a distância entre o que sou e o
que faço me convidem sempre de novo a renovar a difícil unidade entre eu e eu
mesma.
Calafrio incômodo e
salutar ao mesmo tempo, pois abre a possibilidade da conversão, do aproximar-se
de novo, do acreditar uma vez mais que o coração humano é apenas um frágil
músculo de carne.
Os nomes que essas
experiências recebem segundo as diferentes tradições religiosas e filosóficas
não têm muita importância…
Os dogmas, as teorias, as
grandes sínteses do pensamento, as grandes “revelações divinas” compiladas em
livros sagrados não poderão nos ensinar nada se nosso coração não for capaz de
enternecer-se diante de um homem faminto, de uma criança chorando de abandono,
de uma mulher violada, de um estrangeiro buscando um lugar para viver.
O provisório da vida é o
chão que pisamos e, é nele, que a fé e a esperança crescem. Por isso, a fé e a
esperança nas coisas pequenas e aparentemente insignificantes nutrem a minha
vida, fazem minha vida, sustentam minha vida.
Ivone Gebara é filósofa, religiosa e teóloga. Ela lecionou durante quase 17 anos no Instituto Teológico do Recife – ITER. Dedica-se a escrever e a ministrar cursos e palestras, em diversos países do mundo, sobre hermenêuticas feministas, novas referências éticas e antropológicas e os fundamentos filosóficos e teológicos do discurso religioso. Entre suas obras publicadas estão Compartilhar os pães e os peixes, O cristianismo, a teologia e teologia feminista (2008), O que é Cristianismo (2008), O que é Teologia Feminista (2007), As águas do meu poço. Reflexões sobre experiências de liberdade (2005), entre outras.
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