por Maria
Clara Lucchetti Bingemer
A freirinha albanesa enrugada e encurvada que dedicou a maior parte de
sua vida a atender doentes e moribundos nas ruas de Calcutá foi canonizada pelo
Papa Francisco. Madre Teresa agora tem seu nome inscrito no livro dos
santos e os católicos do mundo inteiro são convidados a venerá-la como santa.
Diante de milhares de pessoas na praça de São
Pedro, no Vaticano, o papa Francisco afirmou que Teresa "se ajoelhando
diante dos que foram deixados para morrer às margens das estradas, enxergava
neles a dignidade dada por Deus". Ele disse ainda que a madre "se fez
ouvir pelas potências do mundo, para que reconheçam sua culpa pelos
crimes da pobreza que criaram".
No entanto, as opiniões sobre Madre Teresa e sua
santidade estão longe de ser unânimes. Muitos a criticam fortemente,
declarando-a conservadora, obscurantista e assistencialista. Acusam-na de
ser amiga de ditadores como Duvalier, do Haiti, de quem aceitou gordas doações
para sua obra. Escandalizam-se pelo fato de ser radicalmente contra o
aborto em qualquer circunstância, a contracepção e o divórcio.
Igualmente não são poucos os comentários negativos
sobre as condições primitivas e arcaicas que muitas vezes apresentavam seus
hospitais e casas de atendimento a moribundos. Acusam-na de glorificar o
sofrimento, ser masoquista e não dar aos doentes e pobres que acolhia os
tratamentos mais avançados e o acesso às últimas descobertas da ciência para
aliviar o sofrimento deles.
Longe de nós afirmar que tudo isso não tenha um
fundo de verdade. Como religiosa que recebeu uma formação de severa
disciplina, membro de uma geração pré-conciliar, certamente Madre Teresa não
era um modelo de religiosa progressista, adequada ao ritmo célere no qual andam
a ciência e a técnica hoje em dia. Aliás, sua preocupação não devia
passar muito por aí.
Narram suas biografias e cartas pessoais a
diretores espirituais que ao sentir o chamado de Deus para dedicar-se
inteiramente aos últimos, aos mais pobres entre os mais pobres, sentiu não
poder negar-se. Como negaria o sim a este chamado àquele que era o amor
mais caro de seu coração, por quem deixara tudo, seu futuro, a possibilidade de
constituir família, de ser mãe.
As ruas de Calcutá passaram a ser sua morada e
lugar de trabalho. E a situação terrível em que ali viviam os pobres,
doentes e moribundos, passou a ser sua prioridade. A alguns simplesmente levava
para que tivessem uma morte decente, com carinho e cuidado. Em lugar de
morrer na rua, morreriam cercados do sorriso e do toque das mãos de Madre
Teresa e das religiosas membros de sua congregação e dos voluntários que a
ajudavam. Alguns recusavam sua ajuda e a agrediam até fisicamente. A
todos ela continuava a dar seu sorriso e seu desejo de ajudar.
Mulher em uma instituição onde o poder e a autoridade estão nas mãos dos
homens, religiosa em um mundo secularizado e crítico, Teresa de Calcutá
prosseguiu seu caminho com uma firmeza e um sorriso radiantes e
incontestáveis. Ninguém podia suspeitar, porém, o que acontecia no
interior daquela incansável servidora dos pobres, que passava seu dia ajoelhada
aos pés dos sofredores, sem recuar um milímetro na missão que lhe fora
confiada.
Hoje, temos acesso ao conjunto das cartas escritas a seus diretores
espirituais, a quem ela abria o coração. E por esses relatos sabemos que
após as intensas graças e consolações do início de sua vocação e vida
consagrada, viveu mais de cinquenta anos em trevas espessas, sem sorver uma
gota de consolação espiritual ou repouso do espírito. Cada dia era uma
dura jornada na aridez e na secura espiritual mais profunda, chegando até,
algumas vezes, a duvidar da existência de Deus, como escreve em um de seus
diários.
A quem a questionava sobre se o seu trabalho não lhe parecia assistencialista,
devendo voltar todos os recursos que recebia, e a energia e o ardor missionário
que a habitavam para uma ação mais transformadora das estruturas, ela respondia
candidamente e sem agressividade. Dizia que também concordava, mas que
enquanto isso não acontecia as pessoas tinham que viver. Seu trabalho era
uma gota no oceano e ela sabia disso. Mas essa gota ela a derramou até o
fim de seus dias, mesmo não vendo efeitos a longo prazo ou sucessos
visíveis.
Os críticos da nova santa vão ter que gastar muita tinta se nela buscarem
sofisticação intelectual, rigor científico ou outros atributos modernos.
A freira enrugada e encurvada move-se por outras forças: o amor de Deus que lhe
incendiava o coração, o amor aos sofredores que enchia seus dias.
Atirava-se nesta voragem incandescente e ali entregava sua vida qual vela que
queima até consumir-se por completo.
Difícil compreender para mentalidades secularizadas como as nossas? Sem
dúvida. Escandaloso para uma sociedade que só valoriza o sucesso e a
visibilidade a qualquer preço? Certamente. Não se pede que
entendamos. Só se pede um pouco de atenção e reta intenção para
compreender que olhar para Madre Teresa é estar diante do mistério.
Mistério de Deus, que ultrapassa nossa compreensão e rompe nossos
parâmetros.
Conservadores
ou assistencialistas há muitos. Não sei se há tantos que conjuguem essas
posturas com uma indiscutível e heróica caridade. Madre Teresa incomoda e, como
diz o papa, denuncia com sua incansável doação aos mais pobres os sistemas iníquos
que produzem a pobreza que os vitima.
Que ela rogue por nós, que nos debatemos em levianas e inúteis
discussões, enquanto deixamos os descartados pela sociedade de consumo morrerem
à nossa porta e sob nossos olhos.
Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ.
Juntamente com Paulo Fernando Carneiro de Andrade organizou o livro Fé, justiça e paz –
O testemunho de Dorothy Day (editoras Paulinas e PUC-/Rio).
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