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segunda-feira, 12 de setembro de 2016

TERESA DE CALCUTÁ: O HEROISMO DA CARIDADE NA NOITE DA ALMA

por  Maria Clara Lucchetti Bingemer




         A freirinha albanesa enrugada e encurvada que dedicou a maior parte  de sua vida a atender doentes e moribundos nas ruas de Calcutá foi canonizada pelo Papa Francisco.  Madre Teresa agora tem seu nome inscrito no livro dos santos e os católicos do mundo inteiro são convidados a venerá-la como santa.

Diante de milhares de pessoas na praça de São Pedro, no Vaticano, o papa Francisco afirmou que Teresa "se ajoelhando diante dos que foram deixados para morrer às margens das estradas, enxergava neles a dignidade dada por Deus". Ele disse ainda que a madre "se fez ouvir pelas potências do mundo, para que  reconheçam sua culpa pelos crimes da pobreza que criaram".

No entanto, as opiniões sobre Madre Teresa e sua santidade estão longe de ser unânimes.  Muitos a criticam fortemente, declarando-a conservadora, obscurantista e assistencialista.  Acusam-na de ser amiga de ditadores como Duvalier, do Haiti, de quem aceitou gordas doações para sua obra. Escandalizam-se pelo fato de ser  radicalmente contra o aborto em qualquer circunstância, a contracepção e o divórcio.

Igualmente não são poucos os comentários negativos sobre as condições primitivas e arcaicas que muitas vezes apresentavam seus hospitais e casas de atendimento a moribundos.  Acusam-na de glorificar o sofrimento, ser masoquista e não dar aos doentes e pobres que acolhia os tratamentos mais avançados e o acesso às últimas descobertas da ciência para aliviar o sofrimento deles.

Longe de nós afirmar que tudo isso não tenha um fundo de verdade.  Como religiosa que recebeu uma formação de severa disciplina, membro de uma geração pré-conciliar, certamente Madre Teresa não era um modelo de religiosa progressista, adequada ao ritmo célere no qual andam a ciência e a técnica hoje em dia.  Aliás, sua preocupação não devia passar muito por aí. 

Narram suas biografias e cartas pessoais a diretores espirituais que ao sentir o chamado de Deus para dedicar-se inteiramente aos últimos, aos mais pobres entre os mais pobres, sentiu não poder negar-se.  Como negaria o sim a este chamado àquele que era o amor mais caro de seu coração, por quem deixara tudo, seu futuro, a possibilidade de constituir família, de ser mãe.

As ruas de Calcutá passaram a ser sua morada e lugar de trabalho.  E a situação terrível em que ali viviam os pobres, doentes e moribundos, passou a ser sua prioridade. A alguns simplesmente levava para que tivessem uma morte decente, com carinho e cuidado.  Em lugar de morrer na rua, morreriam cercados do sorriso e do toque das mãos de Madre Teresa e das religiosas membros de sua congregação e dos voluntários que a ajudavam. Alguns recusavam sua ajuda e a agrediam até fisicamente.  A todos ela continuava a dar seu sorriso e seu desejo de ajudar.

         Mulher em uma instituição onde o poder e a autoridade estão nas mãos dos homens, religiosa em um mundo secularizado e crítico, Teresa de Calcutá prosseguiu seu caminho com uma firmeza e um sorriso radiantes e incontestáveis.  Ninguém podia suspeitar, porém, o que acontecia no interior daquela incansável servidora dos pobres, que passava seu dia ajoelhada aos pés dos sofredores, sem recuar um milímetro na missão que lhe fora confiada.

         Hoje, temos acesso ao conjunto das cartas escritas a seus diretores espirituais, a quem ela abria o coração.  E por esses relatos sabemos que após as intensas graças e consolações do início de sua vocação e vida consagrada, viveu mais de cinquenta anos em trevas espessas, sem sorver uma gota de consolação espiritual ou repouso do espírito.  Cada dia era uma dura jornada na aridez e na secura espiritual mais profunda, chegando até, algumas vezes, a duvidar da existência de Deus, como escreve em um de seus diários. 

         A quem a questionava sobre se o seu trabalho não lhe parecia assistencialista, devendo voltar todos os recursos que recebia, e a energia e o ardor missionário que a habitavam para uma ação mais transformadora das estruturas, ela respondia candidamente e sem agressividade.  Dizia que também concordava, mas que enquanto isso não acontecia as pessoas tinham que viver.  Seu trabalho era uma gota no oceano e ela sabia disso.  Mas essa gota ela a derramou até o fim de seus dias, mesmo não vendo efeitos a longo prazo ou sucessos visíveis. 

         Os críticos da nova santa vão ter que gastar muita tinta se nela buscarem sofisticação intelectual, rigor científico ou outros atributos modernos.  A freira enrugada e encurvada move-se por outras forças: o amor de Deus que lhe incendiava o coração, o amor aos sofredores que enchia seus dias.  Atirava-se nesta voragem incandescente e ali entregava sua vida qual vela que queima até consumir-se por completo. 

         Difícil compreender para mentalidades secularizadas como as nossas? Sem dúvida.  Escandaloso para uma sociedade que só valoriza o sucesso e a visibilidade a qualquer preço?  Certamente.  Não se pede que entendamos.  Só se pede um pouco de atenção e reta intenção para compreender que olhar para Madre Teresa é estar diante do mistério.  Mistério de Deus, que ultrapassa nossa compreensão e rompe nossos parâmetros. 

            Conservadores ou assistencialistas há muitos.  Não sei se há tantos que conjuguem essas posturas com uma indiscutível e heróica caridade. Madre Teresa incomoda e, como diz o papa, denuncia com sua incansável doação aos mais pobres os sistemas iníquos que produzem a pobreza que os vitima. 

    Que ela rogue por nós, que nos debatemos em levianas e inúteis discussões, enquanto deixamos os descartados pela sociedade de consumo morrerem à nossa porta e sob nossos olhos. 

 Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ. 

Juntamente com Paulo Fernando Carneiro de Andrade organizou o livro Fé, justiça e paz – O testemunho de Dorothy Day (editoras Paulinas e PUC-/Rio).

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