Por Maria Clara Lucchetti Bingemer
Os homens gostam, às vezes, de criticar certas características das
mulheres. Ora é a curiosidade, ora a dificuldade em ficar caladas, ora a
emoção que ultrapassa a razão. Há outra característica feminina
criticada: a teimosia. Mas creio que essa tem uma certa ambiguidade, pois
nem sempre pode ser considerada algo apenas negativo.
Assim parece ao menos ao Papa Francisco, que no último dia 27 de agosto
proclamou beata Maria Antonia de Paz y Figueroa, ou Maria Antonia de San
José, mais conhecida como Mama Antula. Argentina de Santiago del Estero,
começou a trabalhar desde muito jovem com os jesuítas, ajudava-os na
organização de exercícios espirituais.
Não era freira nem pertencia a nenhuma congregação. Era apenas uma mulher
de profunda fé e um enorme amor pelos exercícios espirituais, que
constatou fazerem bem a muita gente. Por isso, reuniu um grupo de jovens
mulheres que viviam em comum, rezavam e praticavam a caridade e ajudavam os
jesuítas em seu trabalho apostólico. Eram chamadas de “beatas” naquele
tempo. Hoje, são chamadas de leigas consagradas.
A santa teimosia de Maria Antonia, aliás Mama Antula, começou a destacar-se em
1767, com a expulsão dos jesuítas da Argentina. Saíram os jesuítas, mas não os
exercícios espirituais, que continuaram a ser fiel e continuadamente pregados
por Mama Antula. Ajudada por um padre mercedário que assumia as tarefas
próprias do sacerdote, tal como celebrar missa e confessar, ela continuava se
ocupando, juntamente com suas companheiras, da organização de exercícios em
todos os seus aspectos práticos, como conseguir um lugar, provisões e recursos,
para que mais e mais pessoas fizessem aquela experiência que tanto a havia
ajudado.
Sua cidade ficou pequena para sua intensa atividade pastoral e spiritual, e ela
partiu para outras cidades da Argentina. Foi, então, que começaram a
chamá-la de Mama Antula, pois viam nela uma espécie de maternidade
espiritual. Viajava caminhando descalça e pedindo esmolas. E assim
multiplicavam-se os candidatos aos exercícios que organizava, às
centenas.
Como não podia deixar de ser, Maria Antonia sofreu desconfiança, rejeição por
parte de várias pessoas, inclusive autoridades eclesiásticas. Em Buenos
Aires foi primeiro chamada de louca, fanática e bruxa. Mas logo o mesmo
bispo que a olhava com desconfiança autorizou seu trabalho e se converteu em
grande admirador. O vice-rei a proibiu de continuar suas atividades,
porém ela continuava a realizá-las clandestinamente com cada vez mais adesões,
inclusive agora de pessoas da nobreza e famílias abastadas.
A teimosia dessa mulher transpunha todos os obstáculos. Verdadeira
peregrina da fé, seguia aquilo que considerava ser o chamado de Deus para sua
vida, não se importando se a realidade parecia contradizer todas as suas
pretensões e desejos. Caminhou o país inteiro sozinha ou com algumas de
suas companheiras. Esse peregrinar físico era também, nela, um símbolo da
peregrinação espiritual.
Quando os jesuítas foram expulsos da Argentina, declarados perigosos pelo rei
da Espanha, ela continuou sua obra, sabendo que poderia ser condenada por
rebeldia. Sua teimosia foi ainda mais extraordinária quando a Companhia
de Jesus foi suprimida pelo Papa Clemente XIV. Ela não queria contradizer o
papa, mas não podia deixar de viver sua vocação, que era continuar a obra dos
jesuítas e propagar os exercícios espirituais.
Enquanto trabalhava incansavelmente, criava uma família espiritual. Os
jesuítas eram seus irmãos, um jovem exercitante irmão de um jesuíta, seu
filho. Às mulheres que a acompanhavam chamava de “irmãs de um mesmo
parto”. E todos, ela, eles e elas, eram filhos de uma mesma mãe, a
Companhia de Jesus. Ela era reconhecida como mãe.
Sua aventura espiritual, filha de uma teimosia inquebrantável, não é por ela
realizada de forma individual, mas como líder de uma comunidade espiritual.
Manteve sempre a esperança sua e a dos que lhe eram próximos, esperando o
retorno dos jesuítas e o renascer da ordem extinta pelo papa. E os grupos de
jesuítas que durante o tempo da supressão continuavam clandestinamente a vida
consagrada recebiam os ecos de sua atuação na ponta sul do planeta e isso era
para eles uma esperança.
Graças à sua teimosia criativa e à força inquebrantável de seu espírito, os
jesuítas, ao retornarem, encontraram o trabalho de pregação dos exercícios mais
vivo e dinâmico do que nunca. Seu ministério havia deixado de
restringir-se apenas ao âmbito da Companhia e se tornara universal, aberto a
toda a Igreja.
Graças à teimosia de uma mulher, a espiritualidade inaciana não foi expulsa do
vice-reinado do Rio de la Plata juntamente com a Companhia. As cartas que
Mama Antula escrevia aos jesuítas exilados na Europa também mantiveram viva a
memória da ordem supressa e ainda dispersa pelo mundo.
Portanto, cuidado quando uma mulher se apaixona por uma causa ou mete na cabeça
que tem que realizar alguma coisa. Sua força é inquebrantável, nenhum perigo
a amedronta e pode chegar muito longe, onde às vezes os homens desanimariam.
A beatificação desta extraordinária mulher argentina diz muito sobre a
capacidade e a qualidade humana das mulheres quando se dispõem a fazer
acontecer no mundo o Reino de Deus.
Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora
do Departamento de Teologia da PUC-Rio.
A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e
da compaixão" (Edusc)
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