por Marcelo Barros
A
credibilidade das Igrejas e de toda religião está cada vez mais ligada ao
compromisso dessas contribuírem com a justiça e a paz no mundo. Na América
Latina, a relação entre espiritualidade ecumênica e opção pela vida e
libertação dos empobrecidos foi proclamada oficialmente pela 2ª Conferência
geral dos bispos católicos latino-americanos, reunida em Medellín, Colômbia em
1968. No próximo ano, celebraremos os 50 anos da conferência de Medellín que
significou uma espécie de nascimento novo para a Igreja Católica na América
Latina, já que aprofundou várias propostas para um cristianismo de rosto latino-americano
e caribenho.
Durante o
mês de setembro em vários lugares do continente, cristãos e estudiosos do tema
se perguntam que herança permanece da 2ª conferência geral do episcopado
latino-americano. Será que os bispos e padres da Igreja Católica, hoje,
continuam na mesma estrada proposta pelos bispos reunidos em Medellín (1968)
Mais do que tudo, uma grande parte da humanidade quer saber se, atualmente,
pode contar com as forças vivas da Igreja Católica e de sua hierarquia, como
contou a partir de Medellín, até meados da década de 70, para, a partir dos
movimentos sociais, organizar juntos um mundo mais irmão e justo.
Medellín
foi um acontecimento de certa forma surpreendente e pioneiro. A sua preparação
não previa de modo algum os frutos que, no final, nos deixou. É certo que, em
1968, o clima de abertura e diálogo com a humanidade que o papa João XXIII
ainda não tinha sido totalmente cerceado e reprimido pela Cúria Romana. O
espírito de liberdade e criatividade, suscitado pelo Concilio Vaticano II,
ainda influenciava bispos, padres e
comunidades cristãs. Entretanto, a visão da maior parte dos bispos não tinha
sido transformada.
A
conjuntura no continente era difícil e conflitiva. Vários dos nossos países,
como o Brasil, já estavam imersos em uma cruel ditadura militar. No ano
anterior a Medellín (1967), na Colômbia, os militares assassinaram o sacerdote
revolucionário Camilo Torres. Na Bolívia, a CIA matou o comandante Che Guevara.
Em todo o continente, cresciam os grupos cristãos, convencidos de que o desafio
maior para os nossos povos não era o mero desenvolvimento e sim a libertação
dos povos oprimidos. O desenvolvimento proposto acabava sempre sem justiça. O
Evangelho apresenta o reino de Deus, não como o desenvolvimento do sistema do
mundo e sim como ruptura e libertação de tudo o que oprime o ser humano.
Entretanto, na maioria dos países, só um ou outro bispo, como no Brasil, Dom
Hélder Câmara e alguns outros denunciavam as torturas e enfrentavam diretamente
a ira dos militares no governo. A maioria dos bispos e padres preferia calar. E
o papa pregava que os cristãos devem buscar uma evolução das coisas e não
revolução. Medellín começou sob este clima. Só à medida que as discussões se
aprofundaram, o ambiente foi se abrindo e os bispos trataram das graves
questões do continente, da forma mais aberta e lúcida que se poderia imaginar.
Certamente, vários bispos votaram sem se dar conta das consequências de tudo o
que tinham afirmado e assinado.
A
conferência de Medellín foi a primeira vez em que uma grande assembleia
eclesial se interessava por um tema que não era só interno à vida da Igreja. O
título era “A Igreja no mundo em transformação”, mas a perspectiva era projetar
uma visão integral do ser humano, compreendido a partir de sua dimensão social
e da sua vocação para a libertação. De fato, a conferência conseguiu realmente
falar ao mundo. Produziu 16 documentos de conclusão e todos foram escritos no
método de partir da realidade (Ver), confrontar esta situação levantada com a
Palavra de Deus e com o projeto divino para o mundo (Julgar), concluindo por
sugerir pistas de ação e de atividades para transformar a realidade (Agir). Os
primeiros documentos versavam sobre Justiça, Paz, Família e não sobre temas
eclesiásticos.
Medellín
foi uma conferência pioneira e propôs transformações na identidade da fé e da
pertença eclesial. Entretanto, não ousou mexer nas estruturas de sempre. O
resultado disso é que esta estrutura se encarregou de neutralizar e apagar a
mensagem profética da conferência. Tanto que hoje somos obrigados a nos
perguntar que herança ficou de Medellín na Igreja de Aparecida.
O
milagre divino é que, apesar de todas as dificuldades da Igreja e do mundo,
Medellín deixou um espírito que não morreu. Embora restrito a minorias
proféticas, o apelo dos bispos na conferência ressoa até hoje: “Que
se apresente cada vez mais nítido, o rosto de uma Igreja autenticamente pobre,
missionária e pascal, desligada de todo o poder temporal e corajosamente
comprometida na libertação do ser humano por inteiro e de toda a humanidade”
(Medellin. 5, 15 a)
Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países.
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