Por Eduardo Hoornaert
O nascimento da Igreja Católica
Latino-americana tem local, data e identidade própria: Medellin (Colômbia),
1968, ‘opção pelos pobres’. Escrevo ‘nascimento’, pois, antes de 1968, as
rédeas da Igreja latino-americana não estavam nas mãos de pessoas que aqui
viviam, mas basicamente de europeus, que teleguiavam os destinos dos
latino-americanos. Mas na segunda Conferência Geral dos bispos do
subcontinente, acontecida na cidade de Medellin em 1968, verifica-se uma
autonomia que nunca se manifestara antes.
Isso tem muito a ver com o Concílio
Vaticano II, celebrado em Roma entre os anos 1962 e 1965, e que tornou as
conferências episcopais nacionais ou regionais, por todo o mundo, mais
independentes. Mesmo assim, a dinâmica que resultou no nascimento da Igreja Latino-americana
deve ser procurada num acontecimento ocorrido em Roma, quinze dias antes da
abertura do Concílio Vaticano II.
Numa emissão radiofônica, no dia 11/09/1962,
o Papa João XXIII pronuncia a seguinte frase: ‘a igreja é de todos, mas é antes
de tudo uma igreja de pobres’. Essa afirmação, feita sem alarde e como de
passagem, constitui a primeira tomada de posição oficial da Igreja hierárquica
diante da pobreza em longos séculos. Ao longo da tradição cristã houve,
decerto, repetidos casos em que cristãos se comprometiam com os pobres, como
São Martinho, São Francisco, São Vicente de Paulo e muitos outros. Mas a Igreja
oficial não costumava se posicionar formalmente em relação à pobreza. Ela
mantinha silêncio e é por isso que as palavras de João XXIII são tão
importantes, pois elas trazem de volta, à consciência eclesial, a fala de Jesus
na sinagoga de Nazaré (Lc 4, 18-19):
Um Sopro do Senhor está sobre mim:
Por ele fui escolhido para anunciar
uma boa nova aos pobres
Enviado por ele, declaro aos prisioneiros
sua libertação
Aos cegos a recuperação da visão
Aos oprimidos o perdão.
Venho declarar publicamente um ano de
favor do Senhor.
As palavras do Papa João não causaram
um grande impacto sobre os trabalhos do Concílio Vaticano II. Isso se deve ao
fato que os 1.500 bispos que veem a Roma para participar do Concílio, não
encaravam a pobreza como questão, mas como uma realidade. Realidade, sem dúvida
triste, mas inevitável, já que faz parte da história humana. Assim, as palavras
do papa dão origem, dentro do Concílio, a uma movimentação discreta, que passa
despercebida pela maioria dos bispos participantes. Mesmo assim, algo se mexe,
e nessa discreta movimentação se percebem os germes da Igreja Latino-americana,
tal qual se manifesta em Medellin.
- Primeiro episódio: um bispo
melquita (das igrejas orientais), ao ser convidado ao Concílio, traz consigo ao
Concílio o Padre francês Paul Gauthier e a freira carmelita Marie-Thérèse
Lescase. Ambos são da Fraternidade Companheiros de Jesus Carpinteiro e
trabalham como operários em Nazaré, em meio a árabes. Eles começam a organizar
reuniões no apartamento alugado de Gauthier em Roma, e mais tarde no Colégio
Belga em Roma. Cardeal Gerlier e Cardeal Lercaro mostram interesse, assim como
Dom Helder Câmara, na época bispo auxiliar do Rio de Janeiro. É o ‘grupo dos
pobres’, que se reúne regularmente ao longo de toda a duração do Concílio.
- Segundo episódio: o Cardeal Lercaro
faz um discurso na Assembleia de 1.500 bispos e declara que o tema da pobreza
teria de ser o ‘único tema do Concílio’. É profusamente aplaudido, mas não se
percebe seguimento. Não se fala mais em pobreza na Aula Conciliar. A maioria
continua pensando em reforma litúrgica, ecumenismo, modelo de igreja, dogma,
luta ao comunismo, medo da secularização, luta contra o comunismo etc. Entre os
Padres Conciliares, o bloco central, na Grande Basílica, não mostra maior
interesse pelo tema da pobreza.
- Terceiro episódio, o mais
importante: duas semanas antes da clausura do Concílio, no dia 16/11/1965,
aproximadamente 40 bispos, convidados pelo ‘grupo dos pobres’, se reúnem na
Catacumba de Santa Domitila e participam de uma missa celebrada pelo bispo
belga Himmer. Depois assinam um documento, chamado Pacto das Catacumbas, em que
se comprometem a viver de modo pobre. São 42 assinaturas, aproximadamente 15
latino-americanas.
Como escrevi acima, o tema da pobreza
não encontra muita ressonância entre os bispos da Europa e da América do Norte
que retornam às suas dioceses depois do Concílio, Mas na América Latina, algo
diferente acontece. Há um grupo de bispos que colocam em prática o que
prometeram no Pacto das Catacumbas, em 1965. Uns exemplos: em Recife, Dom
Helder troca o Palácio dos Manguinhos pela sacristia da Igreja das Fronteiras;
em São Paulo, Dom Paulo Evaristo vende o Palácio Pio XII e constrói centros
comunitários com a renda da venda; em Crateús, Dom Fragoso deixa o ‘palácio’
(que já não é grande coisa) por uma casa na periferia da cidade; em João
Pessoa, Dom José Maria Pires vai morar numa casinha perto do Convento histórico
dos franciscanos; etc. Há bispos que fazem minirreformas agrárias em terras de
suas dioceses, como Dom Tiago Cloin, Dom Delgado e Dom Helder. Outros doam
prédios ou intervêm em ações militares contra camponeses. Que se mencione aqui
o martírio do bispo argentino Angelelli que, após uma intervenção numa expulsão
de camponeses em La Rioja, é morto numa emboscada planejada por militares.
É desse modo que o tema da pobreza
ocupa chama a atenção dos participantes da Conferência Geral dos bispos
latino-americanos reunida em Medellin, Colômbia, em 1968. É acolhido com
entusiasmo e é desse entusiasmo original que nasce a Igreja Latino-americana,
que é a única, no universo católico, a assumir oficialmente o tema da pobreza
levantado pelo Papa João, como se evidencia em declarações de princípio
reafirmadas ao longo de quatro sucessivas Conferências Gerais do Episcopado
latino-americano: Medellín 1968; Puebla 1979; Santo Domingo 1992; Aparecida
2007. Para não cair aqui numa euforia ‘triunfalista’, é preciso dizer que a
formulação ‘opção pelo pobre’, incondicional em Medellin 1968, fica ‘amansada’
com o tempo, o que mostra resistência, muitas vezes passiva, por parte da
maioria. Passa-se de ‘opção pelos pobres’ para ‘opção preferencial pelos
pobres’ (em Puebla) e ‘opção não exclusiva nem excludente’ (em Aparecida).
Aqui
se verifica uma conquista definitiva: o lema ‘opção pelos pobres’, expresso em
Medellin, não é uma palavra retórica vazia, como se verifica no surgimento de
uma geração excepcional de bispos, que podem ser chamados de ‘Padres da Igreja
Latino-americana’. Uma geração tão excepcional, segundo o teólogo José Comblin,
só aparece de mil em mil anos na história da Igreja: Mons. Proaño no Ecuador (o
bispo dos indígenas andinos), Mons. Larrain no Chile (o bispo da nova reforma),
Mons. Mendez Arceo em Cuernava, no México (o bispo da Missa Panamericana),
Mons. Samuel Ruiz em Chiapas, no México, (que fala seis línguas indígenas de
Chiapas), Mons. Romero em El Salvador (o bispo do ‘não matarás’), Mons.
Girardi
em Guatemala, os bispos Helder Câmara, Valdir Calheiros, Antônio Fragoso, Pedro
Casaldáliga, José Maria Pires, além dos Cardeais Aloísio Lorscheider e Paulo
Evaristo Arns, todos no Brasil. São bispos que simbolizam uma guinada histórica
da Igreja católica universal. Estamos acostumados a chamar os intelectuais do
primeiro milênio da tradição de Jesus de ‘Padres da Igreja’. A Igreja Católica
Latino-americana dispõe hoje de uma Patrologia que pode ser comparada à
clássica Patrologia, representada por Atanásio, Basílio, Gregório, Crisóstomo,
Agostinho, Jerônimo, Ambrósio, Dámaso e Hilário. Hoje, na América Latina, dispomos
de textos de Romero (El Salvador), Proaño (Ecuador), Angelelli (Argentina),
Samuel Ruiz (Chiapas, México), Mendez Arceo (Cuernavaca, México), Câmara
(Recife), Larrain (Chile), Girardi (Guatemala), Valdir Calheiros (Volta
Redonda), José Maria Pires (João Pessoa), Casaldáliga (Conceição do Araguaia),
Fragoso (Crateús), Lorscheider (Fortaleza), Arns (São Paulo), Krautler (Xingu),
Balduíno (Goiás Velho). Todos nos deixaram textos, longos ou curtos que merecem
ser lidos, publicados e estudados a fundo, com a mesma aplicação e o mesmo
respeito com que lemos a antiga Patrologia.
O documento mais importante dessa
Patrologia latino-americana é constituído pelas 2.110 Cartas Circulares de
Helder Câmara escritas entre 1962 e 1976. Dessas Cartas Circulares, até agora
(2016), foram publicadas 13 Tomos, desde a primeira, redigida na noite entre 12
e 13 de outubro de 1962. A última, publicada até hoje, data da noite entre 24 e
25 de janeiro de 1970. O bispo redigiu essas cartas na vigília noturna que ele
manteve desde os tempos de sua ordenação, entre aproximadamente uma hora da
madrugada até duas horas ou mais. Prevê-se para os próximos anos a publicação
completa (com mais quatro ou cinco tomos, completando uma coleção de
aproximadamente 18 Tomos). Apresento aqui uma leitura superficial das primeiras
Cartas, em que o tema da pobreza aparece em alto relevo.
A primeira Carta, que conta a
abertura do Concílio Vaticano II (12-13/10/1962), se inicia com uma frase
enigmática: ‘O Concílio vai ser dificílimo’. Por que? Só na nona Carta (21/10)
se encontra uma explicação: os bispos em Roma não aprofundam o tema da pobreza
no mundo. Enquanto Dom Helder sente desalento ao observar como os bispos andam
preocupados com a liturgia, a disciplina eclesiástica, o comunismo, o secularismo,
o ateísmo, os seminários, o ecumenismo, a organização das dioceses, etc. ele
sente certo alento quando verifica que, mesmo assim, um texto circula entre os
bispos. São as ‘Réflexions nazaréennes pour le Concile’, da autoria do já
mencionado Padre Paul Gauthier. De qualquer modo, o tema da pobreza aparece em
Roma, pensa Helder Câmara. Na Carta 12, de 24/10, ele escreve que está
procurando pessoas que possam levar adiante a questão da pobreza na Aula
Conciliar. Mas as pessoas que ele consegue contatar, como o Cardeal Suenens, o
Cardeal Lercaro, o Padre Congar, o Padre Houtart, alegam a dificuldade em fazer
entrar em pauta oficial esse tema, já que os bispos, em geral, pensam em outros
assuntos. Em seu desalento, o ‘bispinho’ Helder recorre a Monsior Francisco (em
todas as suas cartas, Helder se refere a São Francisco por meio do nome
‘Monsior’). É com Monsior que ele ‘sonha em ver a Igreja enfrentar a luta pelos
humildes e pobres’ (ibidem).
Penso que existe aí um desafio hoje,
17 anos após a morte de Helder Câmara. As Cartas Circulares estão aí, para
serem atenta e minuciosamente lidas, pois contêm sugestões importantes e
atuais, para a Igreja na América Latina. Essas Cartas estão sendo publicadas
pela Editora do Estado de Pernambuco (CEPE). Veja: Câmara, H., Circulares
conciliares, Volume I, Companhia Editora de Pernambuco, Recife, 2009, 3 tomos;
Volume II, Circulares interconciliares, CEPE, Recife, 2009, 3 tomos; Volume
III, Circulares pós-conciliares, CEPE, Recife, 2011, 3 tomos; volume IV, CEPE,
Recife, 2014, 4 tomos (em total, são
13 tomos publicados até hoje).
O nascimento da Igreja
Latino-americana traz consigo alguns questionamentos, entre os quais destaco,
em textos separados, três:
- questionamentos em torno da
pobreza;
- questionamentos em torno do
ritualismo;
- questionamentos em torno do
sacerdócio.
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