Por
Maria Clara Lucchetti Bingemer
Ao retornar do lançamento do livro que organizei juntamente com o colega Paulo
Fernando Carneiro de Andrade sobre Dorothy Day, na Livraria Travessa, no
Rio de Janeiro, reflito sobre como essa grande mulher não é conhecida na
América Latina e no Brasil. Parece uma contradição, quando toda a sua
vida foi voltada para a opção preferencial pelos pobres, algo tão
característico do sul do mundo, terra de injustiças e desigualdades, onde
vivemos. Talvez a novidade de seu pensamento e ação fosse o de fundar essa
opção ao norte da América.
A sensibilidade social de Dorothy Day tem traços
extremamente atuais, que dizem muito sobre seu nível de consciência, à frente
de seu tempo. Sem jamais apresentar uma tendência assistencialista ou alienante
em seu amor pelos pobres, para ela sempre é muito claro que há de se estar
junto aos pobres, com eles, mas também lutando incessantemente contra a
pobreza. Uma caridade assistencialista não é suficiente. Não era o bastante
assistir as vítimas da injustiça social; era necessário, além disso e
inseparavelmente, trabalhar para atingir e destruir as causas das desordens
sociais.
A partir de questões concretas, sua sensibilidade
era tocada, aguçada e questionada. E ela se perguntava: “Onde estarão os
santos, a fim de transformar a ordem social, não apenas para serem ministros
religiosos para os escravos, mas para acabar com a escravidão? ” Não
basta lutar contra os efeitos da pobreza. Esta é um mal e deve ser extirpado.
Para isso, há que se transformar a sociedade pela raiz.
Essas reflexões que se multiplicam através de todos
os seus escritos mostram-na como pioneira de movimentos que emergiriam
apenas posteriormente na Igreja. A consciência do pecado social e da
necessidade de soluções estruturais em vez de simples paliativos está muito
presente, por exemplo, na Teologia da Libertação, que explodiu com grande força
na Igreja latino-americana nos anos 1970.
A necessidade de soluções políticas e
estruturais – não apenas paliativas e fragmentadas – emergiriam na Teologia da
Libertação que inspirou a Igreja latino-americana durante os anos 1970. O
Catholic Worker Movement, criado por Dorothy Day juntamente com Peter Maurin,
não era simplesmente uma instância cívica ou política, mas uma atitude
espiritual e fruto de uma leitura radical dos Evangelhos.
Dorothy Day acreditava ser necessário experimentar
a pobreza a partir de dentro, porque esta era a única maneira de desenvolver a
verdadeira solidariedade aos pobres, abraçando seu mesmo destino. Fundando o
Catholic Worker Movement, ela criou algo novo no Catolicismo Social do século
XX.
Para alguns pesquisadores, o CWM é considerado algo
que encarna uma teologia da libertação implícita, no contexto estadunidense. O
CWM reivindica a pobreza voluntária, a não violência, a prática diária das
obras de misericórdia, e a busca de uma autêntica libertação do pecado pessoal
e social: uma conversão de corações e uma transformação das estruturas.
Nos anos 1930, quando o CWM começou, as mais fortes
preocupações eram o desemprego massivo e a terrível pobreza causada pela Grande
Depressão. Mesmo após a mudança dos desafios, o movimento continuou, em
solidariedade aos trabalhadores pobres marginalizados pela sociedade: através
de greves, lutas sindicais, protestos contra guerras e prisões injustas.
Para Dorothy Day, estas ações eram equivalentes a testemunhar e proclamar os
Evangelhos. Entre as críticas do movimento estavam: distribuição injusta da
riqueza; organização política do governo; imagens distorcidas da pessoa humana
causadas por classe, raça e restrições de gênero; e a corrida armamentista. O
movimento falava em favor de seres humanos, uma sociedade descentralizada, atos
de não violência, obras de misericórdia e pobreza voluntária.
Os pobres estão no centro do CWM, como estiveram para
sua fundadora, Dorothy Day: “Enquanto nossos irmãos sofrem, devemos ter
compaixão deles, sofrer com eles. Enquanto nossos irmãos sofrem por
necessidades básicas, nos recusaremos a desfrutar de confortos. Encontros
concretos diários com os pobres se tornaram o “áspero e terrível amor” sobre o
qual ela frequentemente falou.
Sua concepção sobre o serviço aos pobres antecipa a
Teologia da Libertação, que concebe o Deus da revelação judeu-cristã como um
Deus “parcial”, que “prefere” os pobres. Como Pai amoroso, Deus se aproxima
daqueles que estão mais necessitados: os pobres, os órfãos, a viúva, o
estrangeiro. Ele sustenta aqueles que não têm ninguém que fale por eles.
Isto é o que o CWM quer imitar. É neste encontro diário que o CWM nasceu,
em gestos pequenos e concretos, como escrever um jornal e distribuí-lo por um
centavo, ou dando boas-vindas aos que estão em necessidade, em busca de café
quente e abrigo.
Estas ações teriam impacto além do tempo e espaço
em que eram praticadas. Décadas depois, a Igreja latino-americana,
através da TdL, as fez visíveis novamente. Antes desses teólogos fazerem
suas reflexões, Dorothy Day e Peter Maurin combinaram uma filosofia do
comportamento com ação concreta, inspiradas pela teologia do amor encarnado. Os
pontos comuns entre o legado de Dorothy Day e a reflexão teológica que nasceu e
cresceu na América Latina após o Concílio Vaticano II são notáveis. E, por
isso, esperamos que o livro recém lançado ajude a fazer sua experiência e seu
legado mais conhecidos e praticados entre nós.
Maria
Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ. A
teóloga acaba de lançar o livro Fé, justiça e paz – O testemunho de
Dorothy Day (editoras Paulinas e PUC-/Rio), organizado juntamente
com Paulo Fernando Carneiro de Andrade.
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