Por Leonardo Boff
A convite de confrades franciscanos
escrevi a presente reflexão sobre a misericórdia que aqui publico.
É notória a presença da misericórdia
na vida de São Francisco, para com os pobres, com os pecadores, com os
confrades relapsos e para com os demais seres da criação, seus irmãos e irmãs.
Caso se deva impôr alguma penitência, diz na Regra 7,2 que “se
faça com misericórdia”. Na Carta aos fiéis 8,43recomenda ao
superior que “manifeste e pratique tal misericórdia como gostaria que se lhe
aplicasse a ele”. Por fim na Admoestão 27,6 afirma com
verdade:”onde há misericõrdia aí não há dureza de coração”.
Até hoje calam fundo na alma as
palavras do Testamento:”O Senhor mesmo me conduziu entre os hansenianos
(leprosos) e eu tive misericórdia com eles”. Quer dizer,
colocou-se no lugar deles, conviveu com eles e participou de todas as
discriminações que na época os hansenianos sofriam.
Para São Francisco é por misericórdia
que Cristo se fez presépio, se escondeu sob as simples espécies de pão e de
vinho e nos visita na roupagem dos pobres dos caminhos.
A mesma centralidade da misericórdia
encontramos no outro Francisco, aquele de Roma. Instituíu 2015/2016 o “Ano da
Misericórdia”e escreveu o belo opúsculo “O nome de Deus é misericórdia”.
Disse enfaticamente: “O Deus de
misericórdia, o Deus misericordioso para mim esta é de fato a carteira
de identidade do nosso Deus”.
Efetivamente, o Papa Francisco está
na linha da Tradição de Jesus, para quem Deus é fundamentalmente amor mas amor
misericordioso que chega a amar “os ingratos e maus”(Lc 6,35). A misericórdia é
a nota distintiva do Deus de Jesus Cristo e de todo o cristianismo.
Para Jesus não basta ser bom e
observar todas as leis como o irmão do filho pródigo que ficou em casa com seu
pai. Precisamos ser misericordiosos. O filho bom e fiel é o único a ser
criticado porque não mostrou misericórdia para com o irmão que se havia perdido
no mundo mas que, arrependido, voltara à casa paterna (Lc 15, 11-32).
Santo Tomás de Aquino na Suma
Teológica coloca a misericórdia como a forma mais alta do amor. Afirma que “a
misericórdia é a virtude maior. Pois, faz parte da misericórdia derramar-se
sobre os outros e o que é mais ainda – ajudar a fraqueza dos outros e isto é
uma coisa de quem se econtra mais elevado. Por isso a misericórdia é
precisamente atribuída a Deus como sua característica essencai; e diz-se
que é através dela que sua onipotência se manifesta de forma melhor”.
E conclui com palavras
semelhantes:”Entre todas as virtudes que tem a ver com o próximo é a
misericórdia a mais elevada e a mais importante, porque tem também um status
mais elevado; pois ajudar a fraqueza do outro é, em si, algo de mais elevado e
melhor”.
O Papa Francisco reafirmou numa de
suas homilías: “A misericórdia é a atitude divina que abraça; é o doar-se de
Deus que acolhe, que se predispõe a perdoar”.
Nietzsche que disse tantas
irreverências, afirmou em seu Assim falou Zaratustra, algo que
merece ser refletido:”Também Deus tem o seu inferno: é o seu amor pelos
homens…Deus está morto, morreu por sua compaixão para com os homens”.
A invés de prolongar uma reflexão
teológica mais acurada prefiro extender-me um pouco sobre os fundamentos
antropológicos da misericórdia e a imagem de Deus que ela pressupõe.
A religião do Deus-Mãe: a misericórdia, a do Deus-Pai a justiça
As imagens de Deus dominantes nas religiões atuais
nasceram, em sua grande maioria, no quadro da cultura patriarcal. Nela a imagem
predominante de Deus é aquele do Senhor do céu e da Terra, que dispõe de todos
os poderes, justiceiro e Pai severo. Sua característica principal é a justiça.
Anteriormente vigorava a cultura
matriarcal, uma das fases da história humana, vigente por volta de vinte mil
anos atrás. A imagem de Deus era feminina, da Grande Mãe, da Mãe dos mil seios,
geradora de toda vida. Produziu uma cultura mais em harmonia com a natureza e
profundamente espiritual. A característica do Deus-mãe era a misericórdia.
O nosso inconsciente, pessoal e
coletivo, guarda na forma de arquétipos e de grandes sonhos, estas experiências
feitas sob as duas formas de organizar a experiência religiosa, sob a figura do
pai e sob a figura da mãe. Como já Freud observou, elas constituem as bases
psíquicas a partir das quais projetamos as nossas imagens de Deus seja como
Deus-Pai, seja como Deus-Mãe.
Além disso, esta figuras estão
presentes em nós sob a forma de arquétipos seminais que nos acompanham durante
toda a vida, Elas sempre vêm à tona por uma ignota saudade, pelo imaginário,
pelas grandes narrativas, pela arte, pela música e por símbolos de toda ordem.
Mas há uma outra imagem, presente na
história das religiões e também na tradição judaico-cristã que nos remete ao
tema da compaixão e da misericórdia. Era por onde São Francisco vivenciava a
encarnação. Ela se manifesta pelo Deus que se faz criança, que não julga mas
que choraminga e convive. Um Deus que se enche de compaixão e chora pela morte
do amigo Lázaro; que “compadeceu-se de nossas fraquezas”(Hebr 4,15) e que
“aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo em solidariedade
(compaixão) conosco”(Flp 2,7); que “soube compadecer-se dos que estão
na ignorância e no erro, porque ele também está cercado de fraqueza”(Hbr 5,
5,2) e que “não obstante ser Filho de Deus teve que aprender a obedecer pelo
sofrimento”(Hebr 5,8). Eis os sinais de sua compaixão e misericórdia para
conosco: a forma que o Filho tomou ao encarnar-se.
William Bowling, místico inglês do
século XVII, concretizava ainda mais a misericórdia de Cristo dizendo:”Cristo
verteu seu sangue tanto pelas vacas e pelos cavalos quanto por nós homens”. É a
dimensão transpessoal e cósmica da redenção.
O Papa Francisco numa audiência de 28
de outubro de 2015 enfatizou tambbém esta dimensão cósmica da misericórida: “A
misericórdia para a qual somos chamados abraça toda a criação que Deus nos
confiou para sermos cuidadores e não exploradores, ou pior ainda,
destruidores”.
Há um comovente midrash judaico
(um relato) sobre o choro de Deus. Quando viu os cavaleiros egípcios com seus
cavalos serem tragados pelas ondas do Mar Vermelho depois da passagem a pé
enxuto de todo o povo de Israel, Deus olhou para trás e não se conteve. Chorou.
E fez-se ouvir com voz clara:
“Os egípcios não são também meus
filhos e filhas queridos e não apenas os descendentes de Abraão e de Jacó”?
É rica a tradição bíblica que fala da
misericórdia de Deus. Em hebraico misericórdia significa ter
entranhas de mãe e sentir em profundidade, lá dentro do coração o sofrimento
dos míseros (ter um coração(cor) para com os míseros como o
explicou o Papa Francisco certa feita).
O Salmo 103, um dos que pessoalmente
mais aprecio, é nisso exemplar ao afirmar que “Deus tem compaixão,
é clemente e rico em misericórdia; não está sempre nos acusando nem guarda
rancor para sempre…porque como um pai, sente compaixão pelos seus filhos e
filhas porque conhece a nossa natureza e se lembra de que somos pó; sua
misericordia é desde sempre e para sempre”. Haverá palavras mais
consoladoras do que estas para os tempos maus sob os quais estamos vivendo?
Somente um Papa, vindo do fim do
mundo, ousou dizer o que muitos teólogos vinham pensando mas não podiam
expressá-lo.
Diante dos novos cardeais
surpreendemente lhes disse: ”Não atemorizeis os fiéis com o inferno como sempre
foi feito na história da Igreja. Deus não conhece uma condenação
eterna.”
Numa outra homilía reafirmou:“nenhum
pecado humano, por mais grave que seja, pode prevalecer sobre a misericórdia ou
limitá-la”.
A misericórdia da Santíssim Mãe de Jesus
Estas afirmações tão contundentes do
Papa me remetem a um apócrifo tardio, do século IX, mas fundado numa tradição
antiga, muito popular na piedade russa, chamado O apocalipse da Mãe do
Senhor.
Como é sabido pela pesquisa, hoje em
dia está em voga o interesse pelos apócrifos, aqueles evangelhos não oficiais
que têm mais a ver com a cultura popular que utiliza antes a fantasia do que a
razão para realçar o significado da mensagem de Jesus.
Não devemos menosprezar a fantasia
porque ela traduz, à sua maneira, a verdade e, por isso, têm seus direitos.
O referido apócrifo é profundamente
comovedor e mostra o triunfo da misericórdia divina sobre a justiça. Ele
comprova, um vez mais, que para o Deus da misericórdia não existe uma
condenação eterna. Ei-lo:
“A santa e gloriosíssima Senhora, mãe
de Deus e mãe de Cristo se levantou e quis saber acerca das penas que sofrem os
seres humanos, especialmente os condenados ao inferno.
Perguntou ao arcanjo Miguel: “Quantas
penas existem lá onde é punido o gênero humano”? Ele respondeu:”As penas não
têm número.”
Ele abriu o inferno pelo lado do
ocidente. E a santíssima mãe de Cristo viu as muitas penas da humana gente e
prantos de muito tormento. Do lugar da pena, os condenados gritaram em voz
alta:”˙Há séculos que não vemos a luz. Mas agora vemos a ti que destes a luz ao
Senhor”.
Os anjos, por sua vez,
clamaram:”Alegra-te, Virgem, luz que nunca se apaga. Alegra-te também tu,
arcanjo Miguel, justo intercessor das almas de todos”.
Os anjos também viram os condenados e
choraram. A honorabilíssima Mãe do Senhor viu o lamento dos anjos por causa dos
condenados. E ela também começou a chorar.
Novamente os condenados
gritaram:”Bendita és tu porque vieste até nós que estamos nas trevas por toda a
eternidade”.
Disse a santíssima Mãe ao arcanjo
Miguel:”Diga aos anjos para levar-me diante do Pai invisível”.
Vieram então os querubins e os
serafins e a levaram diante do Pai invisível. E ela estendeu as mãos diante do
trono terrível e se inclinou profundamente (fez a proscrínese).
Depois dirigiu os olhos na direção de
seu Filho, Senhor do céu e da terra. Suplicou: ”Tem piedade, ó Senhor dos
cristãos! Vi tormentos impossíveis de serem suportados. Eu quero sofrer
com eles”.
Cristo respondeu:”Como poderia ter
piedade deles quando eles não tiveram piedade de meus irmãos e irmãs menores,
os pobres?”
Apesar disso, suplicou a
honorabilíssima Senhora: ”Mesmo assim, ajuda-me, ó Senhor”. E o Filho lhe
respondeu:
”Não há na terra ninguém que me
invoque e que não seja ouvido por mim. Mas estes não quiseram invocar meu
nome”.
E a virgem Maria se voltou para os
anjos e santos e para os justos do Reino do céu e para todos os que têm a
ousadia de pedir pelos condenados.
E o arcanjo Miguel incitou a todos e
ele mesmo se ajoelhou, seguido pelos anjos e por toda a corte dos santos e das
santas, com grande caridade. E disse a esplendidíssma Mãe a seu Filho:
”Filho meu amantíssimo, desce de teu
trono e veja a oração que fazemos pelos condenados”. E o Filho do Pai, o Cristo
Senhor, desceu de seu trono. Aproximou-se do lugar das penas eternas. Vendo-o
gritaram os atormentados em alta voz:
”Tem piedade de nós, Filho de Deus.”
E o Senhor disse então:
“Escutai todos. Por causa da piedade
e da misericórdia de minha mãe e da oração dos anjos e dos santos e santas, a
partir de minha ressurreição no dia de páscoa até o domingo de todos os santos,
habitareis no paraíso.”
E todos os santos e santas
glorificaram a Deus, ficando na expectativa da festa da ressurreição do Senhor.
E quando ela chegou, todos os condenados entraram cantando no céu. E diz-se que
de lá nunca mais saíram.”
Perguntei a um monge-teólogo ortodoxo
russo, numa das viagens à Rússia no contexto do diálogo inter-religioso o que
significavam aquelas datas. Ficariam no céu somente por um certo tempo? Ao que
me respondeu: quem entrou não sai mais, pois seria invalidar a misericórdia da
Mãe do Senhor. Por isso não se deve tomar as festas referidas no sentido
temporal, mas no sentido espiritual: são as festas eternas no Reino da Trindade
na qual todos os redimidos participam. Por isso é justo que se diga:”E de lá,
do céu, nunca mais saíram”.
Com correção teológica asseverou o
Papa Francisco:”com a misericórdia e o perdão, Deus vai além da justiça, a
inclui e a supera numa dimensão superior na qual se experimenta o amor, que é o
fundamento de uma verdadeira justiça”.
A narrativa do apócrifo russo, revela
a vitória da misericórdia (religião da mãe) sobre a justiça (religião do pai).
Deus-Pai-e-Mãe não tem uma caixa de
lixo
Dito numa linguagem do quotidiano:
Deus, Pai e Mãe de bondade e de infinita misericórdia não têm uma caixa de
lixo eterna, para onde jogam os que neste mundo não deram certo. Seria uma
derrota eterna para Eles que jamais poderão ser vencidos pelas forças do
Maligno.
A misericórdia que é o amor dolorido
que se compadece dos padecimentos humanos, superou a justiça. No juízo
individual no qual se darão conta de sua justiça, os pecadores, envergonhados,
reconhecem o mal que fizeram. Sofrem terrivelmente (existencialmente não seria
o purgatório?). Mas o sofrimento é purificador. Por isso, este não tem a última
palavra. A última página do livro da vida é escrita pelo amor e pela
misericórdia. É da natureza divina, toda amor e compaixão, perdoar e reconduzir
a todos os seus filhos e filhas ao seu seio bem-aventurado.
Foi para isso que foram pensados e
queridos por Deus desde toda a eternidade. E Jesus é o salvador universal, cujo
poder de resgate das vítimas do mal não conhece limites. Seu gesto redentor é
verdadeiramente universal e sempre vitorioso. Nenhum mal resiste ao amor e à
misericórdia. Ele jamais poderá triunfar.
Pala justiça, o mal é reconhecido, faz
sofrer de modo que este sofrimento funciona como uma clínica purificadora da
Deus. Purificados pelo sofrimento e muito mais pela intensidade incomensurável
do amor divino, todos saem transfigurados. Por causa da misericórdia são
perdoados. E assim Deus é sempre e eternamente vitorioso contra todas as forças
do Negativo da história.
O sentido último da encarnação não é
outro que este: Deus vem, assume a nossa condição frágil e mortal e nos toma
porque somos seus, leva-nos para a morada eterna que nos foi preparada antes do
princípio da criação. E aí viveremos e festejaremos, festejaremos e nos
alegraremos, nos alegraremos e conviveremos como irmãos e irmãos, junto com
toda a comunidade de vida também ela transfigurada, no Reino bem-aventurado da
Trindade, do Pai do Filho e do Espírito Santo.
Leonardo Boff,
Olim frater, franciscano de espírito, herdado da alma
Província da Imaculada Conceição do Sul do Brasil.
Nenhum comentário:
Postar um comentário