O Jornal On Line O PORTA-VOZ surgiu para ser o espaço onde qualquer pessoa possa publicar seu texto, independentemente de ser escritor, jornalista ou poeta profissional. É o espaço dos famosos e dos anônimos. É o espaço de quem tem alguma coisa a dizer.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

E se o Papa Francisco for anarquista? (Considerações em torno da ‘Teologia do Povo’).


Por Eduardo Hoornaert






E se o Para for anarquista? Não anarquista no sentido que se costuma dar ao termo, mas no sentido de uma lucidez acerca do modo em que a sociedade promove o bem comum, não por simples ação do estado ou de pessoas que controlam os instrumentos do estado, mas por uma interação entre forças existentes na sociedade, impulsionada por movimentos de base. Desenvolvi esse tema num blog que publico hoje juntamente com este, e que tem como título ‘Marxistas, comunistas e anarquistas: uma reflexão após a vitória de Trump nas eleições americanas’. Se você ler os dois textos em conjunto, estará em condições de entender melhor o que pretendo dizer.

1. Em primeiro lugar uma consideração de ordem histórica. Jorge Bergoglio é um jesuíta cuja formação se situa dentro da teologia argentina dos anos 1960-1980. Na longa escola de sua formação jesuítica sob a inspiração de figuras como Karl Rahner, Lúcio Gera, Enrique Angelelli, Juan Carlos Scannone, Romano Guardini e outras figuras de grande impacto, tanto argentinas como estrangeiras, o jovem jesuíta adquire uma sensibilidade peculiar pelo ‘popular’, aguça sua ‘opção pelo pobre’ ao mesmo tempo em que evita a fixação na conquista do poder. Pois a ‘Teologia da Libertação’ de cunho argentino é diferente daquela praticada, na época, em outros lugares, como no Brasil por exemplo. Principalmente sob a orientação do Padre Juan Carlos Scannone, com quem convive longos anos, Jorge Bergoglio adere à chamada ‘teologia do povo’, uma vertente da ‘teologia da libertação’ que tem como característica que se distancia diante da ortodoxa análise marxista, que implica na procura do poder do estado. Não podemos negar que, no substrato não explícito da Teologia da Libertação versão brasileira, havia a expetativa de uma ‘revolução socialista’, ou seja, da tomada do poder do estado por partidos inspirados no marxismo. É nesse sentido que podemos qualificar a ‘teologia do povo’ de ‘anárquica’. Ela ativa ‘movimentos populares’ atuantes na sociedade civil, valoriza a ‘mística popular’, não procura ocupar espaços de poder governamental, prefere animar processos mais lentos, que necessitam de tempo (com a paciência que essa postura pede), aceita comunhão nas diferenças (heterossexuais e homossexuais, casados e divorciados, católicos, protestantes, evangélicos, padres solteiros e padres casados), insiste na observação da realidade e não propõe diretamente ideias próprias. Uma teologia modesta, de pretensões modestas.

2. Esse jesuíta se torna Papa e, após mais de três anos de papado, fica claro que gosta de ser Papa. Mas a seu modo. Quando fica sentado no trono (como o cargo exige), não tem uma postura de ‘chefe’, de coordenador de governo.  Escuta com atenção, fala com calma. Parece não gostar muito das Jornadas da Juventude, iniciativa de seu predecessor João Paulo II, mas gosta demais dos Encontros de Movimentos Populares. O terceiro acaba de terminar em Roma no início de novembro 2016. O que ele diz nesses encontros merece ser lido e relido, pois não aparece nos grandes meios de comunicação. Merece ser divulgado pela internet, pois expressa o que se passa nas últimas capilaridades do corpo social, entre os silenciados e esquecidos.

3. Recentemente, um amigo me disse: ‘Papa Francisco joga bem, mas não faz gol’. Cadê a reforma da Cúria? a abolição do celibato? a ordenação de mulheres? o apoio a movimentos Gay? a decretação da licença para dar a comunhão a pessoas divorciadas? A readmissão de padres casados? Parece que tudo fica no meio do caminho, que nada se resolve e que tudo fica como está. Em suma, o Papa Francisco está no poder, nas não exerce o poder. Por trás da colocação do amigo existe um modo de pensar: ‘só quem faz gol faz algo na história’. E se o gol do Papa Francisco existe exatamente em não fazer gol, em não emplacar uma vitória? 
O modo de pensar de meu amigo é de cunho autoritário. Como se o poder do estado (do governo central da igreja), só ele, estivesse em condição de mudar as coisas. Nesse engano já caiu o socialismo real e meu amigo já teria de ter aprendido a lição. A mudança na sociedade (na igreja) só se faz por uma pressão ‘de baixo’. A cúpula da igreja nunca vai mudar nada, pois essa mudança implica no reconhecimento de sua própria inutilidade. O que essa ‘cúpula’ pode fazer, enquanto estamos nas presentes condições históricas, é animar os movimentos de base. É exatamente o que faz o Papa Francisco.

4. O atual Papa já está tempo suficiente na direção da Igreja Católica para que saibamos que ele não vai ‘fazer gol’. Isso desorienta muita gente que espera que ‘Roma vai mudar’. Ora, a vontade de não mudar pertence ao fundamento de poder estabelecido em Roma. 
Permita-me aqui uma pequena digressão na história. O papado emerge, séculos atrás, de uma dura e demorada contenda entre bispos de cidades importantes como Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Roma. Até o século XI, Roma não consegue se livrar do poderio exercido pela parte grega da igreja (os patriarcas orientais). Ao longo do primeiro milênio, é com tenacidade que os sucessivos patriarcas de Roma (chamados ‘papa’ pelo povo) ampliam sua ascendência sobre as demais igrejas do Ocidente. É um processo de séculos. Finalmente, em 1052, o patriarca de Roma rompe definitivamente com os patriarcas gregos e começa uma experiência nova, chamada igreja católica. 

5. Nessa ‘sucessão apostólica’, o pontificado de Francisco é algo inesperado, que prenuncia tempos novos. Isso ficou claro no famoso Encontro organizado em Roma em final do ano 2015, para saber como se comportar diante de católicos divorciados que desejassem participar da comunhão eucarística. Esse Encontro foi preparado por consultas feitas em todos os rincões do universo católico. A intenção era de atingir os casados e divorciados. Bem significativamente, as consultas entre casados ou divorciados (os eventualmente mais interessados) não deram em quase nada, enquanto cardeais, arcebispos, bispos e padres se manifestaram abundantemente. Finalmente, quando esses (com alguns representantes-figurantes do universo ‘leigo’) se reuniram em Roma para discutir a admissão ou não de pessoas divorciadas à comunhão, as correntes se digladiaram (sempre com a devida cortesia eclesiástica), enquanto o Papa ficou ‘em cima do muro’. Não se pronunciou e deixou a discussão correr livremente.  O resultado foi placar 0 a 0. Para alguns, resultado nenhum. Para outros, a verdadeira vitória. O recado do Papa passou para os ‘bem entendidos’: que cada um(a) decida, que cada um(a) tome sua vida em mãos.
Efetivamente, o Papa dá a impressão de ficar com ‘um pé para trás’. Tenho a impressão que ele detecta em muitas iniciativas ‘da base’ um oculto ‘desejo hegemônico’, tão típico do catolicismo. Esse desejo, mal vislumbrado e quase nunca verbalizado, existe mesmo na condução das CEBs, essa movimentação tão típica da sociedade civil (como deveria ser). O desejo hegemônico (de ‘tomar o poder’ na igreja) terá de ser detectado e depurado. O que me fica claro é que o Papa nos impele a ‘fazer algo’ nas nossas condições concretas de vida. Algo em benefício do bem comum. 


6. No final dessas considerações não posso deixar de ceder à tentação de citar uma linda frase de Slavoj Zizek em seu livro ‘O Absoluto frágil: por que vale a pena lutar pelo legado cristão? ’ (Boitempo, São Paulo, 2015, 126), que traça, a seu modo, um perfil do Papa Francisco. Eis a frase: ‘O que é o Absoluto? Algo que aparece nas experiências efêmeras, digamos no sorriso gentil de uma bela mulher ou no sorriso caloroso e afetuoso de uma pessoa que, em condições normais, pareceria feia e rude. O Absoluto é frágil, ele escapa facilmente pelos nossos dedos e deve ser manuseado com o máximo de cuidado, como se fosse uma borboleta’. Agora vejo o Papa longamente passando pela interminável fila de pessoas entusiasmadas na Praça de São Pedro em Roma e parando de vez em quando diante de uma criança, de uma senhora velha num carrinho, com brilho nos olhos. O brilho do encontro com o ‘Absoluto’. Isso não é encenação, não é comédia, não é hipocrisia. É o Papa Francisco.   




 Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.

www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/

Nenhum comentário:

Postar um comentário