Por Eduardo Hoornaert
E se o
Para for anarquista? Não anarquista no sentido que se costuma dar ao termo, mas
no sentido de uma lucidez acerca do modo em que a sociedade promove o bem
comum, não por simples ação do estado ou de pessoas que controlam os
instrumentos do estado, mas por uma interação entre forças existentes na
sociedade, impulsionada por movimentos de base. Desenvolvi esse tema num blog
que publico hoje juntamente com este, e que tem como título ‘Marxistas,
comunistas e anarquistas: uma reflexão após a vitória de Trump nas eleições
americanas’. Se você ler os dois textos em conjunto, estará em condições de
entender melhor o que pretendo dizer.
1. Em
primeiro lugar uma consideração de ordem histórica. Jorge Bergoglio é um
jesuíta cuja formação se situa dentro da teologia argentina dos anos 1960-1980.
Na longa escola de sua formação jesuítica sob a inspiração de figuras como Karl
Rahner, Lúcio Gera, Enrique Angelelli, Juan Carlos Scannone, Romano Guardini e
outras figuras de grande impacto, tanto argentinas como estrangeiras, o jovem
jesuíta adquire uma sensibilidade peculiar pelo ‘popular’, aguça sua ‘opção
pelo pobre’ ao mesmo tempo em que evita a fixação na conquista do poder. Pois a
‘Teologia da Libertação’ de cunho argentino é diferente daquela praticada, na
época, em outros lugares, como no Brasil por exemplo. Principalmente sob a
orientação do Padre Juan Carlos Scannone, com quem convive longos anos, Jorge
Bergoglio adere à chamada ‘teologia do povo’, uma vertente da ‘teologia da
libertação’ que tem como característica que se distancia diante da ortodoxa
análise marxista, que implica na procura do poder do estado. Não podemos negar
que, no substrato não explícito da Teologia da Libertação versão brasileira,
havia a expetativa de uma ‘revolução socialista’, ou seja, da tomada do poder
do estado por partidos inspirados no marxismo. É nesse sentido que podemos
qualificar a ‘teologia do povo’ de ‘anárquica’. Ela ativa ‘movimentos
populares’ atuantes na sociedade civil, valoriza a ‘mística popular’, não
procura ocupar espaços de poder governamental, prefere animar processos mais
lentos, que necessitam de tempo (com a paciência que essa postura pede), aceita
comunhão nas diferenças (heterossexuais e homossexuais, casados e divorciados,
católicos, protestantes, evangélicos, padres solteiros e padres casados),
insiste na observação da realidade e não propõe diretamente ideias próprias.
Uma teologia modesta, de pretensões modestas.
2.
Esse jesuíta se torna Papa e, após mais de três anos de papado, fica claro que
gosta de ser Papa. Mas a seu modo. Quando fica sentado no trono (como o cargo
exige), não tem uma postura de ‘chefe’, de coordenador de governo. Escuta
com atenção, fala com calma. Parece não gostar muito das Jornadas da Juventude,
iniciativa de seu predecessor João Paulo II, mas gosta demais dos Encontros de
Movimentos Populares. O terceiro acaba de terminar em Roma no início de
novembro 2016. O que ele diz nesses encontros merece ser lido e relido, pois
não aparece nos grandes meios de comunicação. Merece ser divulgado pela
internet, pois expressa o que se passa nas últimas capilaridades do corpo
social, entre os silenciados e esquecidos.
3.
Recentemente, um amigo me disse: ‘Papa Francisco joga bem, mas não faz gol’.
Cadê a reforma da Cúria? a abolição do celibato? a ordenação de mulheres? o
apoio a movimentos Gay? a decretação da licença para dar a comunhão a pessoas
divorciadas? A readmissão de padres casados? Parece que tudo fica no meio do
caminho, que nada se resolve e que tudo fica como está. Em suma, o Papa Francisco
está no poder, nas não exerce o poder. Por trás da colocação do amigo existe um
modo de pensar: ‘só quem faz gol faz algo na história’. E se o gol do Papa
Francisco existe exatamente em não fazer gol, em não emplacar uma vitória?
O modo
de pensar de meu amigo é de cunho autoritário. Como se o poder do estado (do
governo central da igreja), só ele, estivesse em condição de mudar as coisas.
Nesse engano já caiu o socialismo real e meu amigo já teria de ter aprendido a
lição. A mudança na sociedade (na igreja) só se faz por uma pressão ‘de baixo’.
A cúpula da igreja nunca vai mudar nada, pois essa mudança implica no
reconhecimento de sua própria inutilidade. O que essa ‘cúpula’ pode fazer,
enquanto estamos nas presentes condições históricas, é animar os movimentos de
base. É exatamente o que faz o Papa Francisco.
4. O
atual Papa já está tempo suficiente na direção da Igreja Católica para que
saibamos que ele não vai ‘fazer gol’. Isso desorienta muita gente que espera
que ‘Roma vai mudar’. Ora, a vontade de não mudar pertence ao fundamento de
poder estabelecido em Roma.
Permita-me
aqui uma pequena digressão na história. O papado emerge, séculos atrás, de uma
dura e demorada contenda entre bispos de cidades importantes como
Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Roma. Até o século XI, Roma não
consegue se livrar do poderio exercido pela parte grega da igreja (os
patriarcas orientais). Ao longo do primeiro milênio, é com tenacidade que os
sucessivos patriarcas de Roma (chamados ‘papa’ pelo povo) ampliam sua
ascendência sobre as demais igrejas do Ocidente. É um processo de séculos.
Finalmente, em 1052, o patriarca de Roma rompe definitivamente com os
patriarcas gregos e começa uma experiência nova, chamada igreja católica.
5.
Nessa ‘sucessão apostólica’, o pontificado de Francisco é algo inesperado, que
prenuncia tempos novos. Isso ficou claro no famoso Encontro organizado em Roma
em final do ano 2015, para saber como se comportar diante de católicos
divorciados que desejassem participar da comunhão eucarística. Esse Encontro
foi preparado por consultas feitas em todos os rincões do universo católico. A
intenção era de atingir os casados e divorciados. Bem significativamente, as
consultas entre casados ou divorciados (os eventualmente mais interessados) não
deram em quase nada, enquanto cardeais, arcebispos, bispos e padres se
manifestaram abundantemente. Finalmente, quando esses (com alguns
representantes-figurantes do universo ‘leigo’) se reuniram em Roma para
discutir a admissão ou não de pessoas divorciadas à comunhão, as correntes se
digladiaram (sempre com a devida cortesia eclesiástica), enquanto o Papa ficou
‘em cima do muro’. Não se pronunciou e deixou a discussão correr
livremente. O resultado foi placar 0 a 0. Para alguns, resultado nenhum.
Para outros, a verdadeira vitória. O recado do Papa passou para os ‘bem
entendidos’: que cada um(a) decida, que cada um(a) tome sua vida em mãos.
Efetivamente,
o Papa dá a impressão de ficar com ‘um pé para trás’. Tenho a impressão que ele
detecta em muitas iniciativas ‘da base’ um oculto ‘desejo hegemônico’, tão
típico do catolicismo. Esse desejo, mal vislumbrado e quase nunca verbalizado,
existe mesmo na condução das CEBs, essa movimentação tão típica da sociedade
civil (como deveria ser). O desejo hegemônico (de ‘tomar o poder’ na igreja)
terá de ser detectado e depurado. O que me fica claro é que o Papa nos impele a
‘fazer algo’ nas nossas condições concretas de vida. Algo em benefício do bem
comum.
6. No
final dessas considerações não posso deixar de ceder à tentação de citar uma
linda frase de Slavoj Zizek em seu livro ‘O Absoluto frágil: por que vale a
pena lutar pelo legado cristão? ’ (Boitempo, São Paulo, 2015, 126), que traça,
a seu modo, um perfil do Papa Francisco. Eis a frase: ‘O que é o Absoluto? Algo
que aparece nas experiências efêmeras, digamos no sorriso gentil de uma bela
mulher ou no sorriso caloroso e afetuoso de uma pessoa que, em condições
normais, pareceria feia e rude. O Absoluto é frágil, ele escapa facilmente
pelos nossos dedos e deve ser manuseado com o máximo de cuidado, como se fosse
uma borboleta’. Agora vejo o Papa longamente passando pela interminável fila de
pessoas entusiasmadas na Praça de São Pedro em Roma e parando de vez em quando
diante de uma criança, de uma senhora velha num carrinho, com brilho nos olhos.
O brilho do encontro com o ‘Absoluto’. Isso não é encenação, não é comédia, não
é hipocrisia. É o Papa Francisco.
Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.
www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/
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