POR Maria Clara Lucchetti Bingemer
E mais uma vez é Natal. Mais uma vez o ritmo da vida se torna frenético
por algumas semanas, o trânsito insuportável, as lojas repletas. Mais uma
vez as pessoas se acotovelaram com listas nas mãos, comprando presentes inúteis
e supérfluos em sua maioria, para outras pessoas que deles não necessitam.
E mais uma vez é Natal. Mais uma vez os supermercados aquecem suas vendas com
os inevitáveis perus, pernis, presuntos tender e frutas secas. Homens vestidos
de Papai Noel desidrataram-se sob o calor tropical, com longas barbas brancas
para estimular nas criancinhas desde cedo os desejos de consumo de presentes a
não mais
poder.
Mais uma vez é Natal. E uma vez mais aqueles para quem nunca é festa
continuarão sem ter nada para celebrar. Mesmo com as meritórias campanhas
do Natal sem Fome, das ceias organizadas por esta ou aquela igreja, sempre
haverá gente sob as pontes, nas ruas, que não tem sequer para onde ir, nem onde
morar, nem onde comer na noite de Natal.
Mais uma vez é Natal e a ocasião desta festa porá a nu os contrastes injustos e
inexplicáveis de que é formada nossa sociedade, onde o que sobra para uns não
vai suprir a falta e as carências de outros. Mais uma vez as festas em
família se farão sobretudo em torno de comida e presentes, e quando o último
gole de champanhe for saboreado, juntamente com a última fatia de peru, o tédio
se abaterá sobre mais uma festa sem que se saiba o que foi
celebrado. Ou melhor, esqueceu-se o motivo da sua existência e
celebração.
Porém, mais uma vez é Natal e será verdadeiramente Natal em alguns lares e em
algumas vidas nas quais a escala de valores e prioridades se harmoniza com o
Mistério que é a razão de ser da festa. E mais uma vez será vivido com devoção
e profundidade o evento de salvação, o Mistério inaudito do Amor de Deus, que
toma carne em um indefeso Menino que nasce de uma pobre mulher e não tem lugar
para ficar, a não ser o estábulo onde dormem e comem os animais.
Mais uma vez é e será Natal para gente que celebra na simplicidade este
Mistério do amor humilde e oblativo de um Deus que não se aferra a suas
prerrogativas e se faz carne, se faz criança, se faz um de nós, em um mundo
dividido e violento. Mais uma vez é e será Natal para aqueles e aquelas
que, mesmo nomeando-o de diferentes maneiras, acreditam que Esse que vem na
forma de criança indefesa e desvalida
é o Único capaz de trazer a paz, a harmonia, a concórdia a este mundo que
insiste em destruir-se a si mesmo.
Nossa sociedade e nossa cultura são tão pobres e vazias de transcendência que
muitos custamos a perceber, por trás das ceias e presentes que nos obnubilam e
ofuscam, o Mistério translúcido e discreto da Encarnação de Deus no seio de uma
mulher, e de seu nascimento do ventre livre e pobre desta mesma mulher.
E, no entanto, mais uma vez é Natal. Mais uma vez Deus nos diz com
o nascimento desta criança que Sua Aliança conosco é para sempre. Que por mais
que façamos ou desfaçamos nunca poderemos atingir mortalmente ou acabar com Seu
amor, que resiste a todas as barbaridades que possamos cometer.
Por isso é Natal. Não apenas nas casas bem equipadas com bens perecíveis,
alimentos sofisticados e presentes. Não apenas nas casas não tão
aparelhadas, mas nas quais foi e continua sendo possível uma ceia melhor que
aqueça o estômago e o coração.
É Natal igualmente nas ruas e pontes onde famílias inteiras se defendem contra
a fome e desabrigo pela proximidade dos corpos que se transmitem um a
um humano calor. É Natal nas penitenciárias, onde homens e mulheres
sofrem a privação da liberdade, mas também e não menos a privação dos mais
elementares direitos humanos. É Natal em todas as regiões do globo, mesmo
naquelas onde as armas mortais fazem estragos e destruições aparentemente
irreparáveis.
É Natal em Falluja, em Beslan, no Iraque, na faixa de Gaza. É Natal na
Ucrânia e no país basco. É Natal nas Antilhas. É Natal na África,
em cada um de seus países, onde as crianças foram riscadas do mapa do mundo e
estão condenadas pelas grandes potências a morrer de inanição e onde as
mulheres, além da pobreza, têm que lutar contra o encurtamento inexorável de
suas vidas pelo avanço assustador da AIDS.
É Natal para sempre em todo lugar, mesmo onde os números, as estatísticas e -
mais que isso - a realidade, negam cinicamente que seja ou possa ser Natal.
Pois Aquele que vem é cantado pela boca da comunidade cristã que interpreta as
profecias. E é cantado e celebrado como Conselheiro Admirável, Deus
Forte, Príncipe da Paz. Filho primogênito do Criador do Universo, cujo Reino se
estende por toda a Terra, o Menino que vem fará com que as armas sejam
transformadas em arados, os instrumentos mortais em meios de paz, o deserto em
jardim, a violência em concórdia e comunhão.
Diante da simplicidade inaudita do Mistério de uma criança que nasce de uma
mulher, façamos silêncio, tomemos uma atitude de contemplação e adoração.
Mais uma vez é Natal e será Natal para sempre. Porque apesar de tudo, Deus não
deixa de acreditar na pobre humanidade que somos e nos oferece a cada ano, com
infinito amor, este presente admirável que é Seu Filho.
Maria
Clara Lucchetti Bingemer, teóloga e professora de Teologia da PUC-RJ. A teóloga é
autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da
compaixão" (Edusc)
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